Faleceu
no passado dia 14, vítima de doença súbita e fulminante, o Dr. Gonçalo dos Reis
Torgal. Faria 85 anos daqui a um mês.
Gonçalo
dos Reis Torgal é, seguramente, um dos vultos que, em meu entender, não pode
esquecer-se, paladino como foi na defesa dos valores por que todos nos devemos
pautar, nomeadamente os éticos e os patrimoniais.
Conheci-o
em Mafra, em Abril de 1988, por ocasião do I
Congresso de Turismo e Gastronomia da Região de Mafra. Fora convidado para fazer uma comunicação, porque era já,
na altura, um dos mais conceituados jornalistas de gastronomia, tema que
abordava com saber, entusiasmo e mediante uma escrita sempre muito burilada e
atraente. E nesse domínio se manteve até à aposentação, porque, mais
recentemente, as crónicas que escrevia para o Diário do Minho eram,
sobretudo, de crítica ao «estado a que isto chegou», não se poupando a verberar
o que se lhe afigurava desprovido dos princípios e dos valores por que sempre
se pautara e pelos quais, na sua óptica, a vida pública se deveria pautar.
Guardo religiosamente esses escritos, que fazia o favor de pontualmente me
enviar, sempre com uma notinha do género «vamos lá ver se publicam»…
Publicavam.
Foi,
pois, a nossa – embora à distância, ele na sua Guimarães e eu por Cascais, com
Coimbra sempre pelo meio para ambos… – uma Amizade duradoura, feita de
cumplicidades.
E
não posso deixar de recordar o almoço de 17 de Abril desse ano de 1988.
Acabáramos de visitar a Tapada de Mafra e fomos obsequiados com pratos de caça:
javali e veado, se não erro, porque essas eram as espécies da Tapada e um dos
objectivos do Congresso fora, precisamente, o de dar a conhecer as
potencialidades que, nesse domínio da cinegética, a Tapada podia proporcionar.
E recordo perfeitamente que a todos os pratos o Gonçalo fazia os seus
comentários de apreciação, sempre acompanhados de um ar jocoso.
Era,
actualmente, o Mordomo-mor da Confraria Panela ao Lume, de Guimarães. Foi,
aliás, no âmbito das iniciativas dessa confraria que publicou, em 1995, o livro
Roteiro Gastronómico. E certamente se recordarão também as suas duas
obras de gastronomia mais recentes:
–
As Tripas nunca se Comem Frias,
apresentada, a 2 de Julho de 2015, na Associação Recreativa Aurora da
Liberdade, em Matosinhos, cuja venda revertia a favor da Associação Social
«Lara Santa Cruz», de Matosinhos. Seguiu-se, naturalmente, um jantar de tripas,
em Leça da Palmeira.
–
Coimbra à Mesa (Tu é que foste à Praça, menino?), apresentado pela Doutora Maria José Azevedo Santos (também ela uma
especialista em história da alimentação), na Casa da Cultura de Coimbra,
a 10 de Dezembro último.
Frequentou,
com êxito, o Mestrado em "Alimentação. Fontes. Cultura e Sociedade",
recentemente criado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (um
ancião que resolveu voltar aos bancos da escola para aprender e, claro, ensinar
os demais…). Defendeu brilhantemente a dissertação, sobre temas camilianos, ou
seja, a gastronomia na obra deste escritor. Não admira, por isso, que tenha
sido uma das docentes do curso, a Doutora Maria Helena da Cruz Coelho a assinar
o prefácio de
Coimbra à Mesa, onde
escreve, a dado passo:
«
Coimbra à Mesa conduz-nos em errante
boémia e viva saudade por ruelas e becos de restaurantes, adegas, tabernas e
repúblicas, por caminhos ébrios de alimentos e bebidas partilhadas alegremente
à mesa, por memórias e sentimentos de animados convívios, amistosas conversas e
pitorescas histórias de gente que desfruta os prazeres da mesa...».
Era
assim o Gonçalo!
Sócio
nº 7 da Associação Académica de Coimbra e seu actual vice-presidente, ‘torcia’
pela Briosa em cada semana e em cada jogo!
Sobre
a Lusa Atenas escreveu, um dia:
«Saudoso,
ontem como hoje, deixei Coimbra e a Universidade. Meio século lá vai. Levei comigo
a marca da cidade e da Escola que me acolheu e me habilitou para Vida, quer a
objective no sentido profissional, quer no viver do dia a dia. Tenho para mim
que o ser e estar que me marca e de que me orgulho, o enraízo no seio familiar,
mas o fortaleci na Universidade. A ela estou grato. Saudoso regresso amiúde no
quando posso, forçando o quando não posso. Coimbra é a minha Terra a
Universidade a minha casa».
Nas
suas crónicas para o Diário do Minho,
pegava sempre no título de um livro ou de um conto e ia por aí adiante,
filosofando, reflectindo sobre o dia-a-dia, designadamente da política, cujas
falsidades não deixava passar em branco.
O
último texto que me enviou, destinado a ser publicado pelo Natal, tinha por
título «Arroz do Céu» e começa assim:
«Como
sabem, Arroz do Céu é o inesquecível
conto com que abre o livro de José Rodrigues Miguéis, Arroz do Céu e Outros Contos.
O
conto, de forma salutarmente amarga, confronta o nosso bem-estar e sobretudo o
sobranceiro viver dos ricos face ao sobreviver, quase só existir, dos
deserdados da sorte de quem Deus parece ter-se esquecido, mas de quem por vezes
se lembra, dando-nos, por exemplo, essa milagrosa inspiração do Espírito Santo
que nos trouxe o Papa Francisco».
Prossegue,
desolado por esse amor ao próximo ter andado tão arredio da nossa vida pública
e da nossa governação… Por isso, preferiu brindar-nos com um poema dedicado ao
Natal. E termina assim:
«Com
espírito de NATAL, pedindo que neste tempo, que quase nem Dezembro é, porque
não faz frio, haja um arroz que caia do
céu, em que para Vós tal peço, a que junto desejos de mais venturoso 2016.
Que Deus me ouça!».
Recordar-te-emos
sempre, Gonçalo! E que ora já descanses em paz – que bem mereces, pelos enormes
exemplos de cidadania que nos deste!
José
d’Encarnação