sexta-feira, 30 de abril de 2010

«Damnatio memoriae»



No tempo dos imperadores romanos, quando um deles, após a morte, era amaldiçoado devido aos maus serviços que prestara à «república», havia ordem para que o seu nome fosse picado em tudo quanto era monumento. O mesmo acontecia a personagens célebres sobre quem, por pertencerem a uma facção vencida, recaía idêntica maldição, e a sua memória, gravada sobre o mármore, era destruída, para que deles nada restasse: «damnatio memoriae»…
O estratagema passou a ser, de resto, habitual em todas as épocas e, agora que se comemoram os cem anos da implantação da República, chama-se a atenção para o facto de, por exemplo, uma Praça do Comércio ter passado a designar-se Praça 5 de Outubro; como, após a Revolução de Abril, a Ponte Salazar deu lugar à Ponte 25 de Abril.
É, de resto, esse um tópico de pesquisa assaz curioso e, no que se refere à Antiguidade Clássica, o desafio é tentar descobrir, nos raros vestígios que restam das letras primitivas, que nome fora ali escrito originalmente.
Surgiu-me este conceito, retirado da minha veia de epigrafista, ao ler a nota incluída na agenda cultural da Câmara Municipal de Cascais nº 43 acerca da Casa das Histórias Paula Rego, cuja exposição mereceu o Prémio da Melhor Exposição de Artes Plásticas 2009. É que já na cerimónia, transmitida em directo pela RTP, em que o prémio foi recebido, nada se disse sobre quem estivera por detrás dessa exposição e esperava eu que, pelo menos na Agenda Cultural, houvesse um, ainda que mínimo, eco dos muitos louvores que ouvi, antes e depois da inauguração da Casa, da boca do Senhor Presidente da Câmara e de responsáveis do Pelouro da Cultura, à Professora Doutora Dalila Rodrigues, que, na Agenda Cultural nº 40 assinara (p. 5-7) um texto com a programação prevista, na sua qualidade de «Directora da Casa das Histórias Paula Rego».
Dizem que, por vontade exclusiva da artista, Dalila Rodrigues foi simplesmente posta no olho da rua, de um momento para o outro e… a sua memória completamente irradiada de tudo quanto era escrito sobre a Casa que com tanto esforço, saber e desmesurada dedicação (não sou eu que o digo, mas os responsáveis camarários) conseguiu erguer em tempo recorde.
Dalila Rodrigues «morreu». Haviam-na elevado aos píncaros; caiu às profundezas dos abismos. Demorou a ser substituída. Vamos lá ver por quanto tempo a nova responsável estará nas graças da pintora.


Publicado no Jornal de Cascais, nº 217, 27-04-2010, p. 10.

domingo, 25 de abril de 2010

Epigrafia no feminino na Lusitânia romana

RESUMO
Remeto para a bibliografia referências que poderão ser ponto de partida para quem deseje aprofundar o tema. E, portanto, das muitas inscrições passíveis de exemplificar a «epigrafia no feminino» na Lusitânia romana, escolho, quase ao acaso, uma que considero deveras elucidativa.



Reza assim este epitáfio da civitas Igaeditanorum:

AVNIAE ARANTONI(i) / CELTIATICI F(iliae) LANC(iensi) OPPIDANAE / COCCEIA SILONIS F(ilia) AVITA / NAEVIA SILONIS F(ilia) CLARA MATRI / F(aciendum) C(uraverunt)

A Áunia, filha de Arantónio Celtiático, lanciense opidana – Coceia Avita, filha de Silão, Névia Clara, filha de Silão, mandaram fazer à mãe.

Como se sabe, a mulher era, no Império Romano, identificada com dois nomes: o gentilício (nomen), que herdava do pai, e o cognome (cognomen), escolhido habitualmente de acordo com uma circunstância concreta ligada à família, elemento, portanto, identificativo da pessoa no seio familiar e social.
E o que vemos aqui?
A homenagem a uma mulher, destinada a ser colocada sobre a sua sepultura, ainda que, aparentemente, nada deixe transparecer um carácter funerário. E essa é a primeira reflexão a fazer. Trata-se de uma ambiguidade que interessa: Áunia, afinal, com o seu nome assim bem patente em lugar público, permanece no mundo dos vivos!
E não terá sido, na verdade, uma dama qualquer, pois há dois aspectos excepcionais: o pai vem identificado por dois nomes, quando o habitual é referi-lo apenas com um, o praenomen (assaz vulgar, como é o caso dos nossos primeiros nomes), e em sigla, quando a aculturação se encontra em estado avançado; ou com o nome indígena, nos primórdios dessa aculturação. No caso vertente, as filhas seguem esse esquema identificativo indígena: «de Silão»; mas do pai se aponta o nome de família – Arantonius – e o cognomen, Celtiaticus. No entanto, para além disso, está expressa a sua naturalidade, como que para dizer «Áunia não nasceu aqui, aqui se radicou e notabilizou!». As gentes de Lancia Oppidana, sua terra natal, mantiveram, de facto, relações privilegiadas com a população da civitas Igaeditanorum, a darmos crédito à circunstância de outras personagens terem querido deixar exarada essa sua naturalidade em epígrafes. Em suma, logo a forma como vem identificada se revela do maior interesse.
Atente-se, por outro lado, que o monumento é mandado erigir pelas duas filhas. Áunia, pertencente a uma família importante de Lancia Oppidana, a referida gens Arantonia, casou, pois, com um membro da elite local, decerto protegido («cliente», diríamos, para usarmos uma linguagem mais ‘técnica’) de duas famílias notáveis, que tinham, mui provavelmente, participado na ‘criação’ da civitas: a Cocceia e a Naevia. Estes dois gentilícios identificam, na verdade, famílias de renome na Lusitânia; e o que é, neste caso, assaz estranho à primeira vista, é que, filhas do mesmo pai, Avita e Clara hajam recebido gentilícios diversos – como que a mostrar o estrito relacionamento do pai com essas duas famílias influentes.
Por consequência, singelas quatro linhas detêm um significado invulgar. Para os historiadores que os analisam, mas também – e principalmente – para a população de então, porque pais e filhos, mães e filhas, se passeariam por entre epígrafes e curiosidade não lhes faltaria: «Mãe, pai, que diz aqui? Quem foram estas pessoas? E porque lhes escreveram aqui os seus nomes?»... Uma lição de vida, instantâneos de um quotidiano, em que o feminino, não podendo oficialmente ‘falar’ na respublica, sabia muito bem ‘falar’... em público, através de uma mensagem duradoura. Mais duradouras, aliás, que os discursos dos políticos!...


Anexo bibliográfico
Apenas duas ou três menções, susceptíveis de deixar perceber quanto o tema vem despertando, nas últimas quatro décadas, a atenção dos investigadores:

– ALBERTOS (M. de Lourdes), «La mujer hispanorromana atraves de la epigrafia», Revista de la Universidad Complutense, vol. XXVI, nº 109, 1977, 179-198.
– DEL HOYO (Javier), «El sacerdocio femenino, medio de integración de la mujer en las estructuras municipales de gobierno», Epigrafía y Sociedad en Hispania durante el Alto Imperio: Estructuras y Relaciones Sociales (ed. de S. ARMANI, B. HURLET-MARTINEAU e A. U. STYLOW), Alcalá, 2003,
– ENCARNAÇÃO (José d’), «Mães e filhos passeando por entre epígrafes», in Mª Carmen SEVILLANO SAN JOSÉ et alii (edits.), El Conocimiento del Pasado. Una Hierramienta para la Igualdad, Salamanca, 2005, 101-113.
– FERNANDES (Luís), «A presença da mulher na epigrafia do conventus Scallabitanus», Portugalia 19-20 1998-1999 129-228.
– MELCHOR GIL (Enrique), «Mujer y honores pÚblicos en las ciudades de la Bética», in BERRENDONER (Clara), CÉBEILLAC-GERVASONI (Mireille) et LAMOINE (Laurent) [dir.], Le Quotidien Municipal dans l’Occident Romain, Presses Universitaires Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand, 2008, 443-457.
– NAVARRO CABALLERO (Milagros), «Mujer de notable: representación y poder en las ciudades de la Hispania imperial», Epigrafía y Sociedad en Hispania durante el Alto Imperio: Estructuras y Relaciones Sociales (ed. de S. ARMANI, B. HURLET-MARTINEAU e A. U. STYLOW), Alcalá, 2003, 119-127.
– SÁ (Ana Marques de), «Mulheres da civitas Igaeditanorum», Lusitanos e Romanos no Nordeste da Lusitânia (Actas das 2as Jornadas de Património da Beira Interior), Guarda, 2005, 207-213.

Publicado em Philía (Jornal Informativo de História Antiga, Núcleo de Estudos de História Antiga da UERJ, Rio de Janeiro), ano XII, nº 34, Abril/Maio/Junho 2010, p.6.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Postais antigos


Está patente até 30 de Junho, no Espaço Memória dos Exílios, no Estoril, a exposição «O passado nunca passa», postais ilustrados da colecção de José Santos Fernandes, que a legou ao Município de Cascais.
Devidamente tratada e inventariada no Arquivo Municipal, a colecção – de que ora se apresenta uma selecção – proporciona eloquente viagem pelo que tem sido o concelho desde os finais do século XIX até à actualidade, mostrando os aspectos mais significativos, a nível de imóveis, paisagens e costumes…
Têm os municípios dedicado cada vez mais atenção a este tipo de espólio cultural assim como às fotografias antigas, pelo que isso representa como património aos mais diversos níveis: arquitectónico, paisagístico e, até, imaterial. E se os dois primeiros aspectos são facilmente compreensíveis – fotografava-se o que era bonito, original… – ao último nem sempre se dá, à primeira vista, a relevância que ele, na verdade, detém. É que, por detrás de um postal, está uma ideia, uma mentalidade e, inclusive, uma ideologia: divulga-se o que interessa, naquele momento, divulgar. E é bem sabido que, hoje, damos atenção a aspectos da paisagem e das modas a que, noutras eras, se não ligava a menor importância.
Por outro lado, revela-se imprescindível o estudo destas colecções por parte dos técnicos camarários, nomeadamente os responsáveis pelos pareceres em termos de urbanismo e licenciamento de obras de restauro ou requalificação de espaços, pois há memórias a preservar. E mal andará um Município quando os seus responsáveis disso não estiverem conscientes.
Louve-se, por conseguinte: 1º) o exemplo dado por José Fernandes, ao ceder ao Município a colecção; 2º) o excelente trabalho de gabinete levado a efeito pelos técnicos Helena Xavier e João Miguel Henriques, sob orientação de António Carvalho; 3º) a iniciativa da exposição; 4º) o magnífico catálogo (430 páginas!...), que, além de, em miniaturas, reproduzir todos os postais expostos, agrupa geograficamente os mais eloquentes, apresenta significativo prefácio do Professor João Medina e sugestiva autobiografia do doador (nascido em 1952), a recordar os Estoris do seu passado.

Publicado no Jornal de Cascais, nº 216, 20-04-2010, p. 6.

De novo, a casa comum


Já houve ocasião de, na edição de Novembro passado, se chamar a atenção para a importância da casa comum, pelo que ela significa de boa adaptação ao meio e de reflexo de identidade local.
Permita-se-me que volte ao assunto, para assinalar dois aspectos que, se não constituem tipicidades de S. Brás, em S. Brás existem e há que valorizá-los.
Refiro-me, em primeiro lugar, ao telhado de canas. Achei, por exemplo, que teria sido interessante no Centro Museológico do Alportel, que visa reconstituir uma casa das nossas, ter-se feito, num dos ângulos, esse tipo de telhado. Ainda se vai a tempo, aliás, quando forem necessárias obras de conservação.
Mas, para além das cantarias que ornam portas e janelas um pouco por toda a parte, a mostrar a paciência e o saber dos nossos canteiros, chamaria a atenção, como historiador, para as datas gravadas nos lintéis dessas portas e em cartelas nas chaminés. No Corotelo, a casa da Maria Catarina tem, na chaminé, a data de 1895, que assinala a data da primeira construção do casal; todavia, no lintel da porta do acrescento, está 1904! E no portão do que me dizem ter sido o espaço da antiga escola do sítio, a cartela ostenta, a meio do arco:
27
1885
10
para significar 27 de Outubro de 1885.
Dados que não se podem perder e que o Departamento de Cultura camarário necessita de continuar a inventariar, de modo a cotejarem-se depois com as informações do Arquivo Histórico, quando se quiser fazer a história da evolução urbanística dos lugares.

Publicado em «VilAdentro», de S. Brás de Alportel, nº 135 (Abril 2010) p. 10.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Arrieiros de S. Romão


Contava meu pai que, moço pequeno ainda, se escarranchava no macho, altas horas da madrugada, e abalavam para a praça de Olhão. Adormecia, claro, ao andar ritmado da montada, que sabia de cor o caminho: Vilarinhos, Corotelo, Bordeira, Estoi…
Lá regateava o que lhe parecia vir a ser de maior agrado para os fregueses e, decerto quase ao final da manhã, lá soprava na buzina, como que a dizer: «Já cheguei!».
Nunca tive oportunidade de saber pormenores dessa vida de arrieiro de meu pai, mas uma coisa era certa: quando a Carolina ou a Sara, já aqui em Cascais, nos anos 50, vinham, à hora de almoço, propor-lhe que lhes comprasse o resto das sardinhas ou dos carapaus, ele olhava e dizia-lhes: «Três quarteirões tens aí, não chega ao cento; dou-te tanto!». Habitualmente, tentavam contrariá-lo: que não, que era mais o peixe da canastra. «Então, conta!». E meu pai raramente se enganava.
Admirava-lhe essa perícia, assim como o jeito de tocar a buzina (sempre houve uma ou duas lá em casa), de alimar os carapaus, de descabeçar as sardinhas e de as pôr na salmoira, de amanhar tudo quanto era safio, raia, chicharro…
Foi, pois, com o maior agrado que li, na edição do passado mês de Março do nosso Noticias de S. Braz (pág. 19) a poesia obrigada a mote, da autoria de Manuel de Sousa Neves, intitulada «Era assim nos anos 30 e 40», onde um verso rezava assim:
«Os Encarnações vendiam peixe».
A confirmação escrita do que apenas meu pai contara e de que nunca mais ouvira falar. Fiquei curioso de saber mais.

Publicado no Noticias de S. Braz (S. Brás de Alportel), nº 161, 20-04-2010, p. 7.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Vivinha de Cascais


O título da nova revista do Grupo Cénico da Associação Humanitária dos Bombeiros de Cascais, estreada no Gil Vicente, no passado dia 9, tem, para já, duas conotações a reter:
- a primeira lembra o «vivinha da costa», pregão das varinas, a recordar uma Cascais que já foi mais de pescadores do que é, e onde a varina não estava apenas no seu lugar do mercado, mas andava de canastra à cabeça pelas ruas da vila e pelos lugares circunvizinhos;
- a segunda quer mostrar – e mostra! – que há um punhado de gente activa, sacrificada, amante do Teatro, que… está bem viva!
E se o primeiro aspecto acaba por perpassar por quase todos os quadros da divertida revista (a evocação dos temporais da Nazaré recorda também Cascais, naturalmente, assim como a figura específica da varina), o segundo merece todos os encómios, sempre!
São duas horas de bom entretenimento, que nos fazem soltar saborosas gargalhadas, não faltando cor, picante malícia quanto baste, crítica social: os homossexuais são, como sempre, alvo predilecto, muito bem caracterizado, mas há, por exemplo, a visita a uma herdade alentejana pretexto para falar de… reprodução! E o casal de gagos recém-casados, de palavras cheias de… subtilezas!...
Política muito pouca, desta vez, a não ser aqueles aspectos gerais da carestia de vida; de política local, o ‘substituto’ do Estoril-Sol e a Casa das Histórias a lembrar forno crematório… Canções e poesia (ponto alto o hino à maternidade), danças de salão e ritmos modernos. Sentida, emotiva, aplaudida de pé, a homenagem a João Constante, presente na 1ª frisa, com a evocação de alguns dos seus êxitos fadistas.
Alegra-nos muito ver como os novos se entrosaram bem no espírito dos menos jovens em idade mas sempre jovens de espírito. Encantam-nos as coreografias e o guarda-roupa variado e muito original, obra do génio artístico e das mãos experientes de Quim Carvalho, que nunca será de mais enaltecer!
No final, antes das palavras de incentivo do Presidente da Direcção, Dr. Rama da Silva, o testemunho de Natalina José, que ensaiou e teceu rasgados elogios ao dinamismo e espírito de entrega de toda a equipa com que teve o gosto de trabalhar. Equipa que não são apenas os actores, cantores e dançarinos, mas também quantos, nos bastidores, têm tudo a postos para a mudança de roupa enquanto o diabo esfrega um olho! De realçar também a forma inovadora como, em projecção, rapidamente se punham os novos cenários, embora uma que outra vez, a ‘fanhosa’ tenha aparecido, em jeito de compère, para fazer tempo, sempre com muita graça!
Parabéns!

Publicado no Jornal de Cascais, nº 215, 13-04-2010, p. 4.