quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Outeiro da Vela – a maravilha e a história

A maravilha

              Estava pintada no rosto de todos a alegria por um espaço tão pejado de maravilha estar doravante aberto à população. O outeiro do Outeiro da Vela, um dos miradouros mais aliciantes dos arredores da vila de Cascais. A inauguração, com pompa e circunstância, discursos, plantação de pinheiros e a presença de autarcas e muito povo ocorreu na manhã de sábado, 8 de Fevereiro.
            Mais um parque para usufruto da população, de toda a população, desde os mais pequeninos (dois parques infantis) aos jovens (chama-se, à inglesa - tinha que ser! - Mountain Bike, que é como quem diz «montanha para as bicicletas», desafios radicais, espera aí que eu vou saltar) e aos ‘jovens há mais tempo’, para usar uma expressão cara ao nosso presidente. E, claro, também para passeio dos canídeos, que muitos deles não hesitaram em juntar-se à festa e apreciar pelo olfacto toda a novidade dos cheiros bons que a colina lhes oferecia.
            Maravilha, encanto, que vista, senhores!...


Arranjo topiário mui oportuno, com plantas autóctones...
Um bem interessante recanto a mostrar a estrutura geológica

A história 

            Como historiador – que se me perdoe a ‘bucha’ – gostaria que se tivesse explicado a razão do nome, justamente quando se falou do panorama. Certamente todos sabem, mas não ficará mal de todo aproveitar para dizer que «vela» é o acto de ‘velar’, ‘vigiar’, e dar conta, a propósito, do que o prior de Cascais, Padre Marçal da Silveira, escreveu, com data de 6 de Abril de 1758, no relatório que fez para o Marquês de Pombal:
            «Em véspera de S. Bento [10 de Julho], todos os anos, vêm os saloios da Torre guardar de noite, com cacheiras [mocas], dardos, paus, a ribeira desta vila e estão nela velando toda a noite. É muito antigo isto; e os rapazes, que são terríveis, lhes fazem muitas peças, em que há muita seixada e pancadas, às vezes. Um meirinho que para isso entre si têm elegido os multa, se faltarem, e estas multas e condenações dos que faltam as comem depois, em uma merenda que fazem.
            Foi origem disto o seguinte:
            Antigamente, ninguém queria morar da parte de cá, à borda do mar nem ainda os lavradores queriam habitar nesta parte junto ao mar. E a razão era por medo dos Mouros, que lançavam gente em terra e os cativavam, como em véspera de S. Bento haviam feito na Ribeira. Vendo o Senhor Donatário que as terras de junto ao mar se não cultivavam por este medo e que os lavradores pagavam mal a jugada de 16 alqueires cada um, mandou-lhes que habitassem as terras junto ao mar e que lhes tiraria a metade da jugada, que eram 8 alqueires, com condição que haviam, na véspera de S. Bento, vir a velar a Ribeira, por ser o dia em que os Mouros tinham vindo a Cascais. Aceitaram a condição os da Torre, Cobre, Birre e outros […]; porém, os mais que não quiseram, como os da Biscaia e outros, pagam ainda a pensão dos 16 alqueires e outros têm diverso contrato, em que vão em outro dia velar a Sintra».
            Uma descrição que não deixa de nos fazer sorrir, mormente quando o prior conta das ‘peças’ da rapaziada. Já nessa altura eram… ‘terríveis’, veja-se só!...
            Por outro lado, acentua-se a importância da Ribeira das Vinhas, cujo leito terminal seria, nesses tempos, mais largo, propiciando, quiçá, a entrada de barcos.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais] nº 319, 26-02-2020, p. 6.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Professora, que dialecto é esse?


            «Um dia na mata, estava a comer um seringonho, uma canita ferrou-me uma dentada que me fez um bechoco. Deu-me a ravasca e, à rebendita, dei-lhe uma cachamorrada que ela até andou de rabeleta no rasquilho! Fiquei mesmo marafado».
            Assim começa o texto, datado de Faro, 2003/05/06, que Maria Herculana decidiu partilhar, creio que na Internet, e que me chegou às mãos. Um texto de quase duas páginas, com glossário no final, todo ele cheio de ‘algaravismos’, uma algaraviada pegada, que só mesmo com glossário é que o comum dos mortais chega lá!
            Desse falar algarvio aqui temos dito, na vontade de que essa terminologia não desarvore por i adiante, alvoriada, e nos deixe a todos charingados com isso, sem preparos nem vontade de chacolejar o que quer que seja!
            Já viram em que preparos ficaríamos, azoados de todo, incapazes de dar uma tarruta meiga ao netinho? Nam, nada disso! Temos que brandir armas para que não nos trompiquem, obrigando a falar como os senhores doutores de Coimbra!...
          Outro dia, intitulei uma crónica «Como é que eu os vou trompicar?». E muita gente achou estranho o verbo, até foi ao Dicionário da Academia e… nada! Mas percebia-se pelo contexto o que eu queria dizer: enganar sorrateiramente, pela calada, toma lá que já almoçaste!
            Almocemos, pois, à nossa maneira: uns carapauzinhos alimados, umas zeitonitas retalhadas ou um cozidinho de grão bem acondicionado na tarreta! Vamos nessa!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 279, 20-02-2020, p. 13.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Sem pressas…

            Andamos numa correria, deixamos as coisas a meio, deixamos as frases a meio, na ideia de que «a meio entendedor meia palavra basta» e todos serão bons entendedores…
           «A agitação é uma das grandes feridas do Mundo moderno. O homem tem demasiado trabalho e quereria fazê-lo todo. Como lhe falta tempo para o conseguir, apressa-se, corre, enerva-se, cai na excitação ou no desencorajamento e, por fim, torna-se intolerável, fatiga-se, abrevia a sua vida, não faz tudo aquilo que queria e faz metade daquilo que faz. É um fracasso.» (Michel Qouist, Construir, 1965, p. 121).
            Leu bem: 1965! A tradução portuguesa do livro, publicada pela Livraria Morais Editora, data de 1965. Há 55 anos!...
            E há 55 anos nunca suspeitaríamos que viríamos a ter a nossa caixa de correio electrónico diariamente atravancada de mensagens, de que, a maior parte das vezes, nem o «assunto» lemos. Aliás, esse é também um erro, porque, amiúde, o «assunto» não é nada aquele que está gravado e o remetente limitou-se a agarrar numa qualquer mensagem tua que recebeu e aproveitou para te falar de um tema completamente diferente!...
            Não se lê. Não há tempo. Por isso há empresas que já industriaram o seu computador de serviço para responder. Assim se compreende por que razão, há uns três anos, eu enviei a uma editora a recensão que fizera a um livro por ela publicado e a resposta começava mais ou menos nestes termos:
            «Teremos muito gosto em publicar o seu livro, que terá connosco a maior difusão inclusive além-fronteiras…»!
            Parte-se, pois, do princípio de que toda a gente quer publicar nessa editora, a troco do fixado pagamento…
            Os cientistas são obrigados a publicar, sobretudo em revistas ditas conceituadas, por constarem de um elenco gerado – vá-se lá saber como e com que critérios… – por um também conceituado grupo de especialistas na matéria. Criaram-se, em consequência (que o mercado era vantajoso!), empresas editoriais predadoras que, a troco de umas centenas de dólares, te publicam o que quiseres. E dois cientistas, após terem recebido o convite duma dessas editoras para a escolherem, mandaram para apreciação umas quantas páginas em que repetiam até à exaustão a frase, que não traduzo, «Get me off your fucking mailing list». O texto foi aceite… a troco do pagamento prévio de 150 dólares!...
            Apetece, pois, aproveitar a cadeira à sombra acolhedora da árvore e, sem pressas, saborear os momentos que nos são dados para viver… Sem pressas!

   José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 771, 15-02-2020, p. 11.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Congratulo-me!

            De novo a falar de rotundas! Agora, sobre a única existente na 3ª circular, em Cascais, no entroncamento com a Rua de S. Bernardo, para o Bairro de S. José. Também para a louvar, porque descongestionou grandemente o trânsito que os semáforos ali existentes acabavam por ordenar mas eram… uns empatas! Boa ideia foi, deveras apreciada pelos muitos automobilistas que por ali circulam diariamente, ou não fosse essa a via de escoamento mais utilizada para sair de Cascais Ocidental!
            Não é, todavia, sobre a evidente oportunidade da rotunda que ora me apraz reflectir! Levantou-se aí uma parede do lado nascente e, em vez do branco homogéneo e puro, houve por bem a Junta de Freguesia de Alcabideche (desse lado, já é dessa freguesia) sugerir à Câmara que ali se ostentasse um exemplar da arte urbana, que Cascais tem abraçado com enorme entusiasmo (veja-se a delícia que são, nesse aspecto, as paredes do Bairro da Torre!). Se bem o pediu, melhor o recebeu e o Município encomendou um painel ao conhecido luandense Nuno Nomen, que vive em Carcavelos, um dos pioneiros da arte em grafitti.
            E o que pintou Nomen?
            As duas principais ‘riquezas’ de Alcabideche: uma cultural e outra desportiva!
            A cultural prende-se com a evocação do poeta árabe Ibne Mucana, natural de Alcabideche, o primeiro que, ainda no século XI, falou da existência de moinhos de vento na Europa e é por isso que, abundante como era em moinhos, Alcabideche escolheu há muito o moinho como seu ex-líbris. E lá está o monumento que foi dedicado ao poeta e a transcrição do verso referente à sua terra natal.
            A riqueza desportiva é o autódromo. Apesar de já não ser palco das grandes provas de Fórmula 1, continua a ser pista deveras apreciada para os treinos das grandes marcas e para provas de outras modalidades automobilísticas.
            Aplaude-se a escolha!


* * *
            Não vou, todavia, fugir de Alcabideche, mormente agora que já se sabe dizer que é aí que a A16 começa.
            Naturalmente devo fugir, isso sim, de inoportunas publicidades, que a ética expressamente mo proíbe. Por isso, aliás, devo confessar à partida, sob juramento se necessário, que ninguém me encomendou nada do que vou escrever a seguir. E se o meu escrito incitar, como espero, o leitor a ir ver o que em palavras pobres descrevo, não é com o intuito (longe de mim!) de lhe sugerir que compre, compre, compre!...
            Aprecio o gosto que ora se vai encontrando aqui e além para transformar o ambiente das casas de banho, decorando-as com motivos simpáticos, agradáveis à vista. Assim no CascaiShopping. Contudo, para mim o que mais se deve aplaudir é a decoração da parede do túnel da entrada poente (e chamo-lhe assim para não se confundir com a entrada poente larga). Uma pessoa entra e… está numa das praias de Cascais! O mar à frente, azul, plácido, naquela visão serena que nos apetece e que tanto nos faz ter saudades quando estamos uns dias sem a ver! O mar, a sua vastidão!... E então não é que, de seguida, parece que pisamos o imenso areal do Guincho, a serra de Sintra ali a mergulhar no Atlântico?!... Maravilha!
            Um verdadeiro achado também este, sim, senhores! Os meus parabéns!


                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais] nº 317, 12-02-2020, p. 6.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Três eventos

             Um amigo meu tinha uma certa aversão pelo uso da palavra ‘evento’, porque lhe soava a anglicismo. De facto, poderia ser, num mundo linguístico em que – apesar de eles, os ingleses, nada quererem connosco, os atrasados europeus – ainda continuamos a usar-lhes a terminologia. Não, ‘evento’ não vem da língua inglesa e o ‘event’ inglês provém, queiram eles ou não, do continente europeu, da palavra latina «eventus», que tanto tem significado bom como mau: sucesso ou desgraça. Claro que nós preferimos o lado bom, faustoso. Havia mesmo o deus Eventus, que se invocava para que tudo decorresse às mil maravilhas! E por isso quero realçar três eventos recentes, ocorridos na linha de Cascais.

Dia 31 – Ana Lains
              Na noite do dia 31, o espectáculo deveras memorável de Ana Lains.
           É fadista, sim, de pleno direito («Eu não sou fadista – garantiu – mas gosto de cantar o fado!»), mas tem alma de lutadora pelas nossas raízes lusas musicais. Acompanharam-na Fernando Pereira, Fernando A. Pereira, o Grupo de Cantares de Évora, Silvestre Fonseca, Luís Represas (tocante, improvisado e lindo, o dueto em «Vieste tu, feiticeira!»…), Mafalda Arnauth, Ivan Lins, As Adufeiras de Idanha-a-Nova.
            Um encanto ouvir Ana Lains, uma voz límpida, uma dicção exemplar! A noite foi de emoção, os 20 anos de uma carreira que começou exactamente ali, no Salão Preto e Prata do Casino Estoril. «Eu não consigo controlar este choro», «A Lara vai me matar, tanto que cuidou em maquilhar-me!»,«Ai, estes sapatos apertam!»… Uma Senhora! «Aplausos para Dulce Pontes!», pediu, depois de ter cantado a sua belíssima versão da Canção do Mar. Arranjos ímpares, invulgares, na sua maior parte do marido, Paulo Loureiro, exímio também no piano. E aquela inesquecível «Senhora do Almortão», com o adufe erguido a instrumento nobre!?
            Uma equipa que se sente equipa mesmo para nós, os espectadores electrizados por tudo quanto, das 22 e 20 às 24 e 40, naquele palco em indeléveis traços se desenhou!

Com Luís Represas
Com Ivan Lins
Grupo de Cantares de Évora. Foto de Mário Jorge
Com as Adufeiras de Idanha-a-Nova

                                                                      (Fotos gentilmente cedidas pelo Gabinete de Imprensa da Estoril-Sol)
Dia 1 – Espaço TEC
            Achou João Vasco que ‘9 + 2’ era o título ideal para contar o que foi a odisseia do Teatro Experimental de Cascais enquanto esteve no Teatro Gil Vicente: de 1965 a 1974 e dois anos mais tarde, quando se logrou a reconciliação.
            Diremos que também nessa evocação de final da tarde de sábado, a emoção imperou. Não apenas por elementos do Grupo Cénico da Associação dos Bombeiros haverem recriado uma amostra da clássica Senhora dos Navegantes, o nosso miminho teatral ou por Maria Emília ter recitado, como ela sabe, um poema sobre a vila, mas porque João Vasco não deixou de contar o que foi a vida atribulada desses primeiros nove anos, quando a companhia ainda era vista com desconfiança e, sobretudo, por, no 24 de Abril, os ‘revolucionários’ terem agarrado em todos os pertences do TEC, sob o pretexto de que eles, os do TEC, eram fascistas e tinham recebido o Américo Tomás e o Moreira Baptista, e terem levado, aos pertences, a trouxe-mouxe para uma arrecadação de caixões, quando o TEC andava em digressão por Moçambique!...
            Apesar de tudo, mau grado a censura, que exigia ver o ensaio geral, sublinhou-se o apoio incondicional de Serra e Moura (da Junta de Turismo) e os êxitos em que, nessa vetusta sala, tantos vultos grandes do nosso Teatro acabaram por brilhar.
            Assim se enterraram machados de guerra; assim se mostrou como é bom ouvir as pancadinhas de Molière e aplaudir os actores.
            Bem hajas, João Vasco! Bem haja, Carlos Avilez! Bonita, a saudação exarada no convite:
            «Saudamos o Teatro Gil Vicente em Cascais na passagem dos seus 150 anos de existência ao serviço da Cultura. Foi a nossa primeira casa em 1965. Foi ali que tudo começou. As nossas saudações».

Dia 5, em Oeiras
            Fui ao CASO - Centro de Apoio Social de Oeiras (do Instituto de Acção Social das Forças Armadas), para a tertúlia das quartas-feiras, na biblioteca.
            Sala cheia, tanto de residentes como de seus amigos e familiares. Desta feita, a tertúlia literária prendia-se com a apresentação do livro My Way (O Meu Caminho), biografia do Tenente-Coronel Victor Brito, um dos vultos maiores da nossa aeronáutica. Não o digo por ser são-brasense, meu patrício (ou conterrâneo, se se preferir), mas porque, na verdade, depois de ter prestado serviço na Força Aérea Portuguesa, onde brilhantemente se distinguiu nas mais diversas campanhas, nomeadamente no Ultramar, foi pioneiro, ao fundar, em Cascais, a Escola de Aviação Aerocondor, destinada a formar pilotos aviadores. A primeira escola do género, a nível nacional e internacional. Num espírito muito diferente dos aeroclubes, a Aerocondor formou já mais de 6000 pilotos de mais de 20 nações.
            Victor Brito foi pioneiro também no combate a incêndios, para que fez questão em formar pilotos e em pugnar pela necessidade de os meios aéreos de combate aos fogos serem anfíbios. Pioneiro igualmente no que respeita à manutenção das aeronaves, pois foi ele quem escreveu o primeiro manual para esse efeito, no que viria a ser imitado depois.
            O livro e o biografado foram apresentados pelo seu autor, o comandante sénior da TAP Dario Artilheiro, que teve palavras de largo encómio para o que fora a experiência de ouvir as histórias que Victor Brito singelamente lhe contara, sem se vangloriar, porque, como o próprio amiúde teve ocasião de repetir, «o homem é o homem e as suas circunstâncias». Um convívio, acentuou o comandante Dário, que lhe fez granjear para com biografado «a mais profunda admiração».
.           Recordaram-se, por exemplo, os tempos em que os aviadores, para agradarem às namoradas, se decidiam a sobrevoar-lhes a casa a baixa altitude. E contou-se como numa casa de Cascais (se não erro), quando tal acontecia as moças pequenas fugiam para debaixo da cama com medo e só de lá saíam quando a mãe vinha dizer-lhes: «Podem sair que o maluco do aviador já se foi embora!».
            A tertúlia foi dinamizada pelo Coronel Barão da Cunha. Também interveio, entre outros, o General António de Jesus Bispo, que classificou Victor Brito como «excelente aviador, com muita habilidade, educado».
            Apreciei a sessão e agradou-me vivamente saber que, no CASO, essas tertúlias literárias eram habituais e logo ali se anunciou quem viria da próxima vez. De aplaudir!

                                               José d’Encarnação

O Comandante Sénior Dario Artilheiro, o autor de «My Way», no uso da palavra
Coronel Victor Brito e Coronel Barão da Cunha

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Aquele recanto do jardim

              Nunca lá vi ninguém sentado. Nem velho nem casal de namorados nem cônjuges nem crianças. Ninguém, É, todavia, um recanto bem aprazível, sempre limpo, sossegado, de ar purificado pelas árvores que o ladeiam, tranquilo num repousar de olhos sobre o verde da relva e das plantas do jardim que o envolve. Há caixote para o lixo, há dispensador de sacos para dejectos caninos. Está nas traseiras dos prédios e o movimento da rua do bairro quase ali passa despercebido.
            Imagino o dia em que, diante do estirador, o arquitecto paisagista delineou esse recanto, a pensar em crianças, em velhos, em mães com filho num carrinho e ela a poder ler ou responder a mensagens… Sim, o arquitecto pensou em gente, que o seu recanto sem gente não tinha sentido nenhum!...
            E não tem. Que eu nunca lá vi ninguém sentado.
            Recordo o ancião que, passando boa parte do seu dia, todos os dias, sentado num banco de jardim, a admirar as flores, a ver as arvéloas aos pares de longo rabo sempre a mexer acima-abaixo, acima-abaixo, a observar a azáfama das abelhas ou das formigas ou a algazarra das crianças que, de vez em quando, o vinham saudar, decidiu deixar em testamento boa parte dos seus bens à entidade que ali superintendia, para manutenção daquele banco porque o banco o fizera feliz…
            «Num banco de jardim uma velhinha / faz desenhos nas pedrinhas que, afinal, são como eu» – canta Carlos do Carmo na sua «Balada para uma velhinha».
            Sim, a ideia geral é essa: o banco de jardim é para os velhinhos; por vezes, para os namorados… Mas, quando o arquitecto, diante do estirador, desenhou aquele recanto ora feito realidade, não foi só nas velhinhas que ele pensou, foi na gente, foi nas pessoas… As pessoas, porém, não têm tempo para ali se sentarem, nem ao domingo, nem ao sábado, nunca!...
            Assaltou-me a ideia do recanto triste e desabitado do meu bairro. E dei comigo a penitenciar-me também: «Não tens uma mesa de verga e duas cadeiras de verga na tua varanda, amigo? E para que as queres lá? Quando as compraste, não foi para nelas te sentares, para usufruíres de momentos de relaxamento no desenfreado correr quotidiano? Não foi? Para conversares com tua mulher, com os teus filhos. Para o gato saltar para o teu colo e te deixares levar pelo seu ronronar sereno? Não foi?...

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 770, 01-02-2020, p. 11