sexta-feira, 31 de maio de 2019

As dimensionalidades da morte

Apresentação
           Texto inédito do Dr. Josias Gyll, que há vários anos me entregara, manuscrito, para a hipótese - que não se concretizou - de vir a ser publicado no «Jornal da Costa do Sol». Publico-o, agora, por especial deferência de Pepita Tristão, em jeito de homenagem ao Médico humanista que, como ele próprio afirmava, via no doente não o doente mas a Pessoa e que sabia unir a ciência médica à ciência psicológica.
           Um vulto a merecer mais homenagem em Cascais, onde exerceu Medicina até depois dos 80 anos, sem desfalecimento.
           Honra ao mérito!
                                              José d'Encarnação



            A Vida e a Morte ocupam tempo essencial na existência vivida do SER humano, o qual se situa na fronteira dos comportamentos de viver para morrer e, em cada momento, de morrer para viver, se entendermos que, nas nossas culturas, viver é saúde, felicidade, riqueza, actividade, juventude, beleza; e morrer é perturbação, infelicidade, pobreza, perda, inactividade, fealdade, velhice, morte física, ausência, afastamento, solidão, perda de afectividade.
            Esta dialéctica da Vida e da Morte que é o conteúdo da angústia existencial do Homem, é feita de imaginação, a qual é elaborada com os reliquats das memórias de afectos e de pensamentos esquecidos no inconsciente.
            É a imaginação que preside aos nossos completamentos, às nossas preferências, às nossas necessidades, às nossas decisões e raciocínios e até a uma lógica pretensamente pura, fria, isenta (ninguém é isento de si mesmo).
            Isto significa que os modelos do viver e do morrer são fenómenos psico-sócio-histórico-culturais, por isso variáveis com as latitudes, com as épocas e com o conteúdo que estrutura o indivíduo e que foi adquirido por aprendizagem.
            A plenitude do viver é encontrada na plenitude do morrer porque, quem morre, vive intensamente os últimos tempos do seu existir no espaço corporal que é o seu e na sua época.
            A Morte e a Vida não estão separadas; pelo contrário, constituem uma Unidade Natural, Humana, Universal.
            Mercê das células germinativas, o SER humano alberga a eternidade, quando elas são dinamizadas por comportamentos ditados pela consciência teleológica da Espécie Humana. Assim, a sexualidade tem conotações com a Vida e com a Morte; com efeito, na sexualidade que inclua a cópula, a qual cessa com o orgasmo, os seres humanos libertam toda a angústia existencial em máximas metamorfoses de Vida em mortes, quando a percepção da limitação do Eu se dilui até à inconsciência; – é um vazio feito de intenso conteúdo de Vida, – é uma morte.
            A angústia não é mais que erotismo insatisfeito e erotismo é sexualidade insatisfeita.
            Enquanto a Morte e a Vida são processos generalizados, o morrer e o viver, isto é, o modo de morrer e de viver são formas individualizadas do existir do Homem. A Morte não deve ser interpretada como um processo de negação da Vida, o que seria contraditório da referida imortalidade do Homem (Homem metafísico, Homem que se transcendeu em sua corporalidade) conferida pela perpetuidade, devido às células germinativas. É por isso que o Homem É e continuará SER.
            Falo numa visão Universalista, Humanista. Mas a verdade é que a relação que resulta da antítese Vida / Morte é uma realidade subentendida em qualquer homem, porque, apesar de se transcender, ele não perde a sua animalidade; por isso é também verdade que bio-psicologicamente a Morte é individual, isto é, quando alguém morre é esse alguém que cessa de viver.
            Assim, a Morte quando negação de Vida é “angústia de duração” para o Homem enquanto age egocentricamente e se pensa numa filosofia individualista, isto é, quando como indivíduo se sobrepõe à Espécie.
            A morte dum homem não é a Morte do Homem; como canta o poeta, «por morrer uma andorinha não acaba a Primavera».
            Falar da Morte é vaguear no labirinto da complexidade, à procura do incognoscível. São múltiplos e versáteis os caminhos da Morte; pode ser abordada por um discurso literário, por um discurso religioso, por um discurso filosófico, por um discurso histórico, por um discurso sociológico, por um discurso antropológico, uu biológico, ou médico, ou por um discurso psicológico, ou por outros, isto é, a problemática da Morte constitui uma antropociência elaborada com antropociências, não no sentido de Claude Bernard, mas sim na visão de Karl Popper, o qual não recusa valor científico ao que não é observável de imediato através da experiência, desde que seja critério epistemológico dinamizado pela conjunção das 3 noções epistémicas de Kant contidas na convicção: opinião, crença e saber e desde que possa vir a ser sujeito a critérios de testabilidade (de falsificabilidade e de validade).
            Os problemas suscitados pela Mote são determinantes dos comportamentos humanos e a própria Morte tem um notável peso no Sociedade; ela dinamiza a cultura, a actividade científica, modela os valores sociais, os direitos e os deveres individuais e comunitários.
            A angústia da Morte é o motor mais eficaz da criatividade; lembremo-nos do êxito de temas macabros da Arte e da Literatura nos séculos XIV e XV e que persistiram até ao século XVIII.
            As diferentes culturas imprimem diferenças comportamentais nos vivos em relação aos mortos; há culturas que defumam os cadáveres; outras que os cremam; na Tailândia lançam-nos aos abutres para mais tarde recolherem o esqueleto já limpo; no Egipto Antigo os corpos mumificados eram colocados no Nilo; na Síria os mortos são sepultados sentados e, nas sociedades industriais, contra sabemos, há jazigos para os corpos mortos.
            Todos estes comportamentos visam satisfazer a necessidade de o próprio e de os outros prolongarem a Vida; são comportamentos de presentificação continuada, até que o morto se transforme em antepassado, isto é, seja esquecido para ser recordado por quem nunca o conheceu. O luto, a dor moral manifestada, a fotografia, são também heranças da Morte e prolongam, entre os vivos, a presença do finado. Em África promovem-se celebrações nas quais se imitam gestos, voz e outras expressões do defunto – comportamentos, por vezes, explorados identificando-os com fenómenos de “possessão”. Entre nós a “missa de réquie” é também uma celebração de presentificação.
            Mas a Morte, nos nossos espaços culturais e na nossa época, é também o paradigma das diferenças sociais. A distância entre a campa-rasa e o jazigo é análoga à distância entre a barraca e a vivenda opulenta, à distância entre o operário pobre e o capitalista rico, à distância entre os “malnascidos” e os “bem-nascidos, ou os “mal-morridos” e os “bem-morridos”.
            A Tanatocracia e a Tanatopraxis são enormes impulsionadoras das comunidades; para exemplo, refiro alguns dos conteúdos sociais e manifestações dinamizados pela Morte: – as actividades das agências funerárias e das floristas; os rituais sagrados; as indumentárias convencionais (míticas); as dispensas ao trabalho; e todos os custos económicos destes eventos.
           
            Falar da Morte é, para alguns de nós, a passagem da consciência de estar vivo para o medo do nada ou, talvez, a passagem para o medo de qualquer coisa indefinida; – pode ser que seja a maneira de morrer que é temida. O medo da Morte ou o medo dos nossos pensamentos é também um fenómeno psico-histórico-cultural; e é também um fenómeno demográfico. Há regiões no Mundo em que se nasce com a Morte ao lado; para estes seres-humanos, a Morte não tem o mesmo significado que ela tem para nós, por um processo de convivência, o qual confere adaptação.
            Também entre nós e em tempos passados, houve uma maior aceitação da Morte, quando a esperança de Vida, ao nascer, era significativamente pequena e, simultaneamente, a natalidade era grande, isto é, a Morte pré-ocupa-nos e o medo aumenta com o aumento da esperança de Vida e, principalmente, com a diminuição da natalidade. Ora, a vida humana duplicou a sua duração durante o século XX; e a natalidade baixa progressivamente; corremos para um pais de velhos e, em consequência, cresce o medo da morte e cresce o evitamento dos cenários do morrer; talvez, por isso, os nossos mortos são enterrados rapidamente, em funerais apressados.

            A dialéctica entre o “Ter” e o “SER” é também factor de influência no processo do morrer. Um grande investimento nos “teres” com prejuízo do “SER” (homem metafísico) aumenta a angústia da Morte, aumenta o medo de morrer por dificuldades de libertação.
            Por outro lado, a estabilidade, o equilíbrio estável, aproxima o Homem da Morte – já que Vida é equilíbrio instável e viver é um desequilíbrio com capacidades de reequilibração.
            Realmente só a Morte é equilíbrio estável e talvez não; nem a Morte porque, na realidade, nada «acaba, tudo se transforma e esta transformação implicita instabilidade, dinamismo – vida.
            Curiosamente a demência, doença actual cuja frequência aumenta progressivamente faz a adaptação da Pessoa que a sofre à Morte; ela opera lenta, insidiosa e progressivamente o cérebro do indivíduo e, roubando-lhe neurónios, rouba-lhe entendimento e também o medo de morrer; a Morte só existe para quem tem conhecimento dela e conforme o conhecimento que se julga ter dela.
            Para alguns a Morte é o acesso à “Eternidade” e é tida por eles como apenas uma fatalidade natural biologicamente ligada ao “poder oculto” da Natureza e miticamente enraizada no “Pecado Original” – fundamento de todas as desgraças, inclusive a finitude humana.
            Do ponto de vista psicológico, com a morte duma pessoa outras mortes se recordam, – outras mortes de pessoas mortas e outras mortes também de pessoas vivas e a morte dos mortos serve de experiência à futura morte do vivo.
            Há quem, prosaicamente, considera a Morte um sono; se assim a pensarmos será um sono sem sonhos havido numa única e indimensionável noite espreguiçada no TEMPO – num TEMPO esquecido ou nunca lembrado, num TEMPO sem Tempos, num Tempo inconsciente.
            Se assim a pensarmos será a eternidade? ou será um acabar sem início? mas nada acaba, tudo muda e, neste sentido, morrer é mudar.
            Mas voltamos a questionarmo-nos: o que é real no morrer e na Morte?
            Estão em nós todas as respostas necessárias, convenientes, adequadas e dimensionadas a nós mesmos, às nossas dúvidas e para todas as verdades que julgamos fundamentais; porém muitas destas verdades são apenas mitos. A verdade é apenas a interpretação da realidade e esta é só, para cada qual, o que cada qual pensa e sente acerca do fenómeno; mas este pensar e este sentir são elaborados com o capital de conhecimentos e de afectos que cada um possui, em cada momento do seu viver. É por isso que uma realidade externa é essencialmente uma realidade interna, diferente para cada pessoa.
            Qual a diferença, para cada um de nós, entre a realidade que vive numa ilusão e a ilusão duma realidade? Todos nós nos confrontamos no dia-a-dia de nossa praxis não só com o viver, mas também com o morrer.
            A situação da Pessoa que morre é causa de perplexidades, dum espanto envolvente e não raras vezes paralisante e, contudo, é desumano fugirmos do moribundo. O eufemismo “Doente Terminal” traduz bem o desejo do médico em se afastar da Morte e do moribundo.
           Quando falo do moribundo, faço um apelo a todos nós para o respeito que há de humano – de profundamente humano – na Pessoa que sofre a sua morte.
         Todos nós devemos oferecer condições internas e externas à Pessoa para que morra c/ dignidade entre os outros; toda a gente deve morrer a viver o seu existir. Por isso, a Morte é, em vida, a situação de urgência por excelência.
         A Morte é muito mais um fenómeno psico-sócio-cultural do que um processo somático, no qual os vivos vivem (atabalhoadamente) a morte do morto e o moribundo vive a sua morte, enquanto a elabora.
            Rigorosamente a Morte é um mito; ela não existe como realidade conhecida; também não existe psicologicamente porque não é repetitiva. A Pessoa que morre e nós, vivos, que sofremos a sua morte, sofremos fantasmaticamente apenas o que pensamos e sentimos dela, sofremos apenas o que aprendemos acerca dela.
            Sem dúvida que o real esta no atmosférico criado pela relação entre os vivos que sofrem a morte de quem morre e deveria estar na relação afectiva entre o moribundo e os vivos. Assim, a Morte é separação máxima, é vida desincorporada, é afastamento, é autonomia suprema na qual a Pessoa se liberta de todo o condicionamento nomeadamente do próprio existir; mas é a única autonomia que não permite ao humano a liberdade de lutar ou de fugir. Não permite por ignorância – ignorância que resulta de carência de memória e de consciência, já que a consciências está ligada à memória da perenidade e da unidade do indivíduo em dialéctica com o ambiente.
            É esta relação da dialéctica com o morrer que nunca foi vivida; por isso o moribundo não possui a experiência de isso nem, corolariamente, possui a memória da consciência dela. Nem o moribundo, nem os vivos que assistem ao seu morrer ou ao morrer doutros moribundos.
            Há por isso uma perplexidade conflituosa entre a perpetuidade e a temporalidade aprendida. É que a consciência humana contém duas vertentes: a perpetuidade e a unidade do SER consciente.
          Este contexto favorece o sofrimento de angústia, de mudança em direcção ao “continente” desconhecido no qual o Homem encontra Deus – encontra Deus porque se encontra em sua transcendência e encontra os outros – encontra a Vida.
         A Morte estabelece relações interindividuais de grande carga afectiva; o sofrimento une pessoas. Na Morte o corpo perde dimensão, o SER ganha-a.
            A Morte é, seguramente, diferente para o moribundo e para nós, não só porque nós estamos vivos e ele está com a Morte, mas também porque diferente é, certamente, o capital de conhecimentos e de sentires quando perante a Morte.
         Todavia, devemos conhecer, para o ajudar, como é que o moribundo está a elaborar a acomodação à sua Morte; sobretudo deveremos estar, estar com ele, solidários, em comunicação.
          Se assim não agirmos, o moribundo sofre só, porque está só quando morre.
         No contexto ambiente de aproximação da Morte estabelece-se, habitualmente, uma conspiração de silêncio indesejável; – indesejável porque inibe o diálogo interpessoal sobre a angústia que envolve todos os que estão interligados – o moribundo, a família, os amigos. Talvez o padre e o médico.
            Neste contexto esmagado pela angústia, os vivos choram e sofrem, no moribundo, a sua própria morte, porque, quando alguém morre, é uma parte de nós ou em nós, que morre também. Nós choramos a nossa morte, choramo-nos, choramos a nossa perda, choramos a morte da nossa ligação com o morto. E angustiamo-nos nas memórias do morto que estão em nós, que são nossas. A Morte é o maior estimulante mnésico.
Manter a continuidade dos laços afectivos
            É obrigatório que o amigo, o padre, o médico ajude a família a manter a continuidade dos laços afectivos com o moribundo, enquanto vivo, a viver a sua morte, a fim de lhe facilitar a elaboração da Morte; a fim de o felicitar no morrer. Deve falar-lhe com serenidade, contemplativamente; deve tocá-lo com as mãos, em silêncio, que é um modelo de diálogo afectivo e cognitivo rico, verdadeiro e profundo; é o diálogo da solidariedade que é o novo rosto da Paz e da Amizade.
            A nossa praxis está frustrada e irremediavelmente incompleta sempre que não estamos lá a ajudar a Pessoa a morrer a e ajudar a família a humanizar-se no viver.
            Não é por sermos médicos que somos humanistas, mas é o humanismo que faz grandes médicos, porque faz grandes homens.
            A Morte não é uma derrota para o médico se este oferecer até ao fim, à Pessoa, a melhor qualidade de Vida possível.
            Não importa quando se morre; importa sim como se morre e mais ainda como se vive até morrer.
                                                                         Josias Gyll

Publicado em Cyberjornal, edição de 30-05-2019:

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Uma árvore e um pé de dança!

A árvore secular
            Não há quem vá ao Bairro dos Museus, em Cascais, que não continue a lançar um ah! perante aquela árvore secular, de mui rijo raìzame à mostra, que domina o canto norte do Parque Marechal Carmona. Para além de duas ou três mimosas moradias azulejadas do interior da vila – deve ser esse um dos trechos cascalenses mais fotografados.
            Que a árvore impressiona mesmo! E como é que se chama? Será que está classificada?
            Pois para responder à pergunta, há que dar uma volta, entrar no parque e ir até ao pé, porque só desse lado interior está a placa que explica ser «ficus macrophylla» o seu nome científico (nós chamamos-lhe ‘árvore da borracha’) e que, devido às suas excepcionais características mereceu figurar nos anais botânicos do País, estando classificada como exemplar digno preservação, por decreto publicado na II série do «Diário da República», nº 276, de 28 de Novembro de 1996.
            Pergunta-se: não seria de pôr um duplicado dessa placa junto à vedação, a fim de o transeunte mais apressado não tivesse que ir do outro lado e assim ficasse logo esclarecido acerca do fenómeno. Fica a sugestão.

Vai um pé de dança?
            «A Universidade do Vale do Taquari – Univates, do Brasil, gostaria de disponibilizar, em seus materiais de Educação a Distância, o vídeo "Danças Medievais" (https://www.youtube.com/watch?v=unbWOERgqpI). Para isso, solicitamos autorização para realizarmos o download do vídeo em questão ou a utilização de seu link em nossos materiais, que servirá somente para fins educativos».
            Não foi sem surpresa que o grupo cascalense Pé de Dança recebeu, com data de 9 de Maio, p. p., esta mensagem. Deu, claro, imediata autorização e os seus responsáveis ficaram deveras satisfeitos por a sua actividade em prol das danças antigas estar a ter esse eco no país irmão.
            Criado a 6 de Dezembro de 2014, com 18 elementos, todos eles ligados à dança, Pé de Dança escolheu para seu objectivo recriar as danças da Idade Média, tanto as que se faziam no solene ambiente dos salões nobres como as que o Povo de então gostava de executar nas festas e romarias. Procurou, por isso, investigar o que se conhecia, de forma a seguir o maior rigor histórico tanto nos trajes como nas movimentações. Do seu programa constam, entre outras, a dança do castelo, a marcha medieval, a dança do saltinho, a dança das damas, a dança do saltarello…
            Já tem actuado tanto em eventos realizados no concelho de Cascais como, a convite, noutros concelhos do País, promovidos por instituições de beneficência, colectividades, escolas, feiras medievais…
            A sua ambição é vir a constituir motivo de recreação habitual – ou quase – por exemplo, em actividades levadas a cabo no Forte de Oitavos ou mesmo no recém-reanimado Forte de Santo António, quando tal se justifique.
            Para além disso, assumindo-se como «Grupo de Amigos de Cascais», Pé de Dança, que tem sede provisória na Av. Engº Amaro da Costa, 1305-A, no bairro da Pampilheira, proporciona aulas de música (solfejo / teoria musical), acordeão, órgão e piano, assim como de danças de salão, e organiza passeios e caminhadas.
                                  
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 283, 2019-05-29, p. 6.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Patrimoniices cascalenses - O oratório a Santa Rita de Cássia


Fig. 1
           Pois é verdade: o que se mostrou foi apenas a parte de cima (Fig. 1) do oratório erguido em honra de Santa Rita de Cássia (fig. 2), na encosta poente do Vale de Santa Rita, em S. João do Estoril, a caminho já do Alto do Estoril.
            Santa Rita de Cássia, cuja festa litúrgica se celebra a 22 de Maior, nasceu perto de Cássia, na região italiana da Úmbria – daí o nome por que é conhecida. Uma das santas mais veneradas, mormente em casos de aflição extrema, difíceis, menos nos de amor.
            Como reza a placa afixada junto ao oratório (Fig. 3), a iniciativa da sua construção deve-se ao grupo desportivo Estoril Atlético Clube (que tem campo de futebol em baixo) e aos donativos de «pessoas de boa vontade», a 1 de Julho de 1972.
            Escrevi «Vale de Santa Rita». Dir-se-á que «faz todo o sentido!»: o vale chama-se de Santa Rita e, por isso, nada mais natural do que ali erigir um memorial de devoção à santinha milagreira, onde podem depositar-se flores e velas.
            Pois foi um equívoco, que não faz mal nenhum, diga-se desde já. É que a designação do vale nada tem a ver com Santa Rita de Cássia, mas sim com a família Santa Rita, notável pelos seus arquitectos: António José de Santa-Rita (1938-201) e João Santa-Rita, por exemplo. Família que esteve ligada ao urbanismo desse vale.
            Confessemos, porém, que nem os Santa-Rita nem a santinha se ralam nada com isso!

                                                                       José d’Encarnação


Fig. 2

Fig. 3

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Serenidade e emoção num concerto único

              «Concerto único» foi designação usada para classificar o espectáculo que Teresa Salgueiro ia apresentar no dia 17, no Salão Preto e Prata do Casino Estoril.
            Dizia-se «único» nomeadamente por ser a primeira vez que a artista – para nós sempre recordada como vocalista dos Madredeus, ainda que faça hoje mui brilhante carreira a solo – convidava para estarem com ela três outras cantoras que, na verdade, assaz se coadunam com o estilo mavioso a que Teresa nos habituou: Sara Tavares e Marisa Liz.
            Difícil se apresenta, confesso, escrever sobre o que, nessas quase duas horas, nos foi dado assistir, numa atmosfera que muito tinha de espiritual – que me perdoe quem não acredita no espírito. Acreditaria, estou certo, se se tivesse deixado envolver pelo magnetismo terno, suave e quase místico que caracterizou a actuação de Teresa Salgueiro. Foi a sua voz límpida, imaculada, sem pressas, sim; foi também – e há que reconhecê-lo – a magia do ambiente, quer do que o publico se viu «obrigado» a manter, quer, de modo especial, pelo que a produção soube criar, pela sobriedade das luzes e pela exímia qualidade do som (a princípio, houve assim uma distracçãozinha, pareceu-me, e os instrumentos estavam com vontade de se sobreporem à voz, mas foi sol de pouca dura)
            Os músicos. Em perfeita sintonia com a artista.
          Deliciámo-nos com o veterano José Peixoto, uma lenda, mestre sublime no dedilhar da guitarra, vindo também ele dos Madredeus.
         Óscar Torres, no contrabaixo, emprestou aquela sonoridade cava que parece vir das profundezas, a acentuar o timbre claro da voz.
            Fábio Palma, no acordeão, em salpicos, diríamos, daquele cantar que só o portuguesíssimo acordeão sabe emprestar (e que bonito foi o diálogo entre ele e Teresa, no primeiro trecho com que fomos obsequiados, após o alinhamento previsto!).
            Rui Lobato foi-se desdobrando na bateria, nas percussões e na guitarra e se, cada vez mais, a bateria deixou de ser aquele instrumento a marcar o ritmo, teve aqui – nos bem conseguidos arranjos com que todas as composições se vestiram – um papel importante, no sublinhar sereno (permita-se-me o termo, aparentemente contraditório), «cirúrgico», do que Teresa ia cantando.
            Poderá parecer escandaloso dizer que momentos altos foram os encontros, primeiro individuais, de Teresa Salgueiro com Sara Tavares e com Marisa Liz, e, no final, a três (momento mui saboroso, esse!). Mas foram-no. E tenho a certeza de que Teresa não se importará nada com isso, porque o público bem compreendeu a enorme empatia que se gerou entre as três artistas, o enorme prazer que tiveram em estar juntas a obsequiarem, com o seu enorme talento, quantos tivemos a dita de as ouvir.
            E foi mesmo uma dita, essa, que dificilmente se esquecerá! Foi mesmo um concerto único, pleno de serenidade e de emoção! Num outro mundo se viveu ali – e não podemos deixar de estar gratos!

                                                           José d’Encarnação

P. S.: Fotos gentilmente cedidas pelo Gabinete de Imprensa da Estoril-Sol. Bem hajas, Luís Paralta!



Publicado em Cyberjornal, 2019-05-22:

terça-feira, 21 de maio de 2019

A memória… cultiva-se!

              Tive ocasião de dar a conhecer, nas últimas edições, folhetos à primeira vista desprovidos de interesse, mas que facultaram, afinal, notáveis informações acerca do passado são-brasense, guardados que foram por alguém que se apercebeu de quanto a memória faz parte integrante do ser humano e duma comunidade.
            Uma comunidade sem memória não existe! E também para isso serve um Executivo Municipal! Não apenas para facilitar o presente aos munícipes e melhor vida lhes proporcionar no futuro, porque, repito, futuro sem memória válido nunca será.
            Aliás, esse propósito esteve bem patente nas comemorações do centenário: olhou-se para o Futuro, sim, mas não se esqueceu o Passado. E dificilmente sairá da memória dos são-brasenses quão eloquente foi o cortejo à maneira de cem anos atrás; os painéis espalhados pelas ruas em que se recordava o que existira ali, que personagens fizeram a nossa história!...
            Há, pois, caros membros do Executivo Municipal, de olhar com olhos de ver para esse passado e para quem, no território são-brasense ou fora, honrou a sua terra natal.
            Escrevi «fora», porque – feliz ou infelizmente – foi grande (é grande!), a diáspora são-brasense em busca de melhores condições de vida. Mas esses são-brasenses que ora têm mais de 60 anos e que ilustraram a história do País e, naturalmente, o seu berço são-brasense nunca negaram, quando combateram pelo 25 de Abril ou no 11 de Março, quando se ilustraram na Política ou nas Artes ou no Desporto ou nas Ciências…Por isso, quando, agora, pensam em legar ao Município parte do espólio das suas vidas, importa que o Executivo prontamente lhes dê atenção, sob pena de – por ausência de resposta – o seu legado ir enriquecer outros arquivos!
            É urgente a criação de um espaço que, a par do que faz o Museu do Trajo, venha a albergar todos esses espólios que são, queira-se ou não, parte integrante da história são-brasense. Crie-se já um bom Arquivo Municipal!
            E quiçá para o efeito venha a sobrar alguma verbazinha desse projecto de criação, na Fonte Férrea, de… uma praia fluvial! A praia é futuro; mas futuro que não se alicerça no passado corre, Amigos, sério risco de desabar!

                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 270, 20-05-2019, p. 13.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Faleceu Nuno Lima de Carvalho

             Natural de Viana do Castelo (12-06-1932), faleceu hoje, 16 de Maio, o Dr. Nuno Lima de Carvalho.
           Depois de intensa actividade como secretário-geral da Estoril-Sol, Lima de Carvalho entregou-se de alma e coração à sua galeria de arte no Casino Estoril, onde se fazia acompanhar por sua esposa. Duas presenças, aliás, que não dispensávamos.
            E se, como responsável pela projecção da Estoril-Sol, lhe ficamos a dever a iniciativa pioneira de semanas gastronómicas, de artesanato e culturais, mormente relativas a regiões específicas (da Baía, de Trás-os-Montes, do Minho, da Galiza…), que sempre com saudade se recordarão, no âmbito das Artes Plásticas o seu entusiasmo pela pintura «naïf» não teve igual, assim como a organização dos salões de Arte Infantil, na perspectiva – sempre adiada pelas entidades – de vir a ser criado em Cascais um Museu de Arte Infantil.
            Foi a sua galeria um berço onde se acarinharam os jovens artistas, quer pela sua aceitação nos salões da Primavera ou de Outono, quer porque, em colaboração com docentes das escolas de Belas Artes, cedo os finalistas aí puderam expor os seus primeiros e mais promissores trabalhos, acontecendo que muitos deles aí vieram a fazer a sua primeira exposição individual.
           Poder-se-á mesmo afirmar que nenhum artista importante português deixou de ter as suas obras expostas no Casino Estoril, porque a todos Lima de Carvalho dava acolhimento.
            Antes do movimento – que hoje se generalizou – de apoio à gastronomia tradicional, já Nuno Lima de Carvalho pugnava pela preservação dos pratos típicos de cada região, mormente do seu Minho natal. Recorde-se que, por isso mesmo, teve, a 27 de Janeiro de 2018, em Cascais, mui luzida homenagem prestada pela Confraria dos Gastrónomos do Minho, altura em que lhe fiz a fotografia que ilustra esta minha crónica de saudade.
            Em Duas Vidas, Muitas Vidas, livro que foi lançado a 26 de Novembro de 2016, deu conta do que fora até então a sua vida e não hesitou em incluir aí referências a quantos passaram pela sua vida, quer como artistas quer como amigos.
            Partiu, com a serenidade de ter lançado raízes para a construção de um mundo mais atento à Arte, ao Belo, àquilo que a Vida, afinal, de mais agradável nos pode proporcionar. Ao visitarmos, doravante, a Galeria de Arte do Casino, continuaremos a sentir ali a sua presença, o seu dinamismo, o seu incondicional apoio aos artistas, que hoje, seu filho, Pedro Lima de Carvalho, faz questão em perpetuar.
            Que descanse em paz quem nunca desistiu de lutar. Aliás, nessa questão de ‘lutas’, recordarei que estava sempre a dizer que não compreendia por que razão se não deixavam as crianças entrar na galeria. Partiu já depois de essa batalha ter sido ganha, porque tal acesso recentemente se permitiu. Ganhaste, Amigo! Até sempre, irmão Nuno!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 2019-05-16:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/quem-e-quem/faleceu-nuno-lima-de-carvalho

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Lavar os dentes


             Dei comigo a pensar, nos momentos matinais de uma operação tão comezinha e corriqueira como lavar os dentes. Nunca imaginara eu descrever os gestos inconscientemente mecânicos que ela implica e como – exactamente por serem inconscientes, sem necessidade de os acompanhar com o pensamento – podem ser momentos aproveitáveis.
            Uma primeira sensação, a de agradecimento: tenho água, tenho posses para a pasta dentífrica da minha preferência. Escovo os dentes como me ensinaram e como eu ensinei a meus filhos: na vertical, ora dum lado ora doutro. E lembrei-me daquele dia, em que, na sala de embarque para uma viagem aérea, a mãe pegara no telemóvel e insistentemente perguntava «E o Carlinhos já lavou os dentes?», como se não quisesse partir sem ter a certeza de que o seu Carlinhos lavara os dentes.
            O prazer que se sente nesses gestos. Aliás, aos actos de higiene está sempre ligada uma sensação agradável que instintivamente nos ajuda a praticá-los. Em nós e nos animais. Sinto o prazer do Spike, o labrador, quando o escovo; e o do Maio, gato, quando lhe passo a escova pelo dorso que se arqueia…
            Verifiquei hoje que é tudo automático: o pegar no copo e enchê-lo de água à torneira (amiúde me lembro da cidade do Cabo que não tem água potável – e dou graças a Deus!); o ir buscar a escova e tirar-lhe o resguardo; o estender da pasta (cuidado, não é preciso muita, que ‘no poupar está o ganho’); o referido escovar segundo as regras aprendidas logo na instrução primária, de prótese na mão esquerda à espera de escova ela também (e agradeço por ter prótese, que minha avó materna sempre a conheci completamente desdentada, porque no seu tempo não havia próteses ou dinheiro para elas); o alívio do bochechar final; a possibilidade de secar lábios e mãos numa toalha ou mesmo no toalhão de banho (privilégio este também!)...
            Tudo automático, pois. O pensamento, porém, fixara-se já, sem pressas nem inquietação, no que haveria para fazer nesse dia. E o bloquinho lá estava, no lugar certo, com o lápis ao pé, para, entre uma escovadela e outra, se necessário, ali apontar algo a não esquecer, o tema possível para a próxima crónica no Renascimento ou a pesquisa que importava ainda fazer para completar o raciocínio daquele artigo científico que está entre mãos…

                                                                 José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 754, 2019-05-15, p. 11.