sexta-feira, 4 de abril de 2014

Resmalhar

           ‒ E como era, avó? Esse lobisomem vinha assim, pé ante pé, como um resmalhar de cobra no pasto? E trazia infusa à cabeça como tu quando vais às bicas? E trazia na infusa o quê, avó? Água benta para jogar sobre as pessoas ou eras tu quem lhe jogava a água benta em cima, para que lhe saísse o diabo do corpo e não atazanasse mais ninguém, era?
            Pelo telhado de canas – um primor de trabalho que eu vira meu pai fazer mais os vizinhos, nos tempos da grande entreajuda – esgueirava-se um ciciar de aragem fria… Fazia-me forte, cheio de curiosidade, que não queria saber de papões, o lobisomem é que contava, nas noites de lua cheia, diziam… Ceara papas de milho com duas postinhas de sardinha de salmoira e até bebera uns golitos de café, nada que me fizesse passar o sono, me desse cabo do estômago ou lhe desse volta ou fosse como apanhar na barriga um murro seco.
            Minha mãe é que ficava mais afeleada com essas curiosidades minhas:
            ‒ O moço pequeno é melhor é ir prá cama, que essas histórias, minha mãe, não lhe dão a volta ao estômago, mas ainda lhe avareiam a cabeça. É melhor: vamos prá deita!
            E eu posso jurar que não rezava nunca o padre-nosso certinho, porque a imagem do lobisomem me atazanava mesmo!...
      
            Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 183, Abril de 2014, p. 10.

 

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