Fez dois anos, a
27 de Novembro, que o fado foi integrado pela UNESCO no rol das manifestações
artísticas património imaterial da Humanidade.
O
fado – da palavra latina «fatum», ‘destino’ – formou-se a partir do contacto entre as tradições culturais e musicais africanas e
brasileiras. Fruto dessa aculturação
secular, constitui, pois, um
património. E é atendendo a esse
processo de formação – no mundo que o Português criou – que se assume também, na sua temática (a saudade, o amor, a melancolia da ausência e da
partida…), como uma das tónicas
dominantes do que poderíamos designar a «alma portuguesa» na sua
singularidade.
Para assinalar a
efeméride e em homenagem ao cascalense Carlos Zel, prematuramente falecido, com
51 anos, a 14 de Fevereiro de 2002, fadista que mantinha, na altura, um
programa de fado, às quartas-feiras, no Casino Estoril, realizou-se, nesse dia
27, a 12ª edição da “Grande
Gala do Fado – Carlos Zel”.
Registou
enchente o Salão Preto e Prata, como nas grandes noites de há uns anos atrás!
Jantar mui saboroso, de um discreto requinte, em que, por exemplo, o porco
preto salpicado de ervas aromáticas fez ressaltar apetitoso regresso a uma
ementa de cariz mediterrânico muito nosso.
Apresentado
por Branca Frazão, a viúva de Carlos Zel, o espectáculo abriu, às 23.10 h., com
um magnífico ‘instrumental’, de certo modo para nos ambientar e familiarizar
com o enorme virtuosismo dos músicos: Paulo Parreira, na guitarra portuguesa, prestigioso;
Carlos Garcia, na viola (muito balançado, em ritmo, a noite toda); mais
discreto, Marino de Freitas, na viola baixo.
Às
23.15 h., elegante no seu vestido negro comprido, perlado de corolas vermelhas,
cordão com coração de filigrana ao peito, longos cabelos negros a ondular-lhe
sobre as costas: a jovem (n.
30-09-1982) Joana Amendoeira, escalabitana. Encantou nos quatro fados cantados
– não anunciados, porém, a não ser o último, «Fado d’Outrora», um dos que Zel amiúde
incluía nas suas actuações.
23.30 h.: meio tímido, António
Zambujo, da nova geração (Beja, 1975), vai cantar sentado. Convida a dar «uma
voltinha na minha lambreta». «Pedaço
de mau caminho / Onde é que eu tinha a cabeça / Quando te disse que sim?» – foi
o «Flagrante», interpretado com voz macia pelo ‘melhor intérprete
masculino de fado’ (Prémio Amália Rodrigues 2006). Fados? Talvez. Num sotaque que ressuma Brasil: regresso,
afinal, das modas que, séculos atrás, de África e deste cantinho, ousámos levar
para lá?
23.45 h.: a esguia e alfacinha Aldina
Duarte (22-07-1967), vestido negro até aos pés, de lantejoulas aqui e além, mangas largas caídas em jeito de estilizado xaile. A
sua voz quente e cheia levou-nos pelo fado tradicional. Largo sorriso no fim de
cada fado, grande concentração antes de os iniciar. «E os rios perdem o mar / e
as pedras rolam de espanto» (Fado com Dono); «Espelho meu, diz a verdade da
idade da saudade à mulher envelhecida!».
Meia-noite:
Rodrigo, embora alfacinha também (29-6-1941), é o fado de Cascais, vadio e fora
de portas, ali para as bandas de Birre, a «praia» do Zel!... Veste casaco sobre
camisola de gola; no peito, como é seu timbre, um cordão de ouro com pendente. Não
hesita em falar antes e depois, dizendo de autores das letras e das músicas, em
voz meio enrouquecida. Começa pelo «recado» de João Dias: «Que ninguém chore
por mim / Na festa da minha morte». Prossegue, depois da «morena dos olhos
verdes», com um dos seus preferidos: «É tão bom ser pequenino!». Conclui – não
sem sublinhar «É hora de solidariedade, olhem para o vosso vizinho» – com o
tradicional «Fado do fado».
Meia-noite
e um quarto: Ana Moura, outra escalabitana, da nova geração também (1979), alta
e esguia deveras no seu vestido negro comprido, num rendilhado que pelos braços
se prolonga, qual xaile numa saudade. Delicio-me com um dos seus fados meus
preferidos: «Vestido negro cingido / Cabelo negro comprido
/ E negro xaile bordado. / Subindo à noite a avenida / Quem passa julga-a
perdida / Mulher de vício e pecado» – a fadista. Trina a guitarra imponente. E… «Sou do fado»: tinha
que ser!...
Meia-noite
e meia: João Ferreira Rosa (Lisboa, 16-02-1937). O veterano. De camisa
negra, fralda de fora, calça preta, mãos nos bolsos. A tradição. «Ser fadista
é triste sorte»… Ouvimo-lo,
sentimo-lo, o tempo pára. Só o rosto tem expressão, quase imperturbável, porém.
E, inevitavelmente, "O Embuçado" – que mui calorosamente
aplaudimos!
00.45
h.: Maria da Fé (Porto, 25-05-1942). De negro vestida; negra, a echarpe.
«Valeu a pena». «Cantarei até que a voz me doa!». Em plena forma. O Fado castiço
na sua melhor expressão.
Saímos
todos regalados pelo percurso intergeracional com que a produção do espectáculo
nos brindou. A fazer-nos reviver galas de outrora e – porque não? – a magicar na
secreta esperança de vermos, um dia destes, regressar a Cascais uma das suas
mais lídimas tradições, deveras apreciada por residentes e forasteiros. Faz
bem, claro, o Casino Estoril em nos instigar a sonhar!
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos
de Oeiras e Cascais, nº 25, 04-12-2013, p. 6.