sábado, 31 de agosto de 2024

O correio

           
             «– Será do seu António, será – respondeu o insensível funcionário. – O que lhe posso dizer é que traz obreia preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquelas sinistras palavras.»
Muitos se lembrarão desta passagem d’A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis. Uma das cenas mais bem descritas, mais emotivas e mais reais duma aldeia em que a comunicação com os entes queridos era por carta, muito de longe em longe. Carta que, para obter resposta, necessitava da ajuda do menino ou da menina que lograra estudar até à 4ª classe e sabia já os trâmites «Meu saudoso Jorge, estimo que estas regras te vão encontrar com saúde; nós por cá bem felizmente».
Ainda mexe também com muitos de nós o «Postal dos Correios», de Rui Veloso, música singela mas tocante dos Rio Grande: «Querida mãe, querido pai, então que tal? Nós andamos do jeito que Deus quer». Neste caso, não a emigração para o Brasil ou para Franças e Araganças do tempo de Júlio Dinis, no século XIX, mas a vinda da província para a cidade a partir de meados do século XX. Para já se não falar dos aerogramas da guerra colonial, entre 1964 e 1974…
Agora, o telemóvel, a videochamada galgam fronteiras, matam saudades, num abrir e fechar de olhos. De vez em quando, porém, os que já levamos algumas décadas de vida
– somos capazes de ficar sensibilizados, ao ver, em Londres, os marcos de correio como eram os da nossa meninice;
– somos capazes de, ao ter de escrever correcto e bem visível o código postal, nos lembrarmos que, na década de 50, bastava pôr o nome e «Lugar de Birre – Cascais» e o carteiro conhecia todos os moradores do lugar e sabia bem onde entregar, mesmo que fosse na taberna, que o destinatário vinha buscar;
– somos capazes de compreender quanto era doloroso para o Domingos Barradas, de 7 aninhos, para ganhar uns tostanitos com que ajudava a sopita, palmilhar, descalço, todos os dias da semana, os 7 quilómetros entre a Vendinha e Montoito, carregado com os sacos do correio (como era bom ter boleia da carroça que adregasse passar!...);
– somos capazes de recordar que, na Linha do Sul, se podia tomar, à noite, o comboio-correio, do Barreiro a Vila Real de Santo António, com mais demorada paragem na Funcheira, estação ainda hoje lembrada (mas, infelizmente, só lembrada!) como «ponto de junção das linhas oriundas de Setúbal, do Algarve, e do eixo Évora-Beja».

                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 868, 15 de Agosto de 2024, p. 10.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

A esteira

            Foi uma das primeiras sensações estranhas que, como epigrafista, tive, quando, em Outubro de 1989, desembarquei, pela primeira vez, no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro: as bagagens iam ser-me entregues numa… esteira!
Pasmei; mas o pasmo depressa deu lugar à admiração, ao verificar, nos dias seguintes dessa estada, que muitas outras palavras ‘clássicas’, do nosso quotidiano falar d’outrora, o brasileiro mantivera. A mais conhecida será, porventura, para os que lidamos com a temática histórica, o tombo. É certo: mantemos a Torre do Tombo; mas, no Brasil, não se fala «classificar um prédio» e sim «tombar»!
E dei comigo a pensar nesta palavra, que – usual no Algarve, porque nos habituámos às esteiras e aos capachos de empreita – em linguagem citadina logo vai para a desgraça: «Coitados, nem cama têm, dormem numa esteira!». E essa, porventura, nem esteira é, mas ‘tapete’, que é, aliás, o vocábulo usado oficialmente nos nossos aeroportos.
Fui ver (já é mania!...) donde é que vinha a palavra. E não é que vem do latim ‘storia’? Exacto: com o mesmo som, praticamente, de «historia»!
E isso me fez lembrar uma outra sensação, essa (curiosamente!) em Maio de 1968, ao ver, junto à Koutoubia, em Marraquexe, um ancião, sentado de pernas cruzadas numa esteira, rodeado de ouvintes: era um contador de histórias! Situação que nos leva de imediato a pensar no «tapete mágico» – e não na esteira… – das histórias das Mil e Uma Noites.
Esteira seria, de facto, pouco prática para voar e mesmo também o é para nós se, nas calmosas tarde do Verão algarvio, nelas nos queremos esticar: há que pôr uma mantinha por cima!

E, para os figos, a esteira é outra, não de palma, mas de cana; e, aí, sempre ganha asas, como o tapete mágico, demanda terras orientais e exige que a ponham, mais os seus figuinhos ao sol, em lugar solene, com nome a condizer com a sua elevada categoria artesanal: o almanxar! Ora toma! Assim, quando a brandura começar a ‘cair’ (e agora já não é precisa, pois os figos estão é a secar!), lá virá, sorrateira, a dona da casa e mui cuidadosamente tudo enrolará e guarda. Amanhã, outro dia será!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 333, 20-08-2024, p. 13.

 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Gorpelha

            Sempre me encantou a gorpelha.
Desde pequeno.
O jeito de se fazer em palma aquele sacão enorme que se punha sobre a albarda do animal – o burro, a mula… – assim a modos dos alforges.
Só que os alforges tinham um ar mais feminino, feitos (parecia-me) de retalhos coloridos, e serviam para lá pôr, dum lado e doutro da albarda, coisas delicadas, que a senhora comprara na feira. E sobre os alforges por serem de pano, podia a senhora sentar-se de lado, sem problemas de segurança.
A gorpelha, não. Ainda que obra de mãos femininas, claro, era objecto para ser manuseado por mãos calejadas. Lá se transportavam as alfarrobas. Menos as amêndoas que sempre me lembro de as ver em sacas, que amêndoa exige mais delicadeza de trato. Alfarroba, não. Tem casca rugosa, é comprida e ajeita-se bem na gorpelha. Também o feno. Acho que me lembro de se pôr feno na gorpelha. Feno e folharasca para a cama das bestas.
Grande invenção a gorpelha!

            E, portanto, além de ter pedido ao Emanuel Sancho que, da sua preciosa colecção, me cedesse uma foto ilustrativa (aí vai!), fui investigar a origem do nome.
Dir-me-ão logo que é golpelha que se escreve e não gorpelha. Esclarecerei que há as duas formas. Golpelha é mais difícil de pronunciar, até porque duas sílabas seguidas com l (gol e pelh) a gente gosta logo de fazer a dissimilação e mete o r. Acrescentar-se-á que, do ponto de vista etimológico, da origem da palavra, gorpelha (com r) é que está correcto, porque deriva da palavra latina «corbicula», que se encontra registada na obra do agrónomo latino Paládio (livro 3, 10.6), com o significado – imagine-se! – de «cesto pequeno». De pequeno passou a grande no Algarve (as manigâncias que a língua traz!...); e o «b» passou a «p», que é mais fácil de pronunciar.
            Anote-se: a, por vezes, indicada, origem da palavra a partir do latim «vulpicula», ‘raposa pequena’, não pode ser senão… anedota! Quanto a ser de esparto, não nego que possa ser; eu sempre a vi de empreita. Quanto a servir para transporte de fruta, amigos, vocês acham?

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 332, 20-07-2024, p. 13.

 Post-scriptum: a fotografia gentilmente enviada por Vítor Barros:



quinta-feira, 18 de julho de 2024

Vadiar

            Confessava, há dias, a um amigo a minha enorme costela de preguiçoso: procuro sempre escolher os caminhos mais fáceis, dou vazão quase imediata aos assuntos simples… «Este já está! Vamos a outro!». A pessoa fica aliviada e pode preguiçar um pouco antes de se meter noutro embaraço.
            Desse amigo recebi, em resposta, uma frase lapidar:
«A preguiça é um direito para quem trabalha!».
            E mais preguiçoso fiquei.
            Porventura, mais consciente de que muita razão tinham os Romanos, quando procuravam conciliar o ‘otium’ com o ‘negotium’, um o contrário do outro, para contrabalançar.
            Por isso me alegrei esta semana, ao receber carta de uma colega brasileira: aposentada há já algum tempo, está agora com um dos filhos a descobrir, finalmente, a terra italiana donde seus antepassados fugiram para o Brasil, por ocasião da II Grande Guerra. E recebi uma outra, de um casal amigo, francês, aposentados desde há pouco: andam a descobrir o Peru!
            Por isso, há tempos, pus a cabeça entre as mãos, ao saber, de dois outros grandes amigos meus, ele e ela. Ela, então, muito da minha amizade, cúmplices de muitas andanças. Outro dia, num jantar, explicou-me ele porque se haviam divorciado, embora continue a gostar dela. É que vivia para o seu trabalho: ela, docente, não tinha tempo para ele.
– Vamos dar um passeio?
– Desculpa, não tenho tempo, tenho um monte de testes para ver.
Era sábado, hipoteticamente dia de pausa…
Conclusão: vadiar é preciso!
          O tempo atmosférico não está, de facto, agora para vadiagens ao ar livre, porque tanto há calorzinho agora, como, daqui a pouco, surge, de repente, no horizonte, uma nuvem bem cinzenta e dá em despejar-nos o cântaro em cima! O segredo está no aproveitar: há uma nesga de sol? Vamos dar já um giro! Se houver horários a cumprir, paciência! Vamos aproveitar quando os não haja, porque, é verdade, vadiar é mesmo preciso!

                                               José d’Encarnação

            Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 867, 15-07-2024, p. 10.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Renascimento

             Já são mais de 300 as crónicas que este jornal me albergou e ainda não me interrogara sobre qual o motivo porque lhe terão dado esse nome. Constará das crónicas; estará, eventualmente, explicado no editorial do 1º número. Prefiro, todavia, atribuir-lhe eu uma razão, passível – ou não – de acertar no prognóstico.
            Explico-me.
            Nas pausas da escrita, deambulo pelo jardim e admiro o evoluir das plantas e, sobretudo, das flores: ontem, era botão, hoje desabrochou; ontem, ostentava as pétalas ao vento num chamariz de insectos para os estames gulosos, hoje está com vontade de me dizer que o seu ciclo vistoso por ora acabou. Mal a luminosidade dá em diminuir há pétalas que se recolhem, como pestanas a proteger a visão, há folhinhas que se encostam umas às outras, num acoitar protector…
Cycas revoluta
          
            Muito me apraz saudar, pelos finais de Maio, a cycas revoluta, nome científico de uma palmeirinha anã, de jeito pré-histórico, qual bonsai. O nome comum é sagu-de-jardim. Do tronco lhe saem compridas folhas, alargando-se em pavoneante copa. E por esses finais de Maio, chama-me: é que o meio do tronco se prepara para eclodir e, mui suavemente, em movimento lentíssimo e imperceptível, as folhinhas muito chegadas unas às outras, protegidas por um manto de penugem (dir-se-ia), vão crescendo e desprendendo-se. Fotógrafos especialistas da vegetação decerto já puseram uma câmara ao pé para, no decorrer dos dias, a objectiva ir disparando e proporcionando, assim, a visão acabada do que é, a meu ver, uma verdadeira maravilha. Semanas após semanas, até o verde viçoso se espreguiçar em leque.

            Daí me surgiu a palavra. «Renascimento», para título de jornal regional, é auspício e é programa de luta:
– auspício, por cada número veicular notícia de iniciativas inovadoras, vontade de renovação dinâmica;
– programa de luta, porque há que espicaçar os menos audazes, sugerir outros caminhos, apontar metas, sacudir da modorra em que amiúde há a tentação de se ficar.
A carruagem está em andamento? Deixemo-la ir, que a inércia se encarregará do empurrão. Não é verdade: o movimento da inércia não é, como poderia pensar-se, mais veloz à medida que se aproxima do fim: vai adormecendo, adormecendo. E esse adormir já não interessa a ninguém.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 866, Junho de 2024, p. 10.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Alfarroba

Que poderá incluir-se numa crónica a que se dê o título de Alfarroba?
Sei que o nome já foi adoptado para designação de estabelecimentos comerciais. Acerca da genuína e antiga utilização do fruto para alimentação dos animais domésticos – o porco, o burro, a mula, o cavalo… – nada poderá acrescentar-se, a não ser garantir que isso foi outrora e, nos nossos dias, à alfarroba se reservam outras especialidades mais gostosas e de maior rendimento, que as bestas se alimentam agora com rações artificiais, genericamente alteradas. Estamos conversados.
            Consegui que, num dos recantos ajardinados do meu bairro suburbano, se preservasse a alfarrobeira que por lá espontaneamente crescera, ao pé duns carrascos. Também no Casal Saloio de Outeiro de Polima, o Centro de Interpretação do Espaço Rural de Cascais, se implantou no pátio interior uma oliveira e uma alfarrobeira, árvores simbólicas, na intenção de lembrar que, nessa região saloia, muito sangue algarvio ainda corre. A do Casal não vi bem como é; a do meu bairro é brava, não dá alfarroba de jeito, não floresce como deve ser para atrair abelha.
            O que, de facto, mais me encanta na alfarrobeira é precisamente esse cheirinho acre, bem activo, das suas flores e as abelhas a não resistiram ao convite dos suculentos estames. A do meu bairro não tem.
            Comi alfarrobas em criança, quase por brincadeira (confesso). Um sabor áspero, farinhento… Dispomos agora de licor de alfarroba, de biscoitos de alfarroba, de creme de alfarroba, tabletes... E pugnamos para que a ladroagem se não atreva a varejar árvores alheias…
            Diligenciei, com êxito, para que a palavra ‘folharasca’ entrasse no Dicionário Digital das Língua Portuguesa em permanente actualização pela Academia das Ciências de Lisboa. Foi acolhido, como regionalismo algarvio, no sentido de «conjunto das folhas secas da alfarrobeira caídas». Aí se justifica a inserção com a seguinte passagem d’O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge: «Macário caiu de joelhos às abas de uma alfarrobeira submersa em folharasca» (1995, p. 195).
            Rezam os outros dicionários que – como se suspeitava – a palavra vem do árabe: al-carroba, alkharrub. Por isso não estranhamos em ver escrito num rótulo CAROB – qual tentação mediterrânica! E que tentação, senhores!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 331, 20-06-2024, p. 13.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

O hífen e o travessão


            Contestei, em Agosto de 2012, a correcção que me fora feita num texto: haviam posto um hífen onde eu queria um travessão. Foi-me respondido que a revista, por ser editada por um organismo oficial, tinha de seguir as regras da NP 405-1 de 1994. Como perguntei junto de quem eu poderia protestar contra uma dessas regras que está errada, foi-me dito que «o protesto deverá ser enviado para o editor da norma, o Instituto Português de Qualidade, ou para a Biblioteca Nacional de Portugal». Da BNP não obtive resposta.

Não é fácil a escolha entre hífen e travessão e, por isso, nem sempre o algoritmo dos processadores de texto acerta. O normal é pôr hífen e tem de ser o escrevente a alterar quando há erro.
Na gramática, vêm explicados os casos em que o hífen se usa: por exemplo, «para indicar, no fim de linha, a divisão da sílaba», «para ligar os pronomes enclíticos às formas verbais» (lavo-me). Geralmente não se registam anomalias nesse uso por ser vulgar, o algoritmo foi bem programado; anote-se, todavia, que o novo acordo ortográfico suprimiu o seu uso «para ligar a preposição de às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver»: escreve-se agora hei de, hás de, há de, hão de.
O travessão, por seu turno, «serve não só para chamar a atenção para a palavra ou palavras que se seguem, mas ainda para, nos diálogos, indicar a mudança de interlocutor. Pode substituir o parêntesis.
E é aqui que amiúde se erra. Ora veja-se a frase: «O António – que é um excelente rapaz – telefonou-me». Neste caso, amiúde, o algoritmo não fecha o inciso com travessão mas com hífen e é preciso o autor estar bem atento para não deixar passar o lapso.
Uma regra simples pode ser esta:
– O hífen está sempre ligado à palavra, não se deixa espaço: ‘telefonou-me’;
– O travessão, ao invés, nos textos em português (em castelhano, é diferente), deve ter sempre espaço antes e depois.
Verifiquem-se dois aspectos, no que se acaba de ler: como se tratava de uma enumeração, usou-se no início o travessão; contudo, o algoritmo não mudou automaticamente do hífen para o travessão; tive de ir, no teclado, aos símbolos ou accionar ctrl + hífen para lograr pôr travessão.
Como dá muito ‘trabalho’ (!), o mais corrente é… que não se ligue importância a isso – e Deus seja louvado!

                                                                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento, de Mangualde, edição nº 865, 15-05-2024, p. 10.