sábado, 12 de julho de 2025

A lição do alperce

                

            Preocuparam-se muito os estudiosos da vida dos povos que viveram no território hoje português antes da invasão romana, no século II a. C., com o facto de o nome das divindades que apareciam nos ex-votos nem sempre serem os mesmos.

            O caso mais conhecido era o de uma divindade que tivera o seu templo em Terena, concelho do Alandroal, lugar de culto que viria a ser, desde cedo, ‘cristianizado’, pois aí se fez erguer uma igreja da invocação de São Miguel-o-Anjo. As escavações levadas a efeito nas proximidades comprovaram a existência de ruínas romanas e até se encontraram mais lápides dedicadas a essa divindade, conhecida dos historiadores desde mui remotos tempos.

            Só tivemos, porém, conhecimento da sua prístina existência porque os Romanos, em exemplar atitude de pacífica coexistência religiosa e cultural, não só permitiram que a população autóctone continuasse a prestar culto à sua divindade, como eles próprios não hesitaram em, também eles, lhe agradecerem favores concedidos ou lhe solicitarem protecção. Faziam-no, é bem de ver, à sua maneira,: em língua latina, de acordo com os seus formulários e, como os indígenas usavam palavras para eles estranhas, acordaram em dar a essa taumaturga divindade o nome que lhes parecia ter percebido quando perguntaram aos locais como é que ela se chamava.

Compreende-se, por conseguinte, o que aconteceu: cada qual acabou por entender à sua maneira e, se a maior parte dos ex-votos conhecidos aponta para a existência de um nome mais vulgarizado, Endovellicus (com dois LL ou só com um), certo é que se registaram já as seguintes variantes: Endovelecus, Enobolicus, Endovollicus, Endovolicus, Ennovolicus.

            Sim, amigo, tem razão: estou a falar do deus que sugeriu ao saudoso João Aguiar o romance A Voz dos Deuses (Memórias de um Companheiro de Armas de Viriato), editado, em 1984, por Perspectivas & Realidades, de Lisboa. Esse guerreiro era precisamente, no romance, um sacerdote de Endovélico!”

            Voltando à grafia do teónimo: a princípio, linguistas e epigrafistas demoraram-se a procurar etimologias diversas, susceptíveis de, por um lado, explicarem as prerrogativas da divindade (o nome podia estar ligado a isso, como se deu nome a Nossa Senhora do Ó na sua acepção de protectora das grávidas), ou, por outro, a pertença a diferentes estratos linguísticos primordiais. Na actualidade, porém, já essas concepções se estão a deixar de parte.

            E aqui entra a lição do alperce.

            Para mim, em pequenino, essa bem deliciosa fruta — que se arroga o direito de ser pêssego em miniatura e muito mais saborosa!... – não era alperce. Começou por ser almecoque, à boa maneira do Barrocal algarvio. E quanto me agradava (meu pai ensinou-me!...) raspar o caroço num pedaço de arenito até abrir uma fenda, tirar de dentro a polpa e fazer dele um assobio!...

Também lhe chamávamos albricoque e abricoque; e há quem diga existirem também as formas abrinocoque, albaricorque, albercoque, albicoque, alcócaro, alcocre e alvaricoque! Alperce, alpece ou alperche só vindo para a Grande Lisboa é que eu percebi que era a mesma fruta que o almecoque (também eu chamava alcagoita ao amendoim). E é, ainda que os dicionaristas acabem, às vezes, por pôr os pés pelas mãos.

Ora veja-se:

O meu velhinho Dicionário Complementar da Língua Portuguesa, de Augusto Moreno, dicionário que se proclama «ortoépico, ortográfico e etimológico», de que me sirvo da 5ª edição «melhorada e em rigorosa harmonia com as Bases do Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 1945», edição datada da 1946 e publicada pela Editora Educação Nacional, do Porto, pois esse meu companheiro diário garante-me que a palavra alperce ou alperche é um «damasco grande, de cheiro semelhante ao do pêssego» e é também «diospiro»! Seria, porventura, nessa longínqua década de 40, hoje não é. E, embora nada se tenha contra a cidade de Damasco, capital da Síria, raramente se ouve o nome de damasco para designar o pêssego, qualquer que seja o seu tamanho; poderá ser uma variedade, cuja origem radica no Médio Oriente. Agora, diospiro, amigo Augusto Moreno, essa é fruta bem diferente!

Informa ainda Augusto Moreno que, do  ponto de vista etimológico, «alperce» veio da palavra grega ‘persikós’ (περσικός), que significa literalmente ‘pérsico’, donde poderá ter vindo o árabe ‘albérchiga’. O fruto, dizem, terá vindo da China e, por isso, uma ligação ao Golfo Pérsico não parece despropositada. Já quanto a ‘albricoque’ viria do grego ‘praikókion’ (com o significado de ‘damasco’, dizem, mas eu não encontrei essa palavra), que teria dado, em árabe, «albarkuk».

Quiçá, porém, no meio deste enredo todo, algo de ainda mais interessante se possa apontar: é que «abricó» ou «abricotre» são palavras que existem no português do Brasil e os dicionários chegam a esclarecer que se trata dum «fruto brasileiro semelhante ao pêssego e ao damasco». Ora toma! Qual brasileiro nem meio brasileiro! É mesmo português de origem e fomos nós que o levámos para lá, à maneira antiga, na medida em que – sabe-se bem! – aí se continuam a usar vocábulos ‘clássicos’, nossos, d’outrora: veja-se ‘tombo’, ‘esteira’…

Posto isto, voltamos então à lição do alperce que nos levou ao, ainda mais longínquo, Endovélico: é grande a versatilidade da língua e o que interessava mesmo era que, apesar da versatilidade, todos nos entendermos! Pelo som das palavras e não pelo estampido das armas!

                                                        José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 12 de Julho, 2025: https://duaslinhas.pt/.../albricoque-almecoque-alcocaro.../


 

 

sábado, 28 de junho de 2025

Cantar como a rola

            Duas razões me levaram a empreender esta conversa.
            A primeira, o facto de, nestes dias de Primavera a findar, eu ter diariamente logo ao despontar da aurora, a presença de uma rola que, pomposamente empoleirada
no tronco daquele pinheiro, passa bem meia-hora num trrrurru… que, confesso, eu não sei bem explicar: Se saúda a manhã, se mostra o seus contentamento, se está numa de chamar companheiro…
            A segunda, o êxito cada vez maior que está a ter a moda alentejana que diz:
            «Dá-me uma gotinha d’água / dessa que eu oiço correr, / entre pedras e pedrinhas, / entre pedras e pedrinhas, /alguma gota há-de haver. / Alguma gota há-de haver. /Quero molhar a garganta. / Quero cantar como a rola. / Quero cantar como a rola / Como a rola ninguém canta».
            E dei comigo a perguntar-me: se as crianças de hoje, a passar o dia entre as músicas e os ecrãs dos telemóveis, já viram uma rola ou se já a ouviram cantar.
            Se compreendem o que é isso de a água «correr entre pedras e pedrinhas».
            Se é possível ir aí a uma nascente, «entre pedras e pedrinhas» buscar uma pouca de água capaz de se beber, elas que habitualmente ou vão à torneira da cozinha ou bebem duma das garrafinhas de plástico.
            Se percebem a importância de «molhar a garganta». «Molhar a garganta? Como? Para quê?».
            Que interesse poderá haver em «cantar como a rola»? E porque não como o melro ou o canário?
            Já nada sei de programas escolares nem de objectivos de visitas de estudo. Sei, porém, que, há anos, numa visita com colegas licenciados pelos campos de Sintra, lhes dei a cheirar a flor da madressilva, lhes mostrei a diferença entre a espiga de trigo e a de cevada… Não sabiam. Tivera eu a dita de passar no campo meninice e juventude. Sabia a diferença entre um melro e um pardal…
            Perdoar-me-á o leitor se o levei por estes agora escusos caminhos. É que, de manhã, aquela rola – não sei se é sempre a mesma, estou em crer que sim – me estava sempre a dizer que eu devia falar dela. Se calhar, é mesmo por isso que ela teima em acordar-me todas as manhãs. Pronto: já lhe fiz a vontade!

                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 879, 21-06-2025, p. 10.

 

Os correspondentes

          

 
            
– Olá, Amigo! Há séculos que não sei de ti. Como vais passando?
            É mensagem que surge, inesperada e com carácter de urgência, quando me lembro de um amigo de que há muito não tenho novas, mormente se se encontra na mesma situação que eu, de aposentado, e o sei a morar sozinho. Nestes casos extremos, raramente, porém, recebo resposta, porque a preguiça nos enreda e nem sempre há tema de conversa e, mesmo por correio electrónico, há que ligar o computador ou ir ao livro de endereços buscar o endereço e uma pessoa já se esqueceu se o pôs lá com o diminutivo, pelo primeiro nome ou pelo ‘nome de guerra’ ou pelo apelido. Bem sei que devia ser sempre pelo apelido e estávamos conversados. Mas aquele eu conheço é por Blé, aquela colega é a Mané e sei lá eu qual é o apelido que tem agora, depois de casada!...
            Custa-me passar largos tempos sem saber de quem partilhou comigo parte significativa da minha vida e tenho a ideia de que uma palavra pelo aniversário, por exemplo, é sempre reconfortante, a dar a ideia de que uma pessoa não se esquece. Elaborei também listas diferenciadas de amigos a quem, de vez em quando, envio uma ‘circular’ sobre tema que suponho seja do seu interesse. O rol dos destinatários vai, como é da praxe, em bcc (conhecimento oculto), não só por discrição mas também para dificultar a caça a endereços. Dos destes róis, tenho sempre dois ou três a quem, por mais que lhes diga que não, fazem questão de agradecer e lá fica cheia a caixa de correio com desnecessárias mensagens!...
Pior são aqueles amigos que recebem o vídeo sobre a catedral de Notre-Dame renovada ou o Trump vestido de papa e o partilham com o mundo inteiro. Já o recebi mais de dez vezes! Ou a Amiga que diariamente colhe na internet a mensagem «Bom dia» e a dispara em rajada. Ou quem, todos os dias, morando não muito longe de mim, me informa «Hoje, o céu cinzento!». E aqueloutro a quem eu enviei uma informação e ma reenvia, não se apercebendo que fui eu mesmo quem lha remeteu?!...
Ao tempo do Sr. Júlio Dinis e da sua Morgadinha dos Canaviais, a chegada do carteiro era uma festa, na esperança de se ter carta da amada, do marido ou do filho. E nunca com obreia preta! Hoje, rezamos para que a caixa não se encha depressa!...

                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 877, 21-04-2025, p. 10.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Estrafegar

            Sempre assim foi; contudo, há agora, cada vez mais, ao ouvirmos determinadas afirmações, ao termos conhecimento de determinadas atitudes, ao sentirmos na pele as picadelas da má governação ou da má vizinhança, que nos sai, forte, da boca:
            – A minha vontade era estrafegá-los a todos, que só nos sabem é charingar!
            E, em relação a alguém que especialmente nos fez mal e perdemos de todo a capacidade de dar cabal cumprimento às obras de misericórdia, gritamos:
            – Se eu o apanhasse, malvado, até os ossos eu lhe tarrincava!
            Assim, duma assentada se soltaram, raivosos, três verbos viperinos.
            Charingar vem no «Dicionário do Falar Algarvio«, de Brazão Gonçalves, e, além de aí se apresentar como um dos sinónimos de «importunar», explicita-se que a palavra originária era ‘seringar’, porventura do tempo em que a seringa dos senhores doutores ou das meninas enfermeiras era objecto de que, qual criancinha, se procurava fugir a sete pés. Hoje, picadela de seringa nem se sente e aquela pancadinha que a menina não deixa de nos dar até sabe a doce carícia. Charingar é, pois, muito mais do isso: é chatear mesmo, ser maçador até mais não.
            Note-se, porém, que, nem sempre essa tónica amaldiçoada está presente. Ora veja-se:
– «Estou charingado contigo. levas tudo prá brincadeira». «Se o avião não chega a horas, estamos charingados!». «Isto está uma fila que eu sei lá! Estamos charingados!».
Estrafegar também pode ser de maldade: «Se o apanho a jeito, estrafego-o todo», que é como quem diz «dou cabo dele!». Dizem que se relaciona com trasfega, que é o acto de passar uma coisa, designadamente um  liquido, dum lado para o outro, palavra que ouvimos quando a carga de um barco carece de ser passada para outro; eu acho que estrafegar não se prende com isso, mas sim com sacudidela, amarfanhamento, estragar com todas as forças!

            Já tarrincar, forma popular de ‘trincar’, é capaz de se usar mais, cá na maroteira barrocalense com um segundo sentido, de olhinhos gulosos: «Eu até os ossos lhe tarrincava, môce! Oh se tarrincava!». Percebe-se bem que se não está a falar de criação de capoeira, pois não!...

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 34, 20-06-2025, p. 13.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

mosaico romano com história para contar (II)

Entrevimos, na primeira crónica, a 25 de fevereiro, o mosaico do Oceano de Faro. Aperitivo foi esse para agora nos debruçarmos um pouco sobre o seu significado histórico-cultural.

Antes, porém, de especificamente aí nos embrenharmos, não será porventura despiciendo dar algumas luzes acerca desta manifestação artística romana.

Aliás, amiúde, no dia-a-dia nos deparamos com a palavra ‘mosaico’, no sentido de aglomeração de elementos diversos a formar um todo; ainda no passado 10 de Junho nos explicaram que Portugal é… um ‘mosaico’ de povos!…

Isso é, de facto, o mosaico romano: a aglomeração de milhares de pedrinhas diferentes no tamanho e no colorido. Chama-se-lhes tesselas.

E não deixaremos de admirar, desde logo, o minucioso labor que a sua miúda confecção implica. Disso havemos de falar. Estudou Carlos Beloto, um dos nossos mais experientes técnicos nessa área, todas as fases de preparação do mosaico, a começar, naturalmente, pela sapiente escolha do material a utilizar, consoante o efeito a obter; será ele o nosso guia.

O mais normal é serem essas ‘pedrinhas’ obtidas a partir dum calcário mais ou menos brando, fácil de facetar, mas também há tesselas de granito. de basalto e, até, de vidro ou de alguma pedra a que chamamos preciosa como o lápis-lazúli (azul) ou a esmeralda (verde) ou, ainda, a cerâmica, a emprestar aquela corzinha rosada ou de tijolo.

Daí se deduz que, tal como nos tapetes ou nas tapeçarias, a cor goza, num mosaico, um papel relevante, porque só as tonalidades diferentes vão permitir quer o desenho geométrico quer a representação de cenas.

Compreende-se, desde já, pelo que fica dito, que encomendar um mosaico não está ao alcance do bolso de qualquer um – como, nos nossos dias, um tapete de Arraiolos ou genuíno tapete oriental não constituem privilégio de muitos.

Por conseguinte, essa é a primeira conclusão: do achamento de um mosaico romano se deduz estarmos em presença de um proprietário ou de uma entidade com posses para a esse luxo se dar. Ganhava bem o artífice, devia ter apurado gosto estético não apenas o encomendante mas sobretudo o artífice na sua minuciosa tarefa.

Tesselas – Foto: José d’Encarnação 

Houve, pois, uma encomenda. Quem encomendou? Para onde? Com que intenção? – tudo questões prévias a resolver, mediante a elaboração do que hoje chamaríamos o respectivo cartão. Aí se especificaria o desenho a compor e as dimensões, tendo naturalmente em conta o espaço a ocupar e o efeito visual a obter: tarefa reservada ao chamado pictor imaginarius, que concebia a imagem e as cores…

Temos hoje a ideia clara de que havia cartões tipo, quer porque determinadas cenas mitológicas se tornaram famosas e fizeram longos percursos, quer porque a representação, por exemplo, de divindades obedecia cânones pré-concebidos.

Uma segunda conclusão se deve tirar (e essa constitui, na verdade, o aspecto mais importante a ter em conta quando se analisa um mosaico do ponto de vista histórico): é que a arte final representa o resultado da ‘comunhão’ entre encomendante e artífices, uma singular simbiose cultural ….

Artífices a prepararem tudo para fazer um mosaico

 

Pensa-se, inclusive, que os artífices mais célebres (foram mui raros, no entanto, os que quiseram deixar a sua assinatura na obra feita) teriam sido chamados a executar encomendas por aqui e por ali.

E é cavalgando a imaginar essa artística deambulação que nos vamos hoje ficar, para, na próxima vez, começarmos a admirar de perto a magnificência que, um dia, se logrou salvaguardar na antiga Rua da Carreira, na capital algarvia.

                                                    José d'Encarnação         

Publicado em Sul Informação Junho 21, 2025


 

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Um mosaico romano com história para contar

Difícil será que alguém nunca tenha ouvido falar que, nos começos de 1976, se descobriu na Rua Infante D. Henrique, antiga Rua da Carreira, na capital algarvia, um mosaico romano de características deveras singulares.

O seu primeiro estudo foi publicado nas páginas 219-230 do nº X dos Anais do Município de Faro, datado de 1980, e ficou a dever-se a uma equipa interdisciplinar: Adília Alarcão e Carlos Beloto, do Museu Monográfico de Conímbriga, museu que detinha, na altura, importante escola de tratamento dos mosaicos romanos; Maria Manuel de Almeida, assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que se iniciava então no estudo especializado desse tipo de vestígios deixados pelos Romanos; e eu próprio, José d’Encarnação, epigrafista, porque o mosaico apresentava uma inscrição, cujo significado e integração histórica seria de interesse assinalar.

Vamos dedicar, mui possivelmente, mais do que uma crónica a tal descoberta, atendendo a esse  seu valor histórico-documental.

Propor-se-á, por hoje, uma primeira reflexão que de imediato surgiu, a propósito da toponímia do arruamento onde a descoberta ocorreu.

Rua da Carreira se chamara a rua, depois baptizada com o nome do impulsionador dos Descobrimentos. Dir-se-á, desde logo, que esse baptismo ocorreu antes de haver sido descoberto o mosaico, o que não deixa de ser coincidência, dirão uns, ou um ‘sinal’, dirão os que acreditam (como eu acredito) que o acaso não existe. Dum lado, o mosaico com a representação de Neptuno, deus do mar, segundo a crença dos Romanos; do outro, o Infante, qual arauto da expansão portuguesa pelos mares além. Coincidência? Quem o saberá?!

Acontece, porém, que, antes, o arruamento, como se disse, Rua da Carreira se designava. Seguramente os estudiosos locais – mormente os dados a estas questões da toponímia – já explicaram tudo a esse respeito, a razão da designação, e eu me renderei ao que vierem elucidar-me.

Sabe-se, contudo, que, quando ainda não existiam eventuais comissões municipais de toponímia nem mui sábias reuniões camarárias em que o assunto viesse a lume, o grande mestre para dar nome às veredas, aos atalhos e às ruas era… o Povo! As pessoas que, no dia-a-dia, chamavam os sítios pelos nomes que mais lhes soavam e mais se coadunavam com o seu viver quotidiano.

Neste caso, permita-se-me a elucubração (se o é…), ‘carreira’ poderia ser, nos finais do século XIX, princípios do XX, o sítio onde se apanhava a ‘carreira’, ou seja, aquele transporte público que levava os farenses até às aldeias vizinhas, a S. Brás de Alportel, por exemplo.

E aí está, a título de exemplo, a imagem duma das carreiras da Empreza Central de Transportes, Limitada, de José da Cruz Costa, que, em 1927, fazia as ligações entre S. Brás de Alportel, Loulé, Faro e Olhão.

Mas ‘carreira’ é também ‘caminho’. E, neste caso, se havia uma Rua da Carreira, poderia ser porque ela consubstanciava precisamente a ideia de ser esse o caminho principal para entrada e saída da povoação. Lembro que esse papel cabe habitualmente à «Rua Direita», que é, em boa parte das povoações, a rua do comércio, por se tratar da rua ‘directa’, de saída e entrada, «direita» que de direita geralmente nada tem, como a ‘vereda’ que se preza nunca é direita também, mas aos rr e ss…

Lembro, ainda, que, em Toulouse, para se manter a memória, as placas toponímicas das ruas mantêm os dois nomes das ruas, em língua francesa e na língua tradicional (hoje já não falada), o occitano, de modo que pode ler-se, numa placa, Carrièra d’Austerlitz.

E, entre nós, não se tornou usual a expressão «nau da carreira das Índias»? Portanto, um nome com história!

É dedicado ao Oceano o mosaico romano achado na Rua da Carreira. Coincidência, decerto, não será, porque, apresentando a elegante imagem da cabeça do deus Oceano, de carreiras e de comércio vamos ter de falar. Fica a promessa!

Publicado em Sul Informação, Fevereiro 25, 2025:

https://www.sulinformacao.pt/2025/02/um-mosaico-romano-com-historia-para-contar/

José d'Encarnação

Nota: Esta é a primeira crónica do professor José d’Encarnação no Sul Informação, um novo cronista que nos levará, com regularidade, a viajar pelo mundo da arqueologia.