domingo, 4 de junho de 2017

Um velhinho Bairro Operário, em Cascais

             Fiquei, confesso, mui agradavelmente surpreendido com o facto de ter sido dado nome à rua de acesso ao antigo Bairro José Luís, na Pampilheira (Cascais), mais conhecido pela designação de Bairro Operário (Fig. 1).
            Os dizeres da placa (Fig. 2), para quem não é de cá, poderão causar alguma estranheza e alguém poderá até perguntar:
            ‒ Quem foi o operário José Luís?
            Cumpre, pois, dar uma explicação, uma vez que – peço desculpa! – não houve da parte das entidades competentes o cuidado em consultarem um epigrafista (que, por acaso, eu até moro ao lado e foi mesmo nesse bairro que residi quando, em 1948, vim para Cascais), para ser dada uma paginação conveniente e se estudar o módulo das letras, a fim de não haver confusões.

Quem foi José Luís?
            Pois não foi José Luís nenhum operário.
            Trata-se, muito simplesmente, do filho do Conde de Monte Real, um dos maiores beneméritos de Cascais dos primórdios do século XX. O pai, Artur Porto de Melo e Faro (1866-1945), a quem D. Carlos concedeu, por decerto de 21 de Outubro de 1907, o título de 1º Conde de Monte Real, quis assim perpetuar o nome do filho (José Luís Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro, de seu nome completo), que, com o maior desgosto de seus pais, morreu de tenra idade. Por isso, também o seu nome foi dado à creche que o Conde mandou construir junto da igreja matriz.
            Doou ao Município o Sr. Conde de Monte Real os terrenos onde hoje está o aeródromo (que se chama «Conde de Monte Real»), e sonhou para este arrabalde da vila cascalense um bairro destinado aos operários.
            Tive ocasião, em Recantos de Cascais (Colibri, Câmara Municipal de Cascais, 2007, p. 21-24), reproduzir o que escrevera sobre este bairro, a 31 de Janeiro de 2001, na edição de Cascais do Jornal da Região. As 12 primeiras (e únicas) casas foram inauguradas a 12-III-1933, «todas elas apetrechadas com dois pequenos quintais, água encanada e casa de banho, devidamente apetrechada com W. C., tina e chuveiros». Isso era, porém, o princípio e foi o fim, porque do audacioso projecto saído do pioneirismo do Conde e a que o Arq. Jorge Segurado deu mui elogiada forma, nada mais se fez e – pasme-se! – o bem harmonioso conjunto previa «amplo largo a meio, uma escola, duas lavandarias, dois parques infantis, edifício das caldeiras, biblioteca e cooperativa»! Ocupava, por conseguinte, toda a zona (então) de mato entre o (ainda) actual bairro (Fig. 3 e 4) e a Rua do Cobre.
            Para as casas estabeleceram-se dois tipos de rendas mensais: 60 ou 80 escudos «conforme os inquilinos desejarem ser ou não proprietários do prédio que habitem durante 20 anos». Creio bem – aqui para nós – que os serviços camarários não devem ter a menor ideia de que esta cláusula existe…
            Parte da receita dessas rendas ia para a manutenção da Creche «José Luís», o fundo de amortização reforçaria as dotações que «todos os anos a Câmara destinará a novas construções». E nesse ano de 1933, a dotação prevista era já de cem mil escudos.
              Pois que não mais destinou.
            Perguntar-se-á, então, com plena justiça, como é que tão larga extensão de terreno (2160 m no sentido norte-sul, 100 m na sua máxima profundidade) destinada a finalidades sociais (estavam previstos cerca de 238 fogos) de acordo com a visão pioneira de um filantropo (galardoado, aliás, a 18 de Julho de 1938, com a Grã-Cruz da Ordem de Benemerência), resultou no que hoje se vê? E talvez valha a pena explicar, porque, segundo creio, poderá acontecer que isso nunca tenha sido explicado em letra de forma.
            Muito simples: a burocracia ter-se-á embrulhado, as contas deram pró torto, outros interesses e mentalidades se meteram de permeio e o sonho de um exemplar complexo social «virou» mato, onde eu tive ocasião de ir armar aos pássaros ou acompanhar amigos meus no pastoreio de ovelhas (Fig. 5). E mato se manteve até à década de 50, em que se começou a gizar para ali um plano que pudesse não entrar em conflito total com o que a doação do Conde determinara, plano que terá começado a executar-se já na década de 60. Já lá vamos – que importa prestar dois esclarecimentos prévios:
 
            1º) A Pampilheira oriental
            Por mais que as entidades oficiais (e algumas particulares) teimem em considerar que Pampilheira (e assim está sinalizado) é apenas o conjunto de casas a poente da Avenida Engº Adelino Amaro da Costa – e decerto até foi por isso que os super-competentes serviços que superintendem ao trânsito houveram por bem proibir que os habitantes da zona nascente pudessem ir de carro para a zona poente –, o Bairro da Pampilheira tem a sua vida mais ‘vivida’, tanto do ponto de vista populacional como económico e social, na zona oriental, que é onde está, por exemplo, o Hospital da CUF (oficialmente situado no Cobre, mas é mentira!), o Centro de Distribuição Postal (oficialmente situado no Cobre, mas é mentira!), a Cozinha com Alma, um Centro de Dia da Junta de Freguesia, duas creches e jardins de infância, dois parques infantis, o centro de inspecção de automóveis, uma fábrica de meias e um «centro comercial» de bairro que satisfaz todas as necessidades dos moradores.

            2º) A Barraca de Pau
            E permita-se-me que recorde que o núcleo inicial da Pampilheira foi na chamada Barraca de Pau (designação ainda comum entre os cascalenses mais antigos da freguesia de Cascais).
            Uma barraca (Fig. 6), hoje perpetuada em azulejo (Fig. 7) que Manuel Martins mandou colocar no Bairro da Felicidade (Fig. 8 e 9), e que foi taberna, mercearia, drogaria, tudo!... E, de modo especial, centro de convívio dos operários, nomeadamente das pedreiras próximas, que para essas casinhas foram morar. O pai de Manuel Martins era o Zé Martins e a ele se devem essas construções, que foram nascendo aos poucos, consoante as necessidades. Felicidade era o nome de sua mulher.

O plano arquitectado pela Câmara
            Fechemos o parêntesis e voltemos à questão, que é deveras interessante recordar agora, a do plano alternativo.
            Assim (e perdoar-se-me-á se cometo algum erro de pormenor, porque não fiz consultas em arquivos e estou a escrever de acordo com o que vi, por experiência), loteou-se a zona em duas metades.
            Na metade norte, deu-se prioridade às cooperativas de habitação para unidades unifamiliares e aos prédios de rendimento de dois andares (quatro pisos) com a obrigatoriedade de as rendas serem condicionadas (os célebres 1.110$00 mensais!), com prioridade de arrendamento a quem trabalhasse em instituições públicas do concelho e, também, na recém-inaugurada (a 28 de Junho de 1968) Standard Eléctrica. Daí que a maioria dos moradores desta zona do bairro esteja ligada à Standard, às Finanças, ao Tribunal, à Câmara, às diversas conservatórias…
            A metade sul foi dividida em lotes também para moradias unifamiliares. Os compradores tinham obrigação estrita de construir dentro de um prazo relativamente curto, sob pena de o lote voltar à posse do Município.
            Excluiu-se, porém, o «canto» sudeste, que ficou destinado a pequenas indústrias.
            Aí estava já há bastante tempo o estaleiro naval do Parracho; ergueu-se uma metalomecânica de certo vulto e uma fábrica de meias (ainda hoje em actividade). A metalomecânica acabaria por dar lugar, já em tempos recentes, a outras actividades, nomeadamente ligadas à reparação automóvel. Parte da fábrica ficou para o Centro de Distribuição Postal e o espaço a sul está ocupado, como se sabe, pela empresa de inspecção automóvel.
            Discutiu-se longamente o que iria aparecer no pinhal que limitava o bairro nessa área, onde, aliás, ainda se praticava, embora em condições precárias, a criação de gado, facilitada pelo acesso que havia, pela encosta, à Ribeira do Cobre, afluente da Ribeira das Vinhas. Hotel? Hospital? – eram as perguntas. Acabou por vingar a segunda hipótese. E estamos a rezar a todos os santinhos que o pequeno condomínio sito mesmo pegado à CUF não seja chamariz para que se deite abaixo um dos poucos pinhais de pinheiros mansos da freguesia.
            Recorde-se, a talhe de foice, que mais a sul se instalou uma indústria de electrodomésticos, a PETEX – Pedro Pessoa, Comércio e Indústria, Lda, cujas edificações, ora por completo abandonadas (dizem que serão propriedade camarária, porque para ali se previa o traçado da 2ª circular) apresentam um espectáculo deveras degradante a quem nos visita (Fig. 10 e 11) – e por ali passa todo o trânsito que, em direcção à vila, vem da A5.

O olhar do epigrafista
            Perdoar-me-á o leitor se me deixei ir na onda das recordações e acabei por esquecer a pergunta: quem é o «operário» José Luís? Ou melhor: que tem o epigrafista que meter o bedelho na elaboração da placa toponímica? (Fig. 12)
            Não, não vou encanzinar-me por faltar o acento em Luís – paciência! A razão é outra, muito simples: embora a divisão em linhas esteja certa, era preciso ter colocado entre aspas ou entre vírgulas altas o nome do bairro: «José Luís» ou ‘José Luís’.
            E permita-se-me que, a terminar, me congratule com o facto de, assim, com esta placa, se registar o que apenas na linguagem oral se documentava: no nosso dia-a-dia, o bairro sempre se chamou «Bairro Operário», porque foi exactamente o primeiro aqui destinado a operários, em contraposição com o que se situa junto da Rua José Florindo, que é o «Bairro dos Pescadores».
 
             Cascais, 4 de Junho de 2017
 
                                                                 José d’Encarnação
 
Em 1º plano, a Rua Bairro Operário José Luís

A mui recente placa toponímica

Bº Operário - Demolição

O 1º lote de casas já foi demolido
e deu lugar a um parque de estacionamento,
que serve, sobretudo, os utentes do Hospital CUF.

Zona da actual Pampilheira -
corrida de bicicletas datável da década de 30.

A Barraca de Pau nos anos 30.

Barraca de Pau - azulejo. Tem a legenda Campina 2-XII-1927.
A menina bebé, em 1º plano, pode ser a representação
da Srª Felicidade, que veio a dar nome ao pequeno bairro.
A antiga placa identificativa do bairro.

Bairro da Felicidade, na actualidade,
com a chaminé da antiga padaria.

A degradação salta à vista!

Uma figueira-da-índia empresta um ar exótico ao local.

O letreiro da placa toponímica.
 

16 comentários:

  1. Maria Cândida Ferreira
    Também lá vivi nos anos 70/80..... nas casas já demolidas... Um crime feito pela Câmara Municipal de Cascais!!!!!

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  2. Katia Levieuge
    Quantas férias passadas com os meus queridos avós neste bairro operário!... Saudades!...

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  3. Vasco Silva
    Para o espaço das edificações da PETEX estão previstas umas torres. É possível ver o anúncio da futura urbanização colado num poste de iluminação na dita rotunda; para o pinhal não se agoira grande futuro, pois está à venda o terreno.

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    1. A PETEX saiu, porque se previa a continuação da 2ª circular, ou seja, o prolongamento da Av. Infante D. Henrique (hoje, na parte oriental, dedicada a Raul Solnado. Opinou-se que a travessia da Ribeira das Vinhas obrigaria a dispendiosas obras de engenharia e o projecto ficou na gaveta à espera de melhores dias.
      Quando vi o painel a anunciar a venda do pinhal, junto ao Hospital da CUF, apressei-me a contactar as autoridades (CMC e Junta de Freguesia); foi-me garantido que não haveria ali urbanização nenhuma; de facto, não consta no PDM actual. Vamos ver!

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  4. Marcelina Neves
    Meu caro Prof. José d'Encarnação, Se me permite, vou publicar na minha página o seu interessante texto sobre a história do Bairro Operário, para que chegue ao conhecimento de mais conterrâneos, especialmente os mais novos. Um abraço e muito obrigada.

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    1. Claro! A minha intenção foi mesmo essa: explicar aos nossos conterrâneos, especialmente aos que detêm funções autárquicas e são bem novos em Cascais, que há locais que têm tradições, que, de vez em quando, urge recordar. Para que conste.

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  5. Carla Santos Brito
    Professor, tudo o que elucide e faça questionar é de grande valia!
    Vou levar "emprestado"!
    Obg.

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  6. Obrigado, Professor, por MAIS esta publicação. Já quando ambos escrevíamos no "Jornal da Costa do Sol", me deliciava com os seus textos, especialmente porque descrevia COM CONHECIMENTO, assuntos relacionados com a área Birre / Cobre. É bom que fiquem estes registos de QUEM SABE, para que os vindouros possam recorrer a eles. Como diz, aparece por aí muita gente sem o mínimo conhecimento da realidade e "misturam" tudo a seu belo prazer, deturpando tudo. Tento também fazer alguns registos sobre a zona onde vivo há mais de 70 anos, (Penedo) pois também por aqui alteram designações e limites das povoações. Tanto mais grave, quanto autarcas em exercício há mais de 20 anos, não saberem (ou fazem por não saber)os limites das suas áreas....

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  7. Vera Araújo Soares 17/6 às 23:50
    Como é bom ter um Sr. Professor como amigo! Obrigada, Zé! Parte da história conhecia, mas tão completa não. Obrigada, mais uma vez!...


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  8. Paulo Nunes 19/6 às 13:33
    Obrigado, ZÉ, por dares a conhecer estes bairros e a sua história.

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  9. Lourenço Sousa 19/6 às 14:51
    Obrigado, Professor Zé d'Encarnação, por me fazeres recordar velhos tempos. Um abraço.

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  10. Caro José d'Encarnação,
    Parabéns pelo artigo/esclarecimento toponímico. Partilho do seu interesse pelo património local, seu conhecimento e divulgação.
    Confesso, porém, que o me chamou mais à atenção no seu texto foi a creche fundada pelo conde. Encontro-me a realizar um estudo doutoral na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em de História da Educação e nesse âmbito estou a fazer um levantamento da criação de Creches em Portugal até 1974.
    Por estes motivos, ouso solicitar-lhe apoio em indicação de fontes ou bibliografia sobre esta creche em Cascais, da qual penso existir uma foto na Torre do Tombo (PT/TT/EPJS/SF/001-001/0027/1487h).
    Desde já muito grata, subscrevo-me.
    Eva Cristina Ventura Baptista

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    1. A creche está a ser gerida agora pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais, em cujos arquivos encontrará a documentação de que necessita. Pode fazer-me as perguntas que eu transmitirei a quem poderá ter as respostas.

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  11. Muito obrigada pela sua atenção.Sabe dizer-me quando é que a creche foi desativada?
    Muito grata,
    Eva Baptista

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  12. - O contrato existente entre a CMC e a SCMC, foi resolvido, por mútuo acordo, com efeitos a partir de 31 de julho de 2017.
    - A CMC cedeu o prédio à Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Nossa Senhora da Assunção e Ressurreição de Cristo (Paróquia de Nossa Senhora da Assunção e Ressurreição de Cristo), para serviços.

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