quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Pelo mundo das tipografias

Os dois Valentins
            Passaram quase sete meses sobre o falecimento do Padre Valentim Marques. A notícia veio no jornal de Coimbra O Campeão das Províncias. Abriu na 1ª página da edição de 5 de Junho p. p.:
            «O padre Valentim Marques – que, durante décadas, foi gerente da Gráfica de Coimbra, propriedade da Diocese – morreu, hoje, aos 78 anos de idade».
            Acrescentava-se que o vitimara um acidente vascular cerebral e assinalava-se, desde logo, que fora substituído, em Março de 2012, na gerência da Gráfica pelo padre Manuel Carvalheiro Dias.
            Nas páginas interiores da edição, em artigo assinado por Rui Avelar Duarte intitulado «Baixa entre os apoiantes da liberdade de expressão», não foi esquecido o facto de, no período quente da revolução portuguesa, o PREC, o padre Valentim não ter hesitado em imprimir o jornal «A Luta», que se propunha substituir o «República», dirigido então por Raul Rego e Victor Direito e cuja publicação os revolucionários tinham proibido! Nenhuma tipografia ousara fazê-lo!
            E acrescenta o jornalista:
            «O ex-gestor, conceituado no meio empresarial, esteve no centro das transformações por que passou a Gráfica de Coimbra, um baluarte no seu sector de actividade até acabar por falir».
            Com ele trabalhei durante quase quatro décadas e permita-se-me que a ele associe um outro Valentim, o Morais, o grande obreiro de Mirandela & Cia, de Lisboa, um visionário também ele! Na Mirandela se fazia o Jornal da Costa do Sol, que, mui orgulhosamente, foi, a partir do nº 202, datado de 2 de Março de 1968, «o primeiro jornal português impresso em offset»! Com a Gráfica de Coimbra trabalhei também porque lá se faziam todas as publicações do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras de Coimbra. Pioneiros, ambos, a raiar a ousadia, pois não iam a uma feira de artes gráficas que não trouxessem de lá o «último grito» em maquinaria. A Mirandela acabou por soçobrar na viragem do descalabro económico geral; a Gráfica, vítima de uma concorrência feroz…
            Muito aprendi com ambos e com os seus operários e custa-me ver como tão nobre arte se deixa, amiúde, descarrilar! Tantas gralhas, tantos erros ortográficos e sintácticos, tanta maquetização a trouxe-mouxe!...
O papel pioneiro dos Salesianos
            Custa-me, sobretudo, porque, antes dos Valentins, eu convivera intensamente, como professor, no ano lectivo de 1963-1964, na Escola Profissional de Santo António, em Izeda, com a monotype, os caracteres de chumbo, o prelo, os linguados, a revisão de provas… Uma escola onde, à noite, os irmãos salesianos tipógrafos precisavam de beber bastante leite para se desintoxicarem de uma jornada em ambiente saturado de chumbo…
            Estava, de facto, a Escola – que era de correcção, dependente dos Serviços Tutelares de Menores – confiada aos Salesianos e, tal como acontecia no mesmo âmbito, em Vila do Conde, outra escola profissional e de correcção que lhes fora entregue, um dos meios de integração dos ‘correços’ na sociedade era a aprendizagem de um ofício. As artes gráficas ocupavam nessa linha um lugar cimeiro.
            S. João Bosco (1815-1888), o fundador da congregação, cedo se apercebeu de quão importante era o ensino profissional, nomeadamente, na altura, o que se prendia com as artes gráficas, pelo que elas podiam proporcionar: os folhetos, os livrinhos, os jornais constituíam veículos únicos para a educação da juventude e da população, em geral, uma população desenraizada, vinda do campo para a cidade, em plena era industrial, na ânsia de uma vida melhor.
            A obra de D. Bosco floresceu e as escolas tipográficas multiplicaram-se por todos os países onde os Padres Salesianos foram aceites.
            Entre nós, pelas Oficinas de S. José, em Lisboa, por exemplo, passaram gerações de tipógrafos. Aliás, Joaquim Antunes evocava no Boletim Informativo de Dezembro/Janeiro, editado pelos Salesianos, o que fora, nos anos 50, a enorme homenagem feita, precisamente em Lisboa, ao salesiano Achiles Marchetti, um dos que, vindos de Itália, fora mestre de muitos dos que rapidamente se espalharam pelas tipografias do País. Uma das muitas "histórias‎ que fizeram História"…
            Por isso, ao recordar a memória do Padre Valentim Marques – amigo e confidente de Miguel Torga, que na Gráfica passava amiúde para rever ou entregar as provas dos seus Diários… – e ao saudar a obra que Valentim Morais mui ousadamente empreendeu, não posso deixar de saudar também quantos, ainda hoje, preferem sentir nas mãos o contacto do papel. Saúdo os livreiros que acarinham a língua portuguesa e terminantemente exigem qualidade e revisão dos textos. Saúdo os que, apesar de tudo, ainda acham que um jornal palpável (não meramente virtual) merece a pena. Bem sei que, para isso, há mais árvores que se abatem; mas… esse abate, desde que racional e programado, acaba por trazer, afinal, um benefício maior!
                                                                          José d’Encarnação
 
Publicado em Cyberjornal, edição de 31-12-2015:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1967:pelo-mundo-das-tipografias-os-dois-valentins&catid=91:quem-e-quem&Itemid=30

Um alerta sobre o Paço Real de Caxias

            Sob o título «Palácio sob tutela militar vandalizado e a cair aos bocados em Caxias», publicou José António Cerejo, na edição do passado dia 22 do jornal Público, uma reportagem que vem na sequência de o movimento cívico denominado Fórum Cidadania Lisboa, ao tomar conhecimento da situação, não ter hesitado em enviar, no dia anterior, ao ministro da Defesa, Azeredo Lopes, uma carta a pedir esclarecimentos e a perguntar se já se pensou no assunto.
            Claro que o senhor ministro, recém-empossado, terá respondido que o seu ministério estava agora a estudar esse e outros casos pendentes, uma vez que a hipótese, que se pusera em 2012, de alienação do imóvel ficara sem consequências práticas.
            Classificado, em 1953, como imóvel de interesse público, esse «pequeno palácio» «mandado construir por D. Francisco de Bragança, irmão de D. João V» é, agora, continua o articulista, «um casebre imundo, abandonado, vandalizado, saqueado, à beira da ruína».
            «Convivi» com o palácio em 1971, quando prestei serviço militar no Centro de Estudos Psicotécnicos do Exército ali ao lado; lembrava-me de, após a recuperação dos jardins do paço levada a efeito, em 1986, pela Câmara de Oeiras, ali ter assistido a um bem agradável jantar que terminou por bonita girândola pirotécnica numa das fontes (salvo o erro); e porque sabia estar o meu colega e amigo Carlos Beloto ligado, de certo modo, ao local, quis saber a sua opinião a esse respeito.
            Respondeu-me que «longe de discordar da necessidade de se recuperar o património e, em particular, a Quinta Real de Caxias na qual se integra o Paço Real», poderia aproveitar o ensejo para me dar alguns esclarecimentos acerca da história da Quinta, o que muito lhe agradeço.
            Assim:
            1. Os jardins e cascata foram iniciados, em 1775, pelo príncipe D. Pedro de Bragança, mais tarde D. Pedro III pelo casamento com D. Maria I. O citado D. Francisco de Bragança havia morrido em 1742.
            2. O Paço começou a ser construído em Agosto de 1785. É, portanto, uma obra 30 anos posterior ao terramoto de 1755.
            3. O Paço serviu para apoio à Família Real nas suas deslocações a Caxias, quer para assistir à partida dos grandes barcos para a Índia ou Brasil, quer para assistir às vindimas ou aos muitos jantares, lanches e festas de que temos notícia. Depois do regresso da Corte do Brasil, o Paço passou a ser residência temporária dalguns personagens ligados à Corte, como, por exemplo, a Imperatriz (mulher de D. Pedro IV), a sua filha, o próprio rei D. Luís, enquanto o Palácio da Ajuda não ficou habitável.
            4. Quanto à classificação, é bom referir que só foram classificadas duas salas do piso intermédio, ou seja, o salão nobre e o quarto da Imperatriz.
            5. Acrescente-se que foram feitos, a partir de 2007, estudos e investigações que permitiram descobrir as telas pintadas das duas dependências classificadas, que, a expensas da Câmara Municipal, se fotografaram em alta resolução, material que se encontra pronto para publicação.
            6. Simultaneamente, um grupo de voluntários coordenados pelo próprio Carlos Beloto procedeu ao levantamento de todo o edifício em autocad.
            7. Embora, de facto, o aspecto geral do interior seja deprimente, a estrutura do imóvel mantém-se em bom estado de conservação, graças à reparação total do telhado, executada nos anos 70 do século passado.
            8. Tem-se consciência de que a documentação que era importante se conseguiu salvar e estão, de facto, a ser equacionadas propostas de programa em colaboração com a Câmara Municipal de Oeiras; contudo, enquanto se mantiver pendente a questão da posse do edifício, eventualmente para o Município, não são muito largas as passadas que é possível dar.
            Por isso, todos os alertas não são de somenos a fim de as entidades competentes se consciencializarem da realidade e venham a adoptar medidas para se preservar e valorizar um património arquitectónico e artístico que enobrece Caxias.

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 31-12-2015:

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Doze badaladas diferentes!

            Há lugares que assumem um halo singular, dificilmente explicável. Na Costa do Estoril – a Costa do Sol d’outrora – o Casino Estoril é um deles.
            Se reflectirmos pausadamente, motivos haverá a apontar; diversos, consoante as pessoas e os seus interesses e hábitos. Contudo, se aos mais novos os concertos de livre acesso levados a cabo por artistas de seu agrado no espaço central (que foi, antes, Jardim de Inverno e depois Du-Arte Garden e, agora, Lounge D – designação mais ajustada ao internacional linguajar), aqueles que ao espelho penteiam as cãs lembrar-se-ão sempre do que significa esse reencontro de amigos no aconchego do Salão Preto e Parta, antes de soarem as doze badaladas do 31 de Dezembro, nos momentos doces que se lhes seguem e no entusiasmo proporcionado pelo artista convidado a saudar a entrada do novo ano.
            Assim será, nesta passagem de 2015 para o bissexto 2016. No voto de que, sendo mais longo, mais breve seja nas mágoas de um quotidiano que ora se deseja venha a ser mais promissor.
            Tripla será a ementa.
            Primeiro, a do jantar (esse lavagante do Atlântico deitado em cama de espargos selvagens!...); a da ceia (seu porquinho ibérico a jazer em pão de caco madeirense…); e a das altas horas, a lembrar idas d’outrora até ao cacau quente da Ribeira!...
            E a Ribeira traz-nos outros tempos, que a azougada Fafá de Belém (de Belém do Pará, entenda-se, brasileirinha de gema!...) ora vem fazer reviver. A presença de Fafá como que nos fará regressar à década de 80, onde amiúde alegrou Carnavais e passagens de ano. Um elo de ligação entre o passado e o presente:
            «São 30 anos de parceria com o Casino Estoril e um caso de amor com Portugal. Agradeço ao Grupo Estoril-Sol ter aberto as portas desta minha segunda casa, assim como o carinho e afecto que me deram ao longo destes anos» – fez questão de confessar.
            Terceiro ‘prato’ da ementa: a actuação de Paulo Gonzo «cá fora», no Lounge. Com um genuíno ambiente festivo, Paulo Gonzo dará um concerto especial, com que deseja celebrar os seus 40 anos de carreira! E, aqui, a entrada é livre!
            Poderia não assinalar o condimento geral destas três ementas, por ser evidente: mas cumpre fazê-lo! É que, este ano, numa altura em que as entidades públicas cascalenses, inteiramente submergidas nas delícias da impessoal (e fácil!) informática, parecem esquecer-se das pessoas – por mais que diversamente o proclamem! – a Administração do Casino fez questão em mostrar, de forma mui cordial, que, na verdade, são mesmo as pessoas que contam e sem a colaboração das pessoas nada se poderia fazer nem 2016 – mesmo com um dia a mais! – se poderia antojar esperançoso, alfobre de vida melhor!
            Saúdem-se, pois, os cantares que o novo e bom ano querem anunciar!
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 28-12-2015:

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Uma bênção para São Brás!

            Noticias de S. Braz adoptou como objectivos, desde o primeiro momento, não apenas fornecer aos leitores informação actualizada sobre o que no concelho se passava, por vezes em jeito de mui saudável crítica construtiva, mas também disponibilizar as suas colunas a quantos nelas quisessem deixar memórias ou o resultado das suas investigações acerca do passado e dos valores são-brasenses.
            Nunca será de mais repetir, por isso, que, para fazer a história de S. Brás de Alportel, a consulta às edições do Noticias de S. Braz se revela indispensável. Nomes como os de Manuel Brito Guerreiro, José do Carmo Correia Martins, Ofir Chagas, João Leal e Vítor Barros, entre outros, mantêm por aqui a chama da memória!
            Essa, uma bênção!
            Outra, porém, foi a vinda para junto de nós do Padre Afonso da Cunha Duarte, que sempre quis fazer acompanhar da investigação histórica a sua actividade pastoral. O que já nos legou e o que ainda dele esperamos é da maior valia e de causar inveja a muitas paróquias do país. Qual há, aí, que possa gabar-se de ter em livro tanto do seu passado?!...
            Brindou-nos recentemente com o V volume dos Monumenta Blasiana, uma recolha minuciosa, fruto de longas horas roubadas ao sono, que vale não só pelo que reúne mas, de modo especial, pelas informações que veicula, fecundo manancial de saberes futuros.
            912 páginas, onde se acolhem 642 documentos: data o 1º de 26 de Fevereiro de 1446 e é o último o discurso do presidente da Câmara aquando da abertura das comemorações do centenário do concelho, a 1 de Junho de 2014. Segue-se-lhes um apêndice com mais 153! Em extratexto (p. 859-899), reprodução de originais. Os índices analítico, antroponímico e toponímico constituem, por seu turno, indispensável e mui oportuno instrumento de consulta.
            Por conseguinte, também nesse aspecto da história como correia de transmissão fomentadora de comunidade, São Brás de Alportel é concelho abençoado!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz nº 229, 20-12-2015, p. 17.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A Sociedade Propaganda de Cascais

            Assinale-se, desde já, que «propaganda» tem, aqui, um sentido bem diferente do substantivo banal: significa «a que propaga», «a que divulga». Não é um substantivo, mas um adjectivo. Por isso se diz Sociedade Propaganda de Cascais e não «Sociedade de Propaganda de Cascais»!
            Feita a explicação, entremos no tema que hoje nos interessa.
            Tem sido, de há uns anos a esta parte, mui louvável iniciativa da direcção da Propaganda aproveitar o postal de Boas Festas para dar conta de algum dos aspectos considerados mais significativos da história desta prestigiosa colectividade, nem sempre – diga-se de passagem – considerada, como cumpriria, pelas entidades concelhias.
            Recorde-se que se consagra como a resistente das sociedades propagandas nascidas oficialmente no começo do século XX com a finalidade de valorizarem o património das terras, tornando-as aliciantes para os forasteiros e mais acolhedoras para os seus moradores. Data a sua criação de… 1934! Nesse aspecto, conta a Propaganda de Cascais bem apreciável rol de iniciativas, hoje, por via de outras vontades, reduzidas, quase, à cerimónia do 10 de Junho (a que a Câmara Municipal e outras entidades, a seu convite, se associam) e, depois de o hipódromo – por força de outras forças – ter passado para a Câmara, à organização, em simultâneo, da Taça de Portugal para a Juventude em hipismo e do Concurso de Saltos Nacional (categoria C).
Aspecto do interior da (ainda) sede da Propaganda
            Instituição de utilidade pública, membro honorário da Ordem do Infante D. Henrique e agraciada com a medalha de mérito municipal, renovou mui recentemente a sua sede, onde guarda um precioso repositório da história cascalense. Estar perto da Capitania do Porto de Cascais e, portanto, no coração da vila, em edifício camarário, levou, porém, a que, por acordo com o Executivo municipal, dali proximamente saísse para a Quinta da Bicuda...

O picadeiro
            Vale, pois, a pena recordar o que, no postal deste ano, se diz a propósito da história do picadeiro, inaugurado no Hipódromo Municipal Manuel Possolo a 7 de Agosto de 1988 com apoio camarário. Embora ainda descoberto, aí se alojou a Escola de Equitação que, além dos alunos, cedo se colocou ao serviço das associações de deficientes do concelho, conhecendo-se, como se sabe, quanto esta ligação cavalo – homem é de extrema importância para a reabilitação.
            A 30 de Novembro de 1997, passou a estar coberto e a dispor de iluminação, o que veio permitir o seu uso por maior número de alunos e de sócios, na altura a rondar as duas centenas de utilizadores, possibilitando também, por outro lado, mais eficaz tratamento para as crianças e jovens deficientes.
Vista do picadeiro, quando estava em actividade
            A assinatura de um protocolo com a Câmara, mercê das circunstâncias e da vontade de se tornar o hipódromo «um dos melhores da Europa» (!), levou a que, a 30 de Abril de 2005, ficasse assinada também a certidão de óbito do picadeiro. Morreu.

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 21-12-2015:

sábado, 19 de dezembro de 2015

Oportuno e bonito o brado da liberdade!

             Ainda que oportuno, constituiu, sem dúvida, arriscado passo o que o maestro Nicolay Lalov ousou dar, quando programou para Concerto de Inverno da sua Orquestra Sinfónica de Cascais a execução integral da IX Sinfonia de Beethoven.
            Arriscado porque, dizem os entendidos, estamos perante uma das sinfonias mais difíceis de executar, a exigir um naipe de músicos muito bem sintonizados e dotados de larga experiência. Oportuno, porque, se há altura em que os ideais da Revolução Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade – precisam de ser clamados em uníssono, esta é uma delas. «Nos tempos de hoje, o seu “Hino da Alegria” tem um significado muito especial, com o apelo à fraternidade e amor entre as pessoas» – escreveu-se no programa.
            No seu 4º andamento, a IX Sinfonia traz-nos ecos das festas subsequentes às gloriosas jornadas, plenas de entusiasmo popular, que a Revolução Francesa proporcionou em Paris. Agora, é de novo Paris que carece de vir para a ribalta, a proclamar liberdade. E recordar-se-á que, em 1989, o maestro Leonard Bernstein quis celebrar o Natal e a queda do Muro de Berlim com essa mesma IX Sinfonia, tomando, então, a liberdade de substituir, no célebre Hino à Alegria, de Friedrich Schiller, a palavra alemã ‘Freude’ (Alegria) por ‘Freiheit’ (Liberdade), na certeza (afirmou) de que Beethoven o aplaudiria também.

A grande inovação
            Estava, há vários dias, esgotado o Auditório Senhora da Boa Nova, para este Concerto de Inverno, o quarto da Orquestra Sinfónica de Cascais, no sábado, 12, à noite. Muitos foram, pois, os que não lograram acesso. Perante a euforia, eu quis saber do musicólogo Doutor Pedrosa Cardoso o que significava, afinal, esta peça no conjunto da obra de Beethoven, a justificar tamanho entusiasmo. Que desafios punha a um maestro e a uma orquestra? Que simbolizava?
            – Beethoven, nascido em 1770 – esclareceu-me –, bebeu na sua juventude, na Universidade de Bona, os ideais da Revolução Francesa e inspirou-se, aqui, mormente no 4º andamento, nas grandes festas ao ar livre. Esse andamento é um verdadeiro hino, uma cantata. O tema do hino da alegria aparece aí desenvolvido com formas musicais muito variadas, um verdadeiro acontecimento! Uma música fortemente apelativa. Contudo, a meu ver, o grande mérito da IX Sinfonia não está tanto nesse andamento final; o seu grande segredo reside no ‘adagio’ do 3º andamento, uma peça longa, que incita à meditação e à transcendência, algo de absolutamente divino… É aqui que reside o grande mérito desta sinfonia.
            Perguntou-me Pedrosa Cardoso qual era o coro e os solistas. Verifiquei que, na (inopinadamente) escassíssima informação constante quer na página do Município quer na da Fundação D. Luís I, esse dado estava omisso.
            ‒ É que aí reside a grande inovação de Beethoven: o coro faz parte integrante dessa sinfonia; essa, a sua verdadeira originalidade. Até aí, nunca tal se tinha pensado: a participação de um coro. A sinfonia era música pura; a partir de agora, podia ser também como que uma «música pragmática», a ilustrar um texto. E terás ocasião de ouvir o baixo cantar, com a sua voz possante, algo como: «Ó amigos, não mais de música passada! Importa cantar uma música nova, mais agradável, mais alegre!». A alegria, a liberdade, a bela filha dos deuses! O baixo começa, o coro entra e a proclamação vai-se repetindo até quase à exaustão: todos os homens serão irmãos, quando as tuas asas, liberdade, voarem por sobre o mundo! Abraçai-vos, milhões!...
            Agradeci, naturalmente, ao Amigo e ao Professor o seu depoimento, que me ensinou a deliciar-me melhor nessa noite memorável.
            Não tivemos no programa esse magnífico texto agora referido – e valia a pena ter-se pensado nisso. Soube-se, de programa nas mãos, entregue à entrada, que ouviríamos o barítono português Armando Possante, a soprano búlgara Milla Mihova (de 28 anos), a alto Daniela Banasová eslovaca (mui esbelta silhueta, no seu longo vestido vermelho, a contrastar com o negro da orquestra e dos coros… e cujas linhas de currículo e foto apresentadas no programa foram integralmente retiradas da Internet) e o tenor americano Douglas Nasrawi. E que, em vez de um coro, teríamos três: o de Câmara do Instituto Gregoriano de Lisboa, o Choral Phydellius e o Choral Spatium Vocale – cujos elementos entraram antes do 4º andamento e preencheram todos os espaços vazios do palco. Contei assim por alto: cerca de 150 coralistas a juntar às seis dezenas de músicos. Um mundão!...
            Explicita-se no programa que «a escolha dos solistas foi feita com a intenção de juntar artistas com idades diferentes e de todos os cantos da Europa». E: «Os vários coros contribuirão igualmente para este momento único».
            O maestro Nikolay Lalov não deixou, pois, os seus créditos por mãos alheias. E quantos tivemos a dita de religiosamente escutar o concerto saímos de lá reconciliados, num preito de gratidão a quem tal maravilha – contra tudo e contra todos – teima valorosamente em nos proporcionar!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 121, 16-12-2015, p. 12.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Escarapão

             Contou-me o amigo Vítor Barros, que mora na Fonte da Murta:
            - Hoje fui almoçar lá acima, junto àquela ruína, à casa da minha mãe. Muito, muito vento por lá, de maneira que ela, quando eu cheguei, suspirou:
            - Hoje, tá cá um escarapão!…
            Claro, também ele foi ao dicionário.
            - Aí, a palavra tem outro sentido… Terá a ver com as escarpas junto ao mar? Lembro-me de Sagres, pois quando lá vou o vento açoita sempre aquelas enormes encostas de rochas… Desde pequeno que a oiço ali na boca da minha mãe e avós. Já lhe perguntei o que era um escarapão e diz-me sempre que é quando faz muito vento. «Então não vês? É como está hoje!».
            O dicionário diz de escarapão que se trata da designação dada a uma «pessoa ríspida, de maus modos» e, curiosamente, também é escarapão uma «cobra não venenosa»! E chama-se escarapela a «briga em que os contendores se arranham ou arrepelam»…
            Um vento cortante pode ser, pois, uma escarapela em ponto grande, porque, se não nos acautelamos, bem nos agatanha orelhas e nariz, o marafado!...

                                                           José d’Encarnação

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 203, Dezembro de 2015, p. 10.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

E este é pró gatinho!

            Sempre me habituei a comer peixe. Meu pai fora arrieiro antes de ir para a tropa e eu lembro-me bem das conversas que travava com a Alice peixeira ou a Carolina, quando vinham, depois da volta, à hora do almoço, de canastra quase vazia, tentar vender-lhe o resto das sardinhas ou dos carapaus. A disputa era: «Hum! Tu nem um cento de carapau tens aí!...». «Qual não tenho!», replicavam. «Ai não tens, não! Três quarteirõezinhos e já é muito!». Acabavam por contar e meu pai ganhava quase sempre e lá ficava com a teca.
            Quando não era essa cena, minha mãe comprava uma dúzia e, invariavelmente, a Sara punha 13 no alguidarito de barro, acrescentando: «Este é pró gatinho!».
O Sebastião
            Tudo isto me veio à mente agora, depois de, no curto espaço de meses, termos perdido três dos nossos gatos: o Sebastião, de pneumonia galopante, em três dias; o Peto e o Bebé, de insuficiência renal.
            O veterinário, aqui há anos, dizia-nos:
            ‒ Eu cá não tenho problemas! Se houver fome, amanho-me bem com a comida dos gatos e dos cães. Tem qualidade e os ingredientes precisos para uma vida saudável.
            Por isso e por via da publicidade, os nossos gatos passaram a comer ração. Quer biscoitos quer alimentos húmidos das latas. E lá íamos andando, até que, na clínica, começámos a ver que já começavam a existir doenças a mais. Então, insuficiência renal, a obrigar a comprimidinho diário em jeito de hemodiálise, estava a ser tema de conversa constante entre os donos e donas de cãezinhos e gatos que por lá víamos.
            E quando – com a mágoa que se adivinha – tivemos de nos despedir do Bebé, a veterinária segredou-nos:
            – Estamos a repensar tudo! O melhor, achamos nós agora, é ir entremeando a nossa comida, mesmo os restos (como se fazia no tempo dos nossos pais), com os ‘acepipes’ expressamente preparados para eles. Evitam-se, de certeza, esses casos – que estamos cheios de insuficiências renais…
            Gostei deste retorno ao que nossos pais nos haviam ensinado. E não pude deixar de pensar numa mensagem que há dias recebi, a propósito dos alimentos, a verdade e a mentira. Nela se diz, por exemplo, a propósito do peixe azul (atum, sardinha, cavala…):
             Antes: têm elevado teor de gorduras, devem evitar-se.
            Agora: são ricos em ómega-3, uma gordura que mantém a integridade das células do organismo, há que comê-los!
            Claro! Guardei religiosamente esta mensagem do antes e do agora! Até por mor dos meus gatos!
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado no quinzenário Renascimento (Mangualde), nº 675, 15-12-2015, p. 20.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A Câmara de Oeiras apoia a Arqueologia

              Foi pequena a sala de actos do Palácio do Marquês de Pombal para receber, na tarde de sexta-feira, 11, quantos – nomeadamente arqueólogos – quiseram assistir à apresentação do volume 21 (2014) dos Estudos Arqueológicos de Oeiras, revista editada pela Câmara Municipal.
            Na Sala dos Reis ia ser inaugurada, de seguida, a exposição documental intitulada «Arqueologia Subaquática do Concelho de Oeiras» e, por isso, sentaram-se à mesa da sessão, além do Presidente do município, Dr. Paulo Vistas: o Director-Geral do Património Cultural, arquitecto João Carlos Santos; o apresentador do volume, Professor Victor S. Gonçalves, responsável pela UNIARCH, centro de investigação da Faculdade de Letras de Lisboa, do qual vários membros viram neste número publicados os seus textos; o director do CHAM – Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar (Universidade Nova de Lisboa); e o Professor João Luís Cardoso, editor científico da revista, que, sozinho ou em parceria, assina 11 dos 19 textos do volume.
            Na sessão teve-se ensejo de encarecer o papel preponderante – e nunca regateado – que o município de Oeiras tem desempenhado no estudo e na constante divulgação da Arqueologia local (e não só!), o que lhe confere lugar ímpar no contexto nacional.
            A quase totalidade dos artigos publicados prende-se com a área da Pré-história, sendo excepção apenas os «novos dados para o estudo de Chões de Alpompé – Santarém», onde se sugere que o sítio poderá ter «permanecido ocupado, pelo menos em alguns dos seus sectores, até ao reinado de Augusto», ou seja, mesmo depois do conflito sertoriano.
            De louvar a publicação (p. 429-460) de parte da tese de licenciatura de António Cavaleiro Paixão, defendida em 1970 na Faculdade de Letras de Lisboa, dedicada à necrópole do Olival do Senhor dos Mártires (Alcácer do Sal), onde este arqueólogo, falecido em 2014, levara a cabo campanhas de escavação, cujos resultados nunca haviam sido dados à estampa. Iniciativa mui meritória, pois.
            Evocam-se as figuras singulares de Abel Viana, o arqueólogo que trouxe Beja para as primeiras páginas da Arqueologia nacional, e Virgínia Rau, na sua – quiçá desconhecida – faceta de docente de Pré-história e, até, com artigos publicados nessa área do saber, quando o habitual é vermo-la como historiadora da Idade Média portuguesa.

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em archport: Mensagem Nº 20853, Mon, 14 Dec 2015 15:40:43
Fotos gentilmente cedidas por Guilherme Cardoso.
João Luís Cardoso fala da actividade camarária no âmbito da Arqueologia
 
Visita guiada à exposição sobre Arqueologia Subaquática

Um dos painéis a documentar a actividade arqueológica subaquática -
a legal, dentro das regras, e... a caça ao tesouro, clandestina!

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

XXIX Salão de Outono na Galeria de Arte do Casino Estoril

            Inaugurou-se ao final da tarde do passado dia 21, na Galeria de Arte do Casino Estoril, o XXIX Salão de Outono, desta feita em homenagem ao pintor António Joaquim, que esteve presente. Tendo celebrado, a 1 de Junho, o seu 90º aniversário, o homenageado promete não parar e apresenta nesta mostra uma dezena de aguarelas recentes, a que deu o nome de “trabalhos dos 90”, série que será aumentada a pensar numa exposição a realizar neste espaço, em meados do próximo ano.
O pintor António Joaquim com o director da galeria, Nuno Lima de Carvalho
Uma das aguarelas de António Joaquim
            Não é agora o Salão de Outono um palco a que concorressem artistas na esperança de que as suas obras fossem seleccionadas por um júri e, até, quiçá galardoadas. A maioria dos 34 artistas representados – e quase todos estiveram na inauguração – são presença habitual na galeria, onde muitos têm feito exposições e onde, aliás, alguns até iniciaram a sua carreira.
            O que encanta, pois, numa exposição colectiva de pintura e de escultura como esta é a rica diversidade de estilos, ainda que alguma das obras nos pareça já ali a termos visto; mas é sempre bom rever o apurado geometrismo de um Nadir Afonso (que recentemente nos deixou), as suaves aguarelas de Paulo Ossião, os estranhos óleos de Albino Moura, os dourados acrílicos de Diogo Navarro, os ecos em Nélio Saltão da sua exposição no Centro Cultural de Cascais (a geometria dos apetrechos de pesca…), o abstracto colorido de Edgardo Xavier (também ele um ‘homem da casa’), o africano exotismo de Neves e Sousa num hino à cor…
            Percorre-se a mostra uma e outra vez e há sempre novidades a assinalar, pois são 67 os trabalhos expostos. O surrealismo de Mário Vitória, de cavalos alados, barcos e bicicletas; a estilizada elegância roxa de «Vaidade», um óleo sobre tela, da autoria de Lima Carvalho; as aguarelas de João Feijó, a recordarem-nos as algas de Stella de Brito; as sugestivas esculturas de Abílio Febra em pedra vermelha de Negrais e mármore de Estremoz / Vila Viçosa; os azuis do cabo-verdiano David Levy Lima; a originalidade cativante das duas telas de Branislav Mihajlovic, o sérvio de Belgrado que reside em Cascais desde 1992...
            Realce-se também a excelência do catálogo (coordenado por Pedro Lima de Carvalho), que, além da abertura (da autoria do director da galeria, Nuno Lima de Carvalho) e de uma biografia de António Joaquim, reproduz uma obra de cada um dos 34 artistas presentes, dos quais é referido também sumário currículo.
Alguns dos artistas que marcaram presença na inauguração
            Aquando da concorrida inauguração, usaram da palavra o director da galeria e Edgardo Xavier (na sua qualidade de membro da Associação Internacional de Críticos de Arte), para expressarem todo o apreço a António Joaquim, à sua obra e ao seu querer.
            A exposição estará patente todos os dias, das 15 às 24 horas, excepto no dia 24 de Dezembro, até 12 de Janeiro de 2016.
            Entrada livre (para maiores de 18 anos).

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 02-12-2015:

Estoril-Sol premeia literatura

            Decorreu na Galeria de Arte do Casino Estoril, ao final da tarde do passado dia 26 de Novembro, a cerimónia de entrega, a Bruno Vieira do Amaral, do Prémio Literário Fernando Namora, instituído pela Sociedade Estoril-Sol e referente a 2013, com que fora agraciado por um júri presidido por Guilherme d’Oliveira Martins, na sua qualidade de Presidente do Centro Nacional de Cultura.
            Presidiu à sessão o próprio Guilherme d’Oliveira Martins, que estava ladeado por Dinis de Almeida (da Estoril-Sol), por Carlos Carreiras (presidente do município), pelo premiado e por Mário Assis Ferreira, administrador da Estoril-Sol.
            Foi a 17ª edição deste concurso, que visa, homenageando a memória de Fernando Namora (a filha, Margarida Namora, esteve presente na sessão), galardoar uma obra de reconhecido mérito.
            Digno desse prémio foi, pois, nesta edição o romance As Primeiras Coisas, onde, nas palavras do presidente do júri, “Bruno Vieira do Amaral revela uma grande segurança narrativa e um excelente domínio da língua portuguesa, escolhendo uma personagem colectiva, o Bairro Amélia, de onde sai Bruno Eugénio» e onde o autor nasceu e cresceu. Acrescentou, a justificar a decisão tomada, que esse bairro, sito na margem sul do Tejo, se assume como personagem colectiva, dado que, sendo, muito embora, «um território delimitado, construído à imagem dos bairros populares que, no início e em meados dos anos 80, foram nascendo mais ou menos clandestinamente à sombra de aglomerados industriais», «representa a sociedade humana na sua diversidade e na sua complexidade, sendo um espaço de liberdade e de reconhecimento».
            Trata-se da primeira obra de ficção de Vieira do Amaral, que, formado em História Moderna e Contemporânea, tem desenvolvido actividade como crítico literário, tradutor e editor da revista LER, sendo de destacar a sua obra ensaística Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa (Lisboa, Editora Guerra e Paz, 2013).
            Mário Assis Ferreira começou por assinalar a «excelência selectiva do júri», uma vez que, por não apresentarem qualidade, não se galardoara nenhuma das obras candidatas ao Prémio Revelação Agustina Bessa Luís. «A promoção da cultura», disse, «é um desígnio que acompanha a nossa actividade. A aposta na Cultura, na Arte e no Espectáculo» assume-se como elemento distintivo da Estoril-Sol. Por isso, ora se institui também um novo prémio, consagrado à Cidadania Cultural, com periodicidade anual, no valor de 40 mil euros, em homenagem à memória de Vasco Graça Moura, que presidiu aos júris destes prémios literários da Estoril-Sol. «Temos um compromisso com a Literatura e com a Arte»., sublinhou. É, por exemplo, a revista Egoísta «um milagre de sobrevivência». Escreveu Thomas Mann, perorou, que a Cultura se respira; continuamos a querê-la respirar aqui, com «a Cultura a servir-nos de oxigénio»!
            Após a formalidade dos agradecimentos protocolares, Vieira do Amaral declarou querer fazer «um discurso sobre a decência». Evocando De hominis dignitate, o famoso discurso pronunciado, em 1486, por Pico della Mirandola, também chamado «Manifesto da Renascença», e citando, mais adiante, Camus, enveredou, de facto, por um discurso erudito, sempre com medo de que os óculos lhe caíssem, uma espécie também de manifesto, para que o Homem não degenere em besta, saudando – se bem compreendi – aqueles que, em tempo de peste, acolhem a decência.
            A escultura a simbolizar o prémio foi entregue pelo presidente do júri e o sobrescrito, com um cheque de 15 000 euros, pelo Dr. Assis Ferreira. Estiveram presentes cerca de meia centena de personalidades, ligadas, de modo especial, à Cultura.
            Seguiu-se, no Restaurante Mandarim, um jantar em honra do premiado.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 02-12-2015:

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Da contemplação e da Natureza

            E dei comigo a pensar: será este o mesmo fuinho que por aqui passou o ano passado e no ano anterior? Vem sozinho, sem pais nem cônjuge nem outra companhia. Será o mesmo?
            Saltita de ramo em ramo. Da buganvília para a romãzeira. Da romãzeira para o chão. Depois, para a buganvília de novo. Debica um ramo aqui, limpa o bico acolá. Sacode as asas, numa alegria de viver, e despede-se num voo despreocupado. Tenho-o visto, à hora do almoço, nos dias de sol deste Outono.
            Fico sempre com a intenção de saber mais sobre fuinhos. Quando era moço, cheguei a apanhar alguns que, descuidadamente, se deixavam seduzir pela formiga d’asa que eu punha nas ratoeiras. Uma plumagem verdinha amarelada e macia – que era uma pena tirar!...
Fotografias de felosa-musical disponíveis na Internet,
com identificação dos respectivos autores
            Lembrei-me de José Manuel Durão, que fez o livro Aves da Ribeira dos Mochos (Cascais, Julho de 2010). Passou horas a fio, anos fora, a observar a passarada do Rio dos Mochos. Estudou-lhes os hábitos. Ouvia-lhes o cantar, registou em fotos as imagens. Lá vi o fuinho, não o meu, mas decerto um parente próximo, que não moro assim tão longe do rio. Afinal, chama-se felosa-musical, «phylloscopus trochilus», de seu nome científico, e é de arribação, como eu suspeitara, porque só o vejo aqui pelo Outono, como as felosas brancas e os piscos. Está de passagem para África.

Os parques
            E deste parque urbano da Ribeira dos Mochos parti para o do Marechal Carmona.
            Gostava mesmo que houvesse diariamente a tal «hora feliz» para o estacionamento gratuito. Um serviço público que até poderia reconciliar o munícipe com a generalizada imagem desagradável que ele tem da Cascais Próxima, avarenta proprietária do espaço público.
            E perguntava-me o Tiago, que se desloca em cadeira de rodas, porque não há lugar reservado a deficientes mais perto da entrada deste parque.
            Passei de novo, há dias, pelas Penhas do Marmeleiro – o coração sangrou.

A contemplação
            Tal não aconteceu, porém, no Convento dos Capuchos e seu parque envolvente, em plena Serra de Sintra.
            A contemplação, o silêncio, a comunhão com a Natureza e o seu Criador. A meditar como seria o quotidiano daqueles monges, nas suas oito minúsculas celas individuais, forradas a cortiça, encafuadas pelas penedias.
            Fundado por D. Álvaro de Castro, em 1560, o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra albergou frades capuchos até 1834, ano em que foram extintas as ordens religiosas em Portugal.
            Nele havia de tudo para a comunidade: a igreja; a cozinha; o refeitório, com laje de pedra para mesa oferecida pelo cardeal-rei D. Henrique); a «casa das águas», com instalações sanitárias, cisterna em forma de casa, tina e latrinas; a sala do capítulo, para as reuniões; as enfermarias, dotadas de celas para os doentes, botica e braseiro. A cela do noviço destinava-se ao recém-chegado que, pedida a admissão na comunidade, procurava estudar as regras e verificar se a elas se ajustava a sua vocação. A da penitência, obscura, acolhia quem, por qualquer motivo, necessitasse de maior recolhimento.
            Parques de Sintra – Monte da Lua, S. A., que tem a seu cargo a salvaguarda do monumento e a gestão do espaço, não deixa de sugerir ao visitante um “percurso botânico”, para identificar espécies da flora derredor e para ver a Casa do Frei Honório, que, reza a lenda, um dos frades preferira à sua cela; a horta antiga ou a Capela do Senhor Crucificado, onde se dá largas ao silêncio e à contemplação!...
            Sim, que ali viveu, pois, uma comunidade com as suas regras de oração e de trabalho. Homens como nós, é certo, mas que haviam descoberto outros encantos – no pipilar das aves, no cicio da aragem pelas franças das árvores e mesmo no fragor da trovoada a ecoar pelos fraguedos…
            Convento dos Capuchos, em Sintra: uma visita indispensável a fazer de vez em quando, pois pérolas destas hão de maravilhar-nos.
            Tal como na muda observação do fuinho que, pontualmente, ao final da manhã, vem aqui saltitar na minha romãzeira…
                                                         José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 119, 02-12-2015, p. 6.
 
Convento dos Capuchos - Pátio interior
 
Convento dos Capuchos - Capela
 
Convento dos Capuchos - Cozinha
 
Convento dos Capuchos - Refeitório com a laje oferecida pelo Cardeal-rei
 
Convento dos Capuchos - Casa das Águas
 
Convento dos Capuchos - herbolário

 


 

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Não queres tomar nada?

            Fui visitar um amigo e fiquei à porta, porque – disse-lhe – não lhe queria roubar tempo. E ali ficámos de pé, os dois, largos minutos… Quando me dispunha a ir-me embora, perguntou-me:
            Não queres tomar nada?
            Respondi-lhe que não, agradeci e despedi-me.
            A caminho de casa, dei comigo a pensar com os meus botões:
            Correu tudo mal!
            E correra, de facto.
            Primeiro, não lhe devia ter dito que não valia a pena entrar. Poderá ter ficado com a impressão de que até nem me apetecia muito estar com ele ou que a sua casa não teria o aconchego que eu merecia ou que não tinha tempo a perder. Asneira! Nunca se perde tempo com um amigo! E lá estava o Michel Quoist a atazanar-me a cabeça (abençoado!):
            «Não digas a quem te visite: “Só posso receber-te por um instante, não te mando sentar… etc…”, enquanto o recebes um quarto de hora ocupando-te de outra coisa. Manda-o sentar e atende-o dez minutos, calmamente, dando-lhe a impressão que lhe dedicas todo o teu dia».
            Depois, aquele «não queres?» veio, sem dúvida, na sequência da minha pressa. Claro, se ele já estava a dizer que eu não queria, é porque eu não queria mesmo tomar nada!... Um «não» que nunca se deveria usar. Já se pensou o que seria a senhora, no alfa, passar e, em vez de perguntar «Querem tomar alguma coisa?», proclamar «Não querem tomar nada?»?!... Desastroso seria o efeito e o despedimento… iminente! E para o empregado do café a frase tem de ser sempre: «O que é que vai tomar?».
            É incrível como, sem o querermos, ou melhor, sem o pensarmos, o modo como nos expressamos nos trai. E o nosso interlocutor disso se apercebe de imediato. Têm as palavras efeitos mágicos, dir-se-ia. E, por isso, é que há pessoas simpáticas e outras que nem por isso; há as disponíveis e as que parecem estar sempre vergadas sob o peso do mundo.
            Está provado, diz-se, que a audição é o último sentido que se perde. Tenho ido visitar um amigo hospitalizado e em estado quase vegetativo, terminal: não vê, não fala, não reage, não se mexe… Vou segredando-lhe ao ouvido palavras de ânimo, a lembrar quanto foi agradável estarmos com ele tantas vezes. Se me ouvir, eu acho que ele vai gostar. E eu sinto-me bem comigo!

                                                                   José d’Encarnação

Publicado no quinzenário Renascimento (Mangualde), nº 674, 01-12-2015, p. 11.