quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cascais de entranhas picadas

             Por mais que finja, o escritor, de prosa ou de poesia, arrasta consigo o peso do que foi – ou é – o seu existir, a forma como, ao longo da vida, encarou o mundo que o rodeia. Nem sempre terá havido da sua parte uma consciência exacta do que se passava; mais tarde, porém, chegado aos 60, 70 até mais, ao reflectir sobre o passado, não só este lhe surge mais nítido (é a lei da vida!) como nele acaba por reconhecer virtudes ou defeitos de que, na altura, não lograra ter consciência.
            Celestino Costa, por exemplo, plasmou nos seus livros A Minha Terra e Eu (1992 e 1995) e Filosofia Saloia (1998) o que ora bem se recorda dos costumes vividos na freguesia de S. Domingos de Rana, em meados do século passado, quando era jovem e começava a ser adulto. Não admira, por isso, que Maria Micaela Soares, ao traçar as características da vida dessa Cascais de outrora, no seu inigualável livro Saloios de Cascais – Etnografia e Linguagem (Cascais, Abril de 2013) cite, por exemplo, versos do Celestino, a propósito do ciclo do pão e dos arreigados hábitos que pelas aldeias o rodeavam.
            Júlio Conrado tem outro olhar. Não o alicia a História como ciência nem os costumes do prisma do etnólogo ou do historiador. Nesta 3ª versão (Junho de 2017) de As Pessoas de Minha Casa – e «casa» são os ambientes por onde passou, desde a infância até agora – tudo escalpeliza sem dó nem piedade, cruamente, embrenhando-nos por caminhos que foram de muitos de nós, mas de que, por prudência, por medo ou por eventual pudor, até nem sonhamos querer recordar, quanto mais esmiuçá-los tintim por tintim, sem rodeios, por escrito.
            Sim, temos aí o ambiente vivido por pessoas na sequência de Revolução de Abril. Por pessoas. Com tudo o que a revolução trouxe de novo a nível íntimo, de convicções, de liberdade. Mas Júlio Conrado acabou por querer mostrar também o que fora o círculo dos seus relacionamentos desde a infância. Não insistirei em que se trata, esse, de um romance autobiográfico, classificação que, mui logicamente, o autor desde logo abjura; pode não estar ele retratado no protagonista, mas podia estar. E, para nós, os que, até por deformação profissional, procuramos reconstituir o que foi a vida desta Cascais desde Carcavelos ao Guincho em meados do século passado, isso pesa pouco na balança do historiador.
            Não se põem, contudo, as mãos no fogo se pensarmos em excluir esse jovem do número daqueles que, na praia de Carcavelos, estavam à espera do assobio do Tó Zé banheiro para irem ver «gajas nuas na cabina do chuveiro delas que merecem uma espreitadela pelo buraco que o Tó cuidadosamente descerrava, afastando a bóia, dependurada, que o cobria» (p. 180).
            Como o não excluímos das cenas da Instrução Primária, em que pontificava um «xenhor profexor», «beirão que elegera a expressão sê burro como invectiva favorita», «dois tostões para a caixa escolar. Datar, enumerar, carradas de pleitos contra sarracenos e negros», e que não hesitava em «malhar, cego, na tenra carne ao alcance da sua chibata» (p. 159).
            Descrição realista de um mundo que era assim, bem no sabemos.
            Duas outras descrições não resisto eu a partilhar, porque observadas de fora, num sarcasmo. De caminho, uma referência: «O emprego na Câmara, doze notas de cem de ordenado, catita para a época e para um chavaleco solteiro. O homem da situação que me arranjara trabalho na secretaria municipal agarrar-se-á a essa bóia depois do 25 para se sacudir de responsabilidades, argumentando que até dera dinheiro a ganhar a tipos do contra» (p. 58). E isso é preâmbulo para a refinada descrição da tradicional procissão cascalense da sexta-feira santa:
            «As autoridades descem a Marginal, integradas na procissão. O presidente da Câmara, o chefe da polícia, o tesoureiro da Fazenda, o comandante da Unidade, e talvez o representante local da secreta, marcham sob o pálio sem nenhum remorso. Chefia o desfila o pároco de anafados atributos gerindo a presença de Cristo entre aqueles senhores tão bem-postos e com uma compunção muito cangalheira nas fisionomias mas finórios como raposas na luta pela sobrevivência» (p. 58).
            Relata-se, mais adiante, o que poderia ter sido – e, se calhar, foi – a reacção perante os novos ritmos introduzidos nos bailes do Gil:
            «Quadrilheiras indignadas imprecam forte e feio desde os lugares reservados da sala. O baile deu neste circo, Senhor meu que já estais no céu a esta hora, mesmo de aí olhai como se vai perdendo a fé nesta santa terra, é vê-las largar as pernas pelas ancas deles, é vê-los pegar nelas como sacas de batatas, aluga a gente um camarote por um dinheirão para lhe sair na rifa uma bandalheira assim» (p. 59).
            Falas passadas a escrito, sem papas na língua. A certeira agulha da eficaz vacinação.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 223, 2018-02-28, p. 6.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Três Meses no Limoeiro

            Tem pugnado Fernanda Frazão, a responsável pela editora Apenas Livros, por dar a conhecer textos que caíram no domínio público e que se revestem, afinal, de um perene interesse. Vai vasculhando aqui e além e acaba por encontrar verdadeiras preciosidades.
            Assim aconteceu com Um Português Derretido (A Pitoresca História de D. Álvaro Pires de Castro, 1º Marquês de Cascais, a cuja edição, no ano passado, quis mui gentilmente associar a Associação Cultural de Cascais.
            Isso mesmo sucedeu agora com a história de Faustino da Fonseca (Angra do Heroísmo, 1871 – Lisboa, 1918), que, em Três Meses no Limoeiro, conta miudamente o que foi a sua permanência em tão sinistro calabouço, de 7 de Agosto e 6 de Novembro de 1896, preso por ter ousado criticar, em artigo publicado no jornal A Vanguarda, «a falta de prestação de contas da Câmara Municipal de Lisboa relativamente à subscrição nacional motivada pelo Ultimato Inglês».
            No texto preliminar, datado do Limoeiro a 24 de Outubro de 1896, queixa-se Faustino da Fonseca do seu «isolamento forçado» e, por isso, impedido de fazer outra coisa, entreteve-se a escrever «ligeiras notas», «sem nenhumas pretensões». Declara que vai expor «o que é a cadeia, o que foi, o que deveria ser» e acrescenta:
            «Colhi, compilei e publico dados estatísticos inéditos».
            Uma forma, confessa, de lembrar esses «três meses longos, fastidiosos, intermináveis, aborrecidíssimos».
            Aborrecido não vai ficar, porém, quem se der ao trabalho de o seguir nestas perto de 120 páginas, que se lêem de afogadilho.
            Congratulo-me, pois, vivamente com a mui válida iniciativa de Fernanda Frazão.

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 2018-02-22:

O nome de Óscar Ribas perpetuado no Cabreiro

            O nome do escritor angolano Óscar Ribas está agora perpetuado na toponímia do lugar do Cabreiro, freguesia de Alcabideche.
            Correspondeu assim a Junta de Freguesia a uma proposta que lhe fora feita nesse sentido, porque o escritor passou os últimos anos de sua vida no Lar da Santa Casa de Misericórdia de Cascais, nas Fisgas (Alcoitão), desde 1983 até ao seu falecimento, a 18 de Junho de 2004.
            Nascera em Luanda a 17 de Agosto de 1909. Perdeu a visão aos 36 anos, como consequência de uma doença congénita (retinite pigmentária), mas isso não o impediu de sempre trabalhar na preservação, pela escrita, da memória tradicional angolana.
            Publicou 15 livros, dos quais «Cultuando as Musas» (1993), o único de poesia, foi apresentado no Teatro Mirita Casimiro, no Monte Estoril. O seu «Dicionário de Regionalismos Angolanos», solenemente lançado em Lisboa, constitui, sem dúvida, a sua obra maior, pelo exaustivo trabalho de pesquisa que representa. Foi o seu penúltimo trabalho publicado, porquanto ainda teve ocasião de ter em letra de forma mais um, «Temas da Vida Angolana e Suas Incidências», embora nunca tivesse havido oportunidade de publicamente ser apresentado.
            O Município de Cascais atribuiu-lhe a medalha de mérito cultural e, a 26 de Maio de 2000, em que se comemorou o Dia de África, prestou-lhe significativa homenagem.
            É Óscar Ribas, que tem museu com o seu nome em Luanda, um dos maiores expoentes da cultura angolana. No seu amplo quarto do Lar das Fisgas, recebia amiúde não só as personalidades que faziam questão em o visitar como muitos alunos que da sua boca (de «Pai Velho») gostavam de ouvir as histórias das suas peregrinações – suas e dos seus muitos informantes – pelo território angolano em demanda do que era típico, mormente no domínio da linguagem e dos costumes. Não pode estudar-se a Etnologia de Angola sem referir o nome de Óscar Ribas.
            Tive ocasião de privar com ele durante bastante anos e com ele muito aprendi, por ser, na verdade, um grande exemplo de tenacidade e de perseverança, apesar das adversidades.
            Congratulo-me, pois, vivamente com a iniciativa da Junta. E o lugar do Cabreiro, onde agora se evoca o seu nome, pode significar, pelo progresso que está registando e por se encontrar assim quase dependurado nas faldas da serra, o aconchego visual que Óscar Ribas não pôde ter, mas que nas Fisgas bem sentia, pelos temperados ares que também ali da serra sopravam e que ele certamente imaginava verde e bonita, não como as paisagens angolanas, mas de uma beleza diferente e inspiradora.
                                                                    José d’Encarnação


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A companhia de teatro Palco 13 não pára!

            A companhia de teatro Palco 13, mau grado a sua aparente pequenez (as aparências iludem!..), continua com uma programação a fazer jus ao grande dinamismo dos seus responsáveis.
            «Cheia de trabalho», confidenciou-nos a Maria João, que continuou:
            ‒ Neste momento, temos uma programação infantil com quatro trabalhos diferentes, todos os fins-de-semana. Estreamos uma versão musical do «Sonho de uma Noite de Verão» no dia 24 e já começámos os ensaios da nova peça que estreia no início de Abril. Por isso, como vê, o trabalho não falta. Em Abril, aos sábados, vamos ter três espectáculos diferentes: um de manhã, outro à tarde e ainda um terceiro à noite. Para uma companhia como a nossa, não está nada mau, não acha?
            Evidentemente que não é nada mau. E o nosso voto é de que essa versão musical da famosa peça de Shakespeare, com música de Lúcia Moniz, encenação de Marco Medeiros e numa adaptação da própria Maria João Afonso, faça acorrer muita gente ao aconchego da salinha do Auditório Fernando Lopes-Graça, ali no Parque Palmela, em Cascais.
            Que o novo êxito venha a somar-se aos anteriores!
 
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 19-02-2018:

 

 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Isto já não vai com palmas, Carlos!

            Adelino da Palma Carlos esteve como primeiro-ministro de Portugal de 16 de Maio a 18 de Julho de 1974. Pouco tempo depois do 25 de Abril e, por conseguinte, os ímpetos revolucionários exigiam pulso forte e a maior clarividência. Daí que, após escassas semanas de governação, se tivesse começado a espalhar o dito, naquele jeito bem português de brincar com as palavras:
            ‒ Isso já não vai com palmas, Carlos!
            Lembrei-me desse tempo, ao ler o que o nosso presidente da Câmara confidenciou ao director do Notícias de S. Braz, na habitual coluna «Em Discurso Directo», em que «responde todos os meses às nossas questões», atitude que não pode deixar de ser muito aplaudida e que, infelizmente, não é seguida em outros concelhos (também nisto S. Brás está muito à frente! Abençoado!).
            Interpelado sobre o «velho tema que continua a inquietar os são-brasenses, a situação do Centro de Reabilitação», respondeu:
            «Tantas têm sido as diligências, os contactos, as reuniões, as moções, as cartas, as posições tomadas. Infelizmente, apesar de terem sido já tomadas algumas medidas (…), o Centro ainda não recuperou o seu pleno funcionamento e mantém muitas camas de internamento ainda fechadas, sobretudo pela falta de pessoal, nomeadamente de enfermeiros».
            E diz Vítor Guerreiro, a concluir:
            «Não baixaremos os braços até que o Centro tenha a funcionar todas as suas valências não apenas no ambulatório, mas em todas as suas 50 camas de internamento».
            E é aqui que eu entro: «Isso já não vai com palmas, Vítor!».
            Também na Escola Superior de Dança – e dou apenas esse exemplo – foram, durante meses, inúmeras «as diligências, os contactos, as reuniões, as moções, as cartas, as posições tomadas». E como se obteve a solução? Pondo a boca no trombone! Vindo para a rua, para a Comunicação Social, clamar! Eu sei que o governo de Lisboa é da mesma cor política e que, se calhar, até nem convirá muito fazer ondas. Mas… não diz o Governo que quer resolver os problemas das populações? Não foi para isso que foi eleito – tal como o foram os autarcas? Então, venha-se para a rua! Que isto já não vai lá «com palmas, Carlos!».

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 255, 20-02-2018, p. 13.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Patrimoniices cascalenses - 2

         Acolheu o director do Jornal da Região a minha proposta de, quinzenalmente, lançar um desafio aos leitores da edição de Cascais, perguntando-lhes se têm ideia onde se poderá encontrar o 'pedaço' de património patente numa fotografia.
         E a pergunta é:

                                         Ora então descubra lá:
                                         Onde é que isto está?

          O primeiro desafio foi publicado na edição do dia 15. Colo-a de seguida e atrevo-me a fazer uma pergunta complementar: desperta-lhe a iniciativa algum interesse? Como diria alguém: conte-me tudo!


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Depois, um dia, lembras-te!

             Meu filho ofereceu-me o livro As velas ardem até ao fim, do húngaro Sándor Márai. A 28ª edição, de Janeiro de 2017; a 1ª edição portuguesa, de Outubro de 2001. Um êxito, portanto.
            A história de dois grandes amigos desde a infância, um da alta burguesia, com seu palácio, domínios, criados; o outro, emigrante, filho de gente da Galiza com dificuldades. A diferença de estatuto económico e social não se faz sentir, porque ambos seguem a carreira militar e o gosto pela música preenche, no de origem galega, clivagens eventuais. Um dia, este demanda os trópicos, sem mais nem menos (pensa-se), e o general mantém a recordação, que vem a lume, em longa conversa, que faz a riqueza do entrecho, aos 73 anos, num jantar de reencontro. Desvenda-se a traição à amizade pura; Konrád veio, ouviu, calou e sumiu…
            Agrada-nos a evocação do primeiro quartel do século XX. Os ideais da Revolução Russa rapidamente chegam aos trópicos, onde Konrád estava, mas os cânones da alta sociedade da Europa Central ainda se mantinham bem vivos.
            Sublinhei esta passagem: «Grandes acontecimentos, passados dez ou vinte anos, descobre-se que não alteraram nada dentro de ti. Depois um dia lembras-te duma caçada, duma passagem dum livro ou deste quarto» (p. 72).
            E estoutra: «Agora que estou velho, penso muito na minha infância. Dizem que esse processo é natural. Uma pessoa recorda-se do início mais intensa e precisamente quando o fim se aproxima» (p. 79).
            Assim é, de facto. E deixei-me também eu levar… E, não sei porquê, talvez por estar a ler num ambiente com aquecimento central, lembrei-me do fogão a petróleo, de um cobre reluzente (minha mãe fazia questão em tê-lo bem areado), que eu próprio, catraio, manuseava para fazer o almoço. Deitava o álcool desnaturado (era azul) no pequeno reservatório, puxava-lhe fogo com um fósforo, deixava aquecer a cabeça e, quando já estava incandescente, dava à bomba para o petróleo subir com pressão, por um buraquinho milimétrico, previamente desentupido com um apetrecho de dois araminhos. O espalhador encarregava-se de alargar a chama e o som forte e monótono do seu trabalhar consolava-nos, na esperança de um caldo verde a condizer… Do que eu me havia de lembrar!...

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 725, 15-02-2018, p. 11.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Cascais em meados do século XX

             Propõem os puristas que só pode fazer-se História, no sentido científico do termo, passado bastante tempo sobre os acontecimentos ocorridos. Não deixam de ter razão, porque os anos ajudam a sedimentar ideias e também motivações de outrora amiúde permanecem ocultas até ao dia em que alguém se decide a revelá-las ou um investigador topa inesperado documento elucidativo.
            Há, pois, alguma relutância em fazer a História de Cascais em meados do século XX. Teremos pulsões escondidas ainda por vir ao de cima; há, contudo, uma História dos acontecimentos que pode escrever-se, embora nem sempre se compreenda por que determinada decisão camarária se tomou num rumo quando se estava mesmo a ver que poderia ter sido tomada noutro. E nem para isso nos servem as actas das sessões!...
            Penso que, para fazer essa história, assume papel relevante a imprensa local e regional. Em Cascais como em Arruda dos Vinhos ou em Castelo Branco. Nessa época, os jornais eram mais da comunidade, até contavam de casamentos, baptizados e falecimentos. E os autarcas não se amofinavam quando o correspondente de uma localidade clamava contra o mau estado dos caminhos ou a falta de água ou o cheiro nauseabundo dos esgotos. Tudo isso se interpretava como exercício de cidadania e era bem aceite. E a imprensa fazia-se eco não apenas das deliberações camarárias ou das propaladas intenções de autarcas mas também do que se passava nas colectividades, dos bailes de benefício em prol do vizinho que estava para ser operado e não dispunha de meios para o efeito...
            Por conseguinte, não há, a meu ver, possibilidade de fazer uma história real da Cascais dos anos 50 e 60 sem o recurso miúdo aos jornais, que eram, na altura, o A Nossa Terra, propriedade do Grupo Dramático e Sportivo de Cascais, e, a partir de 25 de Abril de 1964, o Jornal da Costa do Sol.
            Direi que foram de grande efervescência na vila os anos 60, como, de resto, o foram por essa Europa Ocidental, porque o Maio de 68 não apareceu do nada, compreende-se. Designadamente no âmbito da Cultura, Cascais deu cartas no Teatro (criou-se o Teatro Experimental de Cascais), nas exposições de Arte (por exemplo, na Junta de Turismo da Costa do Sol, por clarividente iniciativa de Serra e Moura, e na galeria do Casino), nas manifestações musicais (quem há aí que não lembre os festivais de jazz, no Pavilhão dos Desportos, pela sabedora mão de Luís Villas-Boas?)… E também os jornais da capital mui gostosamente se faziam eco desses acontecimentos.
            Há, todavia, um outro meio a não menosprezar: os livros. Não apenas os livros de Cultura propriamente ditos – e nunca será de mais realçar a importância da chamada «Colecção do Centenário», em boa hora lançada pelo Município, para comemorar os 600 anos de elevação de Cascais a vila – mas os livros de ficção que têm Cascais como cenário.
            Um nome tem de se referir: o de Correia de Morais. As suas delirantes crónicas sociais publicadas e muito lidas nos jornais lisboetas acabaram por ser reunidas em volume. E eu não posso deixar de salientar dois: O Meu Dono e Eu (1989) e O Céu Precisa de Gente (1990). Ainda não se pensava por i em relatar o dia-a-dia através do sentir de um animal doméstico e já o Corgo escalpelizava a sociedade que o dono frequentava. Por outro lado, O Céu Precisa de Gente, sob a aparência de um livro religioso, é a deliciosa descrição das noites cascalenses, porque S. Pedro encarregara o Diabo de descer a Cascais para carrear almas para o Céu e o Diabo mete-se por tudo quanto é sítio na vila e não há ninguém que almeje repousar no Paraíso!...
            Perguntar-se-á a razão destas evocações. A motivação próxima – e disso haveremos de falar – foi a recente edição, a 3ª (Junho de 2017), bastante renovada, do livro de Júlio Conrado, As Pessoas de Minha Casa. Aí não é apenas a Carcavelos da sua infância e juventude, nos anos 40, mas também a Cascais dos anos 60 e, até, da actualidade, que, com cruas e bem acertadas frechas, o autor se deleita em escalpelizar.
            A imprensa e os livros – mananciais de uma história quotidiana, onde homens e mulheres concretos se movimentam. A descobrir!
                                                        José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 221, 14-02-2018, p. 6.

 

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Bailavam os corpos, bailavam os braços, bailavam os arcos…

            Pelo final da tarde neblinosa, o mar a cingir-se de cinza além no horizonte, bailavam os corpos, bailavam os braços, bailavam os arcos frenéticos no foyer panorâmico do Casino Estoril. Não se dava pelo tempo passar, inebriados que estávamos pelo melodioso encanto que, mui virtuosamente, rescendia do sexteto, de cada um dos seus elementos.
            Difícil será transmitir a ímpar experiência sentida, porque um concerto assim, executado por artistas de renome internacional, habituados a tocar nas mais celebradas salas de música do mundo, a um concerto assim raramente nos será dado assistir. Eu escrevi «assistir», mas essa não é, certamente, a palavra certa, porque a música penetrou intimamente, sem dúvida, nos 150 espectadores que, indiferentes à cacimba, os fomos ali escutar. Não assistimos: vivemos!
            Falar de virtuosismo é pouco; não acho, porém, outra palavra. O alemão Laurent Albrecht Breuninger fazia dançar o seu violino e todo ele vibrava: uma actuação inigualável! A seu lado, Maria Castro Balbi, francesa de origem peruana, não lhe ficava atrás – e do seu violino saíram melodias esplendorosas também. Bin Chao, de nacionalidade chinesa, que se mudou para Lisboa em 1991, foi exímio na sua violeta, ora em diálogo ora em sintonia com a violeta do português Alexandre Delgado, lisboeta. No som macio e grave dos violoncelos esteve a, também lisboeta, Irene Lima, docente de Música de Câmara na Escola Superior de Música e o russo Guenrikh Elessine, um duo amiúde em diálogo e a docemente responder aos ora maviosos ora estridentes agudos dos violinos.
            Foi o primeiro dia, sábado, 3 de Fevereiro, das Schubertíadas, uma iniciativa da Fundação D. Luís I e do Casino Estoril. Ouvimos, de Johannes Brahms, os quatro andamentos (deliciou-me, de modo especial, o scherzo do segundo) do «Sexteto de Cordas nº 2 em sol maior, op. 36»; após o intervalo, outro sexteto, neste caso em ré maior, o célebre «Souvenir de Florence», op. 70, de Tchaikosvki, cujo quarto andamento (allegro vivace), o final, exige dos executantes extraordinária precisão e que, francamente, a todos arrebatou, inclusive pelo transbordante entusiasmo com que os músicos a ele se entregaram.
            Momentos de sumo deleite, que dificilmente se olvidarão.
            As Schubertíadas prosseguiram no domingo, novamente a partir das 17 horas, com obras dos mesmos dois compositores, mas serão trios com piano: o nº 1 em si maior, op. 8, de Brahms, e a op. 50, «À memória dum grande artista», em lá menor, de Tchaikosvki. Ao violino, Laurent Albrecht Breuninger; ao violoncelo, Guenrikh Elessine; ao piano, o moscovita Alexei Eremine.

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 04-02-2018:

Pisão mostra Casa dos Lagares

            No âmbito das comemorações dos 33 anos de gestão da Misericórdia de Cascais no Centro de Apoio Social do Pisão, sito no vale da Ribeira do Pisão, a norte de Alcabideche (Cascais), houve convite para, na tarde do passado dia 2, se visitar o Núcleo Histórico e Cultural “Casa dos Lagares”.
A placa identificativa
            Trata-se da reabilitação feita há já algum tempo da área da quinta que albergava o pisão (daí lhe adveio o nome). Um lagar de que se lograram recuperar não apenas o piso circular em que se apoiava o seirão cheio de azeitonas para esmagar, mas também o lagar de vinho com os tanques necessários para a produção.
            Descarnaram-se as paredes, a fim de se saber como era o edifício outrora e todo o espaço foi preenchido com a exposição de mobiliário e de objectos antigos, memórias de um tempo que passou. Destaque vai, por exemplo, para uma cadeira da barbearia, pois, como se sabe, ali funcionou durante décadas, em regime semiprisional, a «Mitra», que se preconizava fosse auto-suficiente.
            Na página que o Centro detém no Facebook https://www.facebook.com/events/195509617698703/ pode ler-se o seguinte:
            «O Centro de Apoio Social do Pisão foi a partir dos anos 40 e até 1985, o Albergue de Mendicidade da Mitra, designado de Colónia Penal Agrícola do Pisão.
            Durante o Estado Novo, de acordo com uma política de “regeneração social”, toda a população considerada “marginal” – pobres, sem abrigo, ladrões, homossexuais e doentes mentais… – era encaminhada para os Albergues de Mendicidade.
            A Colónia do Pisão, afastada das outras localidades, rodeada por uma vasta área florestal e de exploração agropecuária com mais de 300 hectares, constituía o espaço propício para o isolamento e punição. Aqui, os albergados trabalhavam na agricultura, na pecuária, na construção dos edifícios da colónia, na exploração florestal, pedreira, fornos de cal e outros trabalhos de autossubsistência, sob a disciplina policial.
            A 2 de Fevereiro de 1985, o Pisão passa a ser gerido pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais, mediante acordo de gestão com o Instituto da Segurança Social.
            Ao chegar a este Centro, a Misericórdia iniciou o seu trabalho pela humanização do espaço, pelo cuidar das pessoas, por melhorar os espaços existentes, por proporcionar hábitos de vivência em comunidade e de procurar laços familiares e de dar afecto aos que aqui se encontravam.»
            Várias dezenas de amigos da Misericórdia acederam ao apelo e, visivelmente surpreendidos, percorreram os espaços que constituem o Núcleo. A dada altura, cantaram-se os parabéns e saboreou-se uma fatia de bolo de aniversário. 33 anos consagram, sem dúvida, uma data simbólica. – J. d’E.

Publicado em Cyberjornal, 4 de Fevereiro de 2018:

                                                            José d'Encarnação
A casa que tem ao meio o sítio para o seirão


Cadeira dre barbeiro, central telefónica, formas de sapateiro...

A Colónia Penal... Uma foto do tempo do Estado Novo...
 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Sem aviões nem carros nem algazarra de crianças!

            Nunca me sentira assim. Anacoreta. Avassalador, o silêncio. Barrei a fatia de pão com manteiga e admirei-me do som que a faca fazia. Nunca me fora dado ouvi-lo tão nitidamente! E o cair gorgolejante do sumo no copo.
            Imponente, o sossego da casa! Um silêncio a que já não estava habituado. Não sinto, porém, necessidade das sirenes das ambulâncias nem dos ladrados dos cães ou do arrulhar das rolas. Não oiço aviões nem carros nem vizinhos nem algazarra de crianças. Parece-me impossível estar em Penge. A metrópole e o seu bulício ficaram… longe. Aqui, até o céu é azul!
            Vi pela janela uma ave poisar num dos ramos, nu como todos os outros neste Inverno a sonhar já com a Primavera que tarda. Pombo? Talvez. Não conheço a fauna daqui, o mistério dos bairros suburbanos da grande metrópole londrina, em que o rural se casa à perfeição com o urbano. Admirei-me de a ver sozinha, quando, no jardim de minha casa, as felosas pretas e os fuinhos e as rolas andam aos pares; até na periferia do olival aonde levo o Spike a passear, há uma família de melros!
«Viste como eu me safei?»
            Apareceu-me agora um esquilo cinzento a saltar mui agilmente de ramo em ramo, milagre de equilíbrio. Tem na boca um pedaço grande branco. O petisco que logrou apanhar. Saltou, saltou, até que o foi guardar na ponta da árvore com muitos raminhos entrelaçados. E afastou-se uns metros, para se lamber. Senhora a aperaltar-se, diria. Eis senão quando, há dois outros que vêm de baixo. Lá vão de ramo em ramo. O primeiro espreita-os. Sente que estará em perigo o petisco. E está. Foi descoberto. Engalfinham-se em disputa, o petisco cai, sem que se apercebam para onde. Eu estou a vê-lo bem, no chão. E o esquilo, agora, parece lamentar o sucedido. Outro petisco virá, decerto. Não. Afinal, o seu desinteresse era meramente aparente, para que os outros não desconfiassem. Sorrateiramente, foi descendo de mansinho, passeou pelo jardim aos saltinhos e… foi direito ao petisco caído! Olhou para mim, como que a dizer-me «viste como me safei?» e esgueirou-se para um canto, a saboreá-lo às escondidas, aqui ao pé da janela. Abençoado!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado no Renascimento (Mangualde), nº 724, 1 de Fevereiro de 2018, p. 11.

Gastrónomos homenageiam Nuno Lima de Carvalho

            Fundador, com Francisco Sampaio, da Confraria dos Gastrónomos do Minho, Nuno Lima de Carvalho, que nasceu no concelho de Viana do Castelo (15 de Junho de 1932), foi homenageado, com um almoço, no sábado, 27 de Janeiro, na Estalagem Muchaxo, no Guincho.
            Presentes inúmeros confrades, para além de amigos que foi granjeando com a sua dinâmica actividade no Casino Estoril.
Nuno Lima de Carvalho,
em traje de confrade
            Na verdade, Nuno Lima de Carvalho, director da galeria de arte desde 1975, promoveu, enquanto secretário-geral da Estoril-Sol, os mais conceituados certames gastronómicos. ¿Quem haverá aí que não recorde com prazer e saudade as Semanas da Baía, da Galiza, de Trás-os-Montes… iniciativas que guindaram o Casino Estoril ao mais alto nível do que então se fazia para promoção das artes, do artesanato, do folclore e da gastronomia, chamando ao Casino os cozinheiros dos mais conceituados restaurantes de cada região? Ainda a gastronomia não tinha o estatuto nobre que hoje se lhe atribui e já Nuno Lima de Carvalho lho outorgava através dessas invulgares actividades.
            Como já se torna mais complicado ir daqui a Viana, foram os vianenses que se deslocaram a Cascais, trajados a rigor, fazendo-se acompanhar de elementos de um rancho folclórico, para mostrar também a garrida alegria das danças e cantares e das vestimentas tradicionais vianenses. 
            Fez-se jus a mui saborosa caldeirada, regada, no início, com um verde particular de boa cepa e não faltaram, à sobremesa, os afamados doces da Pastelaria Natário, de Viana, que Jorge Amado haveria de imortalizar nos seus livros.
            Momentos especiais de confraternização entre os «mouros» de cá e os portugueses de lá, debruçados sobre o mar do Guincho, nesse dia salpicado de carneirinhos que lhe emprestaram ainda maior encanto. Ficaram os do Minho seduzidos pela beleza da nossa paisagem. E nós, os «mouros», vivamente nos congratulámos com a merecida homenagem a quem tanto devem as Artes Plásticas e os artistas em Portugal.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 01-02-2018: