quarta-feira, 31 de maio de 2017

Os olhos ternos da felicidade

            Desta vez, preciso de pôr a data e contar do ambiente, para que se não pense que inventei, como aqueles escritores que desenrolam, com minuciosos pormenores, toda uma trama mirabolante que hauriram, garantem, em pretenso e secular manuscrito amarelecido, de muitas páginas, perdidamente encontrado em gaveta de segredo e decifrado ao longo de inúmeras noitadas...
            Não. Não vou por aí.
            Foi mesmo no começo da tarde de 20 de Maio do ano da graça de dois mil e dezassete, no comboio das 13.24 para o Cais do Sodré, em carruagem tranquila de quem já almoçou ou tem o estômago a dar horas e prefere, por isso, manter-se em jeito de letargia vital.
            Exacto. Ferrenho defensor das viagens em comboio, esse ambiente sempre foi para mim, há décadas, fonte de inspiração.
            Admiravam-se os meus estudantes, quando eu lhes dizia que escrevia no comboio os meus artigos ou aí preparava as lições ou, simplesmente, me encontrava comigo mesmo.
            E, por sinal, por uma daquelas inexplicáveis circunstâncias que a um suposto «acaso» se atribuem, caiu-me sob os olhos numa das estantes cá de casa o livro de David Kundtz, «Parar» (Lisboa, 2004), onde explica, a dado passo, que aproveita um intervalo, ainda que curto, para andar, «embora algumas vezes», confessa, «vá até a um café e, na companhia de uma chávena de chá, me ponha a observar as pessoas» (p. 86).
            Gosto de observar as pessoas. Ainda no dia anterior, estava com tempo e fui a pé do Cais do Sodré até ao Espaço Europeu, no Largo Jean Monnet, e o que eu aprendi acerca do povo que ora Lisboa tem!...
            Pois, nessa tarde de 20 de Maio, no curto trajecto entre Cascais e Carcavelos, onde eles saíram, senti a necessidade obsessiva de escrever (ando sempre com um bloquinho no bolso e lápis…) o que à minha frente se passava. E eu que, amiúde (confesso o pecado), não acredito na felicidade, dei comigo a pensar: ela está ali! Pode ser efémera, mas eu sinto-a e bem a senti, aliás, no olhar que, a certa altura, serenamente, se cruzou e fixou no meu.
            E até me deu vontade de criticar Saint-Exupéry: num dos planetas que o Principezinho visitou, ele deveria ter visto o que eu agora vi. Foi falha tua, Antoine, embora eu bem te compreenda, porque a «flor» que deixaste na estrela tal não te proporcionou. E foi pena! Podias ter posto um planetazinho mais, dedicado à Felicidade!
            Transcrevo, pois, sem correcções de agora o que então saltou ao correr do lápis:
            Deliciou-me ver aquele casal de namorados, de sorriso sereno, olhares serenos trocados, plenos da felicidade imensa de estarem juntos nesta viagem de comboio. Ele, cabelo encaracolado, barba e bigode e brinco de azeviche na orelha direita; ela, de olho azul regado pela serenidade dum céu sem nuvens, cabelo apanhado em carrapito; na orelha direita, uma argolinha e uma espiral dourada pendente; na esquerda, um «botão» negro apenas. Encostou agora a cabeça no ombro do seu amado, no fingimento dum adormecer, deliciada com as carícias que ele lhe não poupou.
            Saíram em Carcavelos; mas deram a impressão de não saber exactamente para onde ir, porque olharam para um lado e para o outro e decidiram sentar-se num banco, para mais calmamente resolverem que fazer.
            Haviam partilhado um pacotinho de bombons de chocolate. Levavam mochilas às costas. Estrangeiros seriam, em viagem de amor.
            Se a Felicidade tivesse rosto era o daqueles dois jovens o que eu imaginaria.
            Dulcificaram-me a tarde soalheira deste sábado, porque a maior parte dos outros rostos que iam na carruagem carregavam um ar tão sorumbático… Dir-se-ia que concentravam em si todas as preocupações do mundo inteiro. No mais completo contraste com os dos dois jovens que em Carcavelos deixei.
                                                                      José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 189, 31-05-2017, p. 6.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

O prémio da Associação In Loco

             Cumpre congratularmo-nos com o prémio «Dryland Champions 2016» atribuído, pelo segundo ano consecutivo, pelas Nações Unidas, à Associação In Loco, criada, há 28 anos, em S. Brás de Alportel.
            Assim se galardoa o esforço feito, em conjunto com a população e outras entidades, no combate à desertificação, um dos problemas mais graves que todos estamos a sentir, não apenas no Algarve mas em todo o País e, por mais que os políticos, nas campanhas eleitorais, prometam mundos e fundos no sentido de o solucionar, quando eleitos, depressa as promessas são esquecidas. A In Loco, porém, sem grande alarde, lá vai fazendo o seu trabalho de sapa, com mui evidentes êxitos, inclusive aliciando para o seu âmbito as camadas mais jovens da população.
            Tem sido preocupação da In Loco a promoção de hortas urbanas em terrenos devolutos, onde se inicia a prática de uma agricultura ‘biológica’, ou seja, sem recurso a produtos químicos, que fazem crescer depressa, mas, no final, não logram sugar da terra os ingredientes que mais os deveriam enriquecer do ponto de vista alimentar.
            Outra das actividades que muito apraz registar é a organização de mercados locais, onde, felizmente, a população começa já a acorrer, porque compreende a diferença de sabor entre uma folha de alface das grandes superfícies e a que resulta de uma horticultura «sem químicos», à maneira tradicional.
            Assim, com o exemplo, se criam novos hábitos, se mudam mentalidades, se começa a olhar com outros olhos para esta nesga de terreno sedenta de produzir e que os proprietários deitaram ao abandono…
            Caminhava, outro dia, junto ao leito de uma ribeira. Uma senhora aí dos seus 60 anos ajeitava a terra junto aos loureiros, que lhe bordejavam o terreno, pelo aspecto, lavrado há já bastante tempo. Meti conversa:
            ‒ Preparando a sementeira, não, vizinha?
            ‒ Ná! Hoje já não se assemeia nada, senhor!
            No 1º de Maio, a caldeirada foi, como de costume, no barracão de uma horta. Havia umas alfaces, cebolo, alhos, um canteiro de coentros…
            ‒ Então e batatas, amigo Manel, está no tempo delas!
            ‒ Dão muito trabalho! Fica muito mais barato ir comprá-las à mercearia ali, sem estar com preocupação de regar, de pôr produto contra a moléstia… Deixei-me disso!
            A In Loco não deixa. E, por isso, está de parabéns!

                                                               José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 246, 20-05-2017, p. 11.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Envelhecer em Portugal

            A situação dos idosos em Portugal não diferirá muito do que se estará a passar nos demais países europeus, por duas razões: o aumento da esperança de vida e a diminuição do núcleo familiar.
            Quanto ao aumento da esperança de vida, ele é evidente, com todas as consequências que traz.
            Exemplifico.
            Num dos nossos lares da chamada Terceira Idade, gerido pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais, a média de idade dos utentes era, na década de 90, sensivelmente, de 65/70 anos. Isto permitia, por exemplo, programar actividades como visitas de estudo, organizar salas de trabalhos manuais, preparar festas em que os próprios utentes se incorporavam e dançavam o folclore tradicional. Eu próprio lá fui fazer conferências sobre temas de história e era compreendido e apreciado. Hoje, a média de idade anda pelos 85/90 anos; ou seja, nenhuma dessas actividades já é realizável e, por outro lado, se, naquela altura, os utentes gozavam de bastante autonomia no vestir-se, no lavar-se, inclusive na toma de medicamentos, na actualidade, são necessárias, amiúde, duas funcionárias para ajudar cada um a levantar-se, a vestir-se, a tomar banho, a deslocar-se para o salão principal (porque se procura evitar que o utente passe o seu dia no quarto).
            Por isso, esse aumento de esperança de vida veio criar uma nova realidade nas instituições que lidam com a população sénior: se, até então, os serviços tinham uma componente maioritariamente social e lúdica, hoje têm uma componente essencialmente ligada aos cuidados de saúde (quer médicos quer de enfermagem quer de fisioterapia ou reabilitação). Inerente a esta nova realidade, novas solicitações e novos desafios, bem como novos custos, sufocam as famílias e as instituições que não estavam preparadas para o que fazer.
            A diminuição do núcleo familiar, consubstanciada na diminuição do número de filhos e, consequentemente, de netos, acrescida da necessidade de todos terem o seu emprego (sair de manhã e entrar em casa à noite) faz com que as visitas aos idosos sejam cada vez mais raras e não se poder contar, por exemplo, com o familiar que dantes vinha ajudar o utente a comer. Dir-se-á que o voluntariado pode suprir essa falha. Poderia – se houvesse voluntários com o espírito de dedicação que essas tarefas implicam, além de que nem sempre isso implica, para os mais novos, ‘benefício’ curricular...
            Dir-se-á, ainda, que o tecido social da população sofreu profundas alterações: se, há 25 anos, a maioria dos idosos não sabia ler nem escrever e tinha uma escolaridade baixa com profissões pouco diferenciadas, onde abundavam as pensões sociais ou rurais, hoje, quem recorre aos serviços das instituições sociais e/ou privadas não só teve uma vida activa e contributiva diferenciada (diversos subsistemas), mas aparecem, com frequência, idosos com cursos superiores; e também os filhos, na sua grande maioria, têm graus de escolaridade superior, o que vem a conferir um grau de conhecimento/exigência maior aos serviços que as instituições prestam.
            Foi uma excelente medida criar-se um Fundo de Desemprego, isto é, a possibilidade de um desempregado poder usufruir de uma compensação monetária mensal; foi igualmente benéfico estabelecer montantes de reformas que permitam ao idoso saudável viver com alguma dignidade. Há, porém, o reverso da medalha: a necessidade de mudar as mentalidades – tarefa da maior dificuldade – no sentido de levar as pessoas a dedicarem-se ao voluntariado ou, simplesmente, a prontificarem-se a tomar conta dos «seus» velhos, isto é, os da sua família!
            A tarefa primordial que se nos põe, por conseguinte, pode consubstanciar-se fundamentalmente na necessidade de lutar por uma mudança de mentalidade: o que é envelhecer? Como preparar o envelhecimento? Ouve-se, com muita frequência, afirmar: «Quando eu me reformar, vou fazer uma série de coisas que, neste momento, com a pressa com que vivemos, não me é possível concretizar». Sucede, porém, que, ao chegar a reforma, dá a impressão de que todos esses bons propósitos se esqueceram!...
            Na actualidade, o lema está patente no aparente trocadilho da palavra «envelheser», um composto de envelhecer + ser. Queremos que os nossos velhos «sejam», se reconheçam como pessoas, assumam uma atitude mais activa no seio da comunidade em que se inserem: a família, o lar ou, melhor ainda, a comunidade. Por isso, na medida do possível, há um programa semanal em praticamente todos os lares dignos de tal nome, em que se contempla, por exemplo, uma sessão de cinema, uma aula de movimento, a ida a um museu ou a uma exposição específica... E se permite que, em determinado horário, o utente possa ser visitado pelo seu animal de estimação que, durante tantos anos, lhe fez companhia (uma espécie de «pet hour» sempre aguardada com enorme ternura!).
            Finalmente, uma atitude que não será exclusiva de Portugal: a fuga, cada vez maior, dos jovens, não apenas para os aglomerados urbanos do litoral. mas também – e a tendência está a acentuar-se de forma assustadora – para o estrangeiro. O interior desertifica-se; há aldeias com três ou quatro velhotes, perdidas no meio do campo. Tardam políticas que evitem eficazmente essa sangria e nem as constantes reportagens passadas nas televisões contribuem para que os políticos (mais preocupados com os milhões da dívida externa que foram – e vão! – contraindo…) lancem um olhar atento e eficaz para essa situação.
            Nem tudo, porém, é negro. Perante as escassas oportunidades que mesmo o litoral lhes facultam, estão a criar-se associações de jovens formados nas universidades com o objectivo de revitalizar as potencialidades do campo, da chamada agricultura biológica, do turismo rural. Isso vai contribuir também para diminuir o isolamento dos idosos – e essa constitui, na verdade, uma excelente perspectiva para, sendo considerados pessoas, os anciãos, verdadeiras bibliotecas vivas, encarem com outros olhos o seu envelhecer.
                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Portugal-Post (Correio luso-hanseático) [Hamburgo], nº 61, Maio de 2017, p. 14-17 [texto bilingue: português-alemão].
Fotos gentilmente cedidas pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais, a ilustrar aspectos da vida quotidiana na Residência Sénior de Alcoitão.
                                                                         




   

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Os carteiros de outrora e a leal pancadaria!

             Tive oportunidade de, em crónica de 22 de Março último («Carteiros-autómatos não, obrigado!»), solicitar à mui digna administração da empresa privada CTT que envidasse esforços no sentido de não formar carteiros ‘de aviário’, que, quais autómatos, apenas lessem parte do que estava escrito e que, como os autómatos ou os computadores, se faltava uma vírgula ou uma letra não compreendiam nada e, mui orgulhosamente, espetavam com força o carimbo de «destinatário desconhecido» e toca a enviar para trás!
            Creio que os mui dignos administradores hão-de ter compreendido que, até do ponto de vista financeiro – para já não falar da imagem da empresa –, tal atitude era contraproducente, até porque, recorde-se, hoje os processos de comunicação por correio electrónico e por tantos outros meios são tão fáceis e tão baratos (gratuitos até!) que os CTT, se não se acautelam, correm sério risco de começar a ter prejuízo. Claro, isso corresponderia logo a despedir pessoal e a recorrer ao Instituto de Emprego e Formação Profissional para ‘arranjarem’ estagiários e, qual pescadinha de rabo na boca, lá voltávamos ao princípio de não termos carteiros com vocação de carteiro – que também para isso se carece de ter vocação!
            Hoje, porém, não quero criticar, mas louvar!
            E agradeço a Hans Daehnhardt, meu amigo octogenário que vive em Hanôver há muitos anos, mas que adora Cascais, onde passou boa parte da sua infância, o facto de, a propósito da notícia sobre a caldeirada do 1º de Maio, me ter escrito a dizer que fora várias vezes com Chico da Neta ao mar, a recolher os covos postos para a apanha da lagosta. E acrescentou: «Quando nos covos estava um peixe, normalmente um safio ou abrótea, ele oferecia-me este peixe».
            Mas não foi propriamente a história dos covos e da abrótea que me encantou. É que Hans Wilhelm Daehnhardt morava na Rua Marques Leal Pancada e, um dia, recebeu uma carta com o seguinte endereço: Rua Marquês da leal Pancadaria! Se fosse hoje, voltava para trás, porventura com a anotação de que, em Cascais, não há «leal Pancadaria»; e, quando a há, é sempre… desleal!...
            Quando fui responsável pelo programa ERASMUS na minha Faculdade, correspondia-me naturalmente, também por via postal, com os meus colegas de universidades estrangeiras. Nem sempre eles compreendiam não apenas o sistema dos endereços portugueses como, por vezes, algumas das letras manuscritas. Lembro-me de que «Largo da Porta Férrea» foi, um dia, transformado em «Largo Porto Ferrero», se calhar por, alguma vez, ter aparecido lá por casa uma garrafita de Porto Ferreira. Portanto, Porta Férrea é coisa que lembra prisão e Porto Ferreira sempre agrada muito mais (sem desprimor das outras marcas, claro está!).
            Para mim, no entanto, o caso que ilustro e que um amigo me fez chegar às mãos é que me encheu as medidas! A carta vem de Granada (Espanha) e o endereço que traz é: ECA QVVIROZ; e o topónimo Aldeia de Juzo foi transformado (pasme-se!...) em ALGIA F 420! Neste caso, o código postal vinha certo e, apesar do estranho topónimo, o carteiro não se deu ao trabalho de devolver!... Outros tempos!
            Um último caso:
            Ditei pelo telefone a minha morada à secretária do senhor vereador de uma câmara municipal de Portugal. E, apesar de o número ter sido escrito 80 i 9 (por 89…), a encomenda chegou direitinha!... 80 i 9 não lembraria ao Diabo, mas que aconteceu aconteceu! A senhora deveria ter passado uns tempos na Inglaterra ou no Canadá, onde os endereços são uma verdadeira charada. Tenho um amigo que vive em Toronto e o endereço termina assim: «M3J 1P3. Canada». Não admira, pois, o F 420 nem o 80 i 9!...
                                                              José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 187, 17-05-2017, p. 6.

 

terça-feira, 16 de maio de 2017

Uma rapsódia de… murros no estômago!

              Não fica mal à sanfona que, de vez em quando, ensaie uma rapsódia. Normalmente, escolhem-se trechos que andam no ouvido da gente, que facilmente se interligam e o pessoal alegremente os cantarola.
            Pois decidi-me hoje por uma rapsódia de factos que andam no ouvido da gente e que facilmente se interligam. Só com uma diferença: não há alegre cantarolice.
            O horror do jogo da «baleia azul»; o estranhíssimo complexo de Diógenes, que leva indivíduos a amontoarem tudo e mais alguma coisa em casa e aí mal se podem mexer e tudo fede que tresanda e eles não conseguem libertar-se de tanta porcaria; a administração, nas prisões, de medicamentos fora de prazo, trazidos não se sabe donde…
            Que rapsódia é esta, senhores?
            Quis sair desse ritmo e fui ao baú dos «assuntos pendentes». E que me saltou à vista?
            1 ‒ A carta que o actor Ruy de Carvalho, aos 86 anos (eu tive o privilégio de estar na festa dos seus 90, mui condignamente celebrados a 1 de Março passado), escreveu aos «senhores ministros» e onde vitupera, a dado passo:
            «Hoje, para o Fisco, deixei de ser Actor… e comigo, todos os meus colegas Actores e restantes Artistas destes país – colegas que muito prezo e gostava de poder defender.
            Tudo isto ao fim de setenta anos de carreira! É fascinante. Francamente, não sei para que servem as comendas, as medalhas e as Ordens, que de vez em quando me penduram ao peito?
            Tenho 86 anos, volto a dizer, para que ninguém esqueça o meu direito a não ser incomodado pela raiva miudinha de um Ministério das Finanças, que insiste em afirmar, perante o silêncio do Primeiro-Ministro e os olhos baixos do Presidente da República, de que eu não sou actor, que não tenho direito aos benefícios fiscais, que estão consagrados na lei, e que o meu trabalho não pode ser considerado como propriedade intelectual.»
            Olha: acabou-se o espaço! Apetecia-me ir por aí adiante, a revolver o baú e a dar mil e um exemplos de como um homem de cultura (professor, escritor, pintor…) está, em termos financeiros, abaixo do canalizador ou do electricista, por exemplo. Acedes ao pedido da Câmara Municipal para fazer uma conferência da tua especialidade: quanto te pagam? Solicita a Câmara o serviço de um canalizador, caso o não tenha – e nem pestaneja a pagar a deslocação e as ‘horas’ a peso de ouro… Aliás, também no «Sexta às Nove» da RTP 1 do dia 5, se falou nisso…
            Fica o resto da rapsódia para outra vez! A fim de que a esperança não morra!

                                                         José d’Encarnação

      Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 708, 15-05-2017, p. 11.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Fazer grumos com o sabão

            Estás a ver, Henrique? Eu bem te dizia: a água do poço é mesmo salobra, faz grumos com o sabão!
            Sabão azul e branco, o indicado para as sujidades nas calças de cotim e de ganga. Lavava minha mãe num grande alguidar de zinco com fundo de madeira, onde, ao domingo de manhã, tomávamos banho nós. Lavava a nossa roupa e a de vários trabalhadores solteiros são-brasenses que haviam demandado as pedreiras de Cascais. Quando podia é que ia ao tanque da aldeia: entre uma enxaguadela e outra, lá ia também sabendo as novidades…
            Lembrei-me dos grumos, quando, há dias, após o duche, passei pelas pernas secas um pouco de óleo de amêndoas doces e quis lavar, depois, as mãos com sabonete. Espuma: cadê? Fazia grumos, como que minúsculas bolinhas… Há anos que a palavra não me ocorria e fui depressa meter o nariz no dicionário: grumo, «grânulo», derivado do latim, «grumus», «montículo», «coágulo»; os gregos chamam-lhe «viscoso coágulo».
            Grumos… E, à noite, ao ouvir os noticiários, ocorreu-me a palavra outra vez: não é que, nessas andanças políticas, grumos é o que mais há? Será que as águas estão cada vez mais salobras? Sonhávamos nós com aquela abundante espuma das banheiras hollywoodescas, sedutora, malandreca, hilariante!… E só nos saem é grumos! As fitas são outras, bem no sei. Uma seca!

                                                    José d’Encarnação

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 220, Maio de 2017, p. 10.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Canteiros mantêm a tradição

            Um grupo de canteiros – trabalhadores da pedra – de S. Domingos de Rana teima em manter a tradição de, no 1º de Maio, Dia do Trabalhador, se reunirem num almoço de confraternização, em que o prato indispensável e único é uma bem apetitosa caldeirada.
            Mesmo antes do 25 de Abril, apesar da repressão salazarista, os trabalhadores das pedreiras da zona de Cascais acompanharam a tradição saloia de ir à orla marítima e preparar num dos recantos do pinhal adjacente, da Marinha, uma caldeirada, à boa maneira dos pescadores cascalenses, normalmente na área da Guia ou do Cabo Raso. A ânsia de manter essas propriedades como privadas com a sua consequente vedação e o medo – inútil, neste caso – de se provocar um incêndio levaram a que se proibisse essa tradição, que hoje felizmente se mantém nas colectividades mais antigas e nos grupos que assim relembram os tempos de outrora. Há caldeirada no União Recreativa da Charneca; há prato de caldeirada nos restaurantes geridos por gente de Cascais.
António Clérigo mostra o trofeu comemorativo do convívio,
perante o olhar admirado de Celestino Costa.
            Este ano, mais de duas dezenas de canteiros da área de S. Domingos de Rana voltaram, pois, a reunir-se em torno de um enorme tacho de mui saborosa caldeirada, onde nada faltou, mormente a boa disposição. A reunião ocorreu, como já vai sendo hábito, em Trajouce, no barracão de um dos canteiros, barracão que mais parece um museu de antiguidades; e não faltou, além do acordeão, a rifa de um objecto de pedra, alusivo ao convívio e que, por norma, o premiado oferece ao Museu do Caracol, que deles já guarda uma boa colecção.
            A Associação Cultural de Cascais sempre apoiou estes convívios e, por isso, quatro dos seus membros, nomeadamente da direcção, não deixaram de estar presentes.

                                                                       José d’Encarnação
 
P. S.: Mais ou menos nestes termos, porque fiz questão (como é natural) em não enviar o mesmo texto, esta nota foi publicada no Cyberjornal do dia 2-5-2017 e no Jornal da Região – Cascais (série V, ano XXII, nº 126), de 3-9.5.2017, p. 18. Fotos de Guilherme Cardoso.
Parte da mesa, em meio de um barracão, que mais parece
um museu de velharias, onde pode encontrar-se de tudo!
 
No final, a foto para a posteridade!

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Uma outra Cascais… ali a dois passos do centro!

             Realizou-se, na manhã de sábado, 29, por iniciativa da Farmácia Cascais, uma caminhada, a Rota das Ribeiras, que congregou cerca de meia centena dos seus habituais clientes. É a primeira de uma «caminhada anual», que há intenção de fazer, não apenas para fomentar o movimento e dar a conhecer recantos porventura quase ignorados do concelho, mas sobretudo para cimentar comunidade.
            Guiou-nos, na parte respeitante à Ribeira das Vinhas, uma das moradoras mais antigas da vetusta quinta sita no canto sudoeste da encosta entre a Av. 25 de Abril e a R. José Florindo. Contou-nos do que eram os hábitos, ali, nos anos 50, e, no troço inicial do percurso, a norte do mercado, falou-nos, por exemplo, das grutas aonde outrora se acoitava a população aquando dos ataques dos piratas. Não podemos esquecer que se chama Outeiro da Vela a colina a nascente, porque os cascalenses ali se revezavam na «vela» da barra, a vigiar a entrada de embarcações na baía. Uma dessas grutas terá mesmo assumido funções idênticas às do Poço Velho, ou seja, ali terá havido ocupação humana no mesmo período, a Pré-História.
            Seguimos, pois, o percurso em boa hora recentemente inaugurado pelas entidades locais, junto ao leito da ribeira, ora inteiramente seco, mas limpo. Vimos como a encosta a poente, de pinhal, mantém os muretes que sustinham os socalcos; mas encantou-nos, sobretudo, o facto de os terrenos do vale estarem a ser aproveitados para mui vicejantes hortas. Por ali medram tomateiros, alhos, cebolas, ervilhas, milho-miúdo, feijão, couves, alfaces… E, mais além, a pachorra de um rebanho de ovelhas e a traquinice dos cabritinhos…
            Aqui e além, um marmeleiro em flor (lá mais para montante, recorde-se, a ribeira chama-se popularmente «Rio Marmeleiro»…). Uma senhora, de lenço na cabeça e botas de borracha, ajeitava com a enxada a cova junto a um loureiro:
            ‒ Preparando a terra para a sementeira, não?
            ‒ Ná, agora já não se sameia nada, senhor!…
            Enfim, uma outra Cascais, serena e sem ruídos – o rebuliço do mercado ficara lá bem para trás… – ali a dois passos do centro da vila, no convite a uma caminhada tranquila, na comunhão com a Natureza. Vinhas já não as há – uma que outra latada, só – que a moléstia do míldio tudo matou há mais de um século. Mas ficou o nome e o topónimo Alvide também essa antiga paisagem recorda.

O parque urbano dos Mochos
            Subimos pela Rua das Quintas. Fez-se paragem «técnica» na Farmácia e demandámos o Parque Urbano da Ribeira dos Mochos (a que eu prefiro chamar do «Rio dos Mochos», porque, habituado às cheias que ele tinha, em Birre, pelos Invernos mais rigorosos, o povo assim lhe chamava).
             Um outro panorama, claro, mas passível de mostrar como, também aí, apesar da proximidade do Atlântico, medram as espécies vegetais mediterrânicas: o zambujeiro, o carrasco, o medronheiro, a alfarrobeira, a oliveira (e que bem carregadas de candeio elas ora estão!...). E a variedade enorme de pássaros, sobre que José Manuel Durão fez o livro «Aves da Ribeira dos Mochos» (Cascais, Julho de 2010), após ter passado horas a fio, anos fora, a observá-los ali. Um casal de coelhos olhou-nos, admirado, e os casais de humanos que connosco se cruzaram tinham ar interrogativo: «Que será isto? Gente de camisolas todas iguais…».
            Observámos os troços conservados do aqueduto que, em tempos, levou água ao convento de Nossa Senhora da Piedade (hoje, Centro Cultural); agradaram-nos os viveiros camarários; louvámos a iniciativa da Cruz Vermelha de no parque ter implantado uma secção da sua Academia Sénior…
            E quando, já na Rua Joaquim Ereira, nos despedimos, agradecendo o elevado interesse da iniciativa, vínhamos com apetite para o almoço, sim, mas… com apetite para mais! Noutra ocasião. Que o coração da vila de Cascais, cada vez mais despovoado de seus habitantes e enxameado de turistas, já nada tem a ver com essoutra Cascais natural que a periferia mui gostosamente ainda deixa contemplar.
                                                                            José d’Encarnação

                         Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 185, 03-05-2017, p. 6.
O enigmático castelinho da Zé Florindo, visto da ribeira

Ribeira vai seca, mas o leito mantém-se limpo. Uma bênção!

Que de histórias tem ainda a ribeira para contar!...

Retoiçam, tranquilas, as ovelhas e as cabras;
e o centro de Cascais ali tão perto!... Quem diria?

Nos viveiros camarários do Parque do Rio dos Mochos,
um casal de coelhos, de orelhas arrebitadas, numa admiração...
 

O ensino profissional

            Há «dias» para tudo. E ainda bem, porque, assim, pelo menos nesse dia, o tema pode ser aprofundado.
            Descobri, ao tomar o pequeno almoço de 3 de Abril, p. p., que nesse dia se comemorava o Dia do Ensino Profissional e, vai daí, assisti à apresentação de estatísticas e mais estatísticas, opiniões a favor e contra, sugestões, relatos de experiências, propostas de iniciativas e de legislação e o Governo: que sim, que no Ensino Profissional estava a chave da porta do futuro – e a gente que nem sabe onde é a porta, quanto mais onde é que está a chave!...
No ano lectivo de 1963-1964, exerci funções de professor do Ensino Preparatório na Escola Profissional de Santo António, Izeda (Bragança), uma escola dependente dos Serviços Tutelares de Menores e entregue à Congregação Salesiana. Ensinei Português e Ciências Naturais a quem seguia uma formação técnica. Quando, em 1968-1969, comecei a leccionar na Escola Técnico-Liceal Salesiana do Estoril, tive, além de outras, duas turmas de História do 2º ano do Curso Comercial. A escola era mesmo técnico-liceal; ou seja, após a instrução primária, o estudante ia para o ensino preparatório, que lhe daria acesso aos cursos da Indústria ou do Comércio, ou para o ensino liceal, e seguia uma carreira que poderíamos designar de «Letras».
Cruzo-me, ainda hoje, amiúde com esses meus antigos alunos do Curso Comercial, porque boa parte deles criou as suas empresas e seguiu vida por aqui, na «linha de Cascais». Gente, de um modo geral, organizada e com os pés assentes na terra, porque detentora de cursos concretos, profissionais.
Creio que foi com as reformas do ensino subsequentes à Revolução de Abril que se acabou com esses cursos e deixou de se chamar Escola Industrial Marquês de Pombal a um estabelecimento de ensino da zona de Alcântara que formava técnicos bem competentes (ter andado na Marquês de Pombal era um orgulho!). Lembro-me que também resolveram ‘transformar’ a Francisco de Arruda, também de ensino preparatório, em Alcântara – «uma ‘escola de referência’, como a classificou Maria Emília Brederode Santos no Jornal de Letras (11-12-2013) – o que levou o Prof. Calvet de Maglhães, um pedagogo de primeira água, que tudo dera àquela escola, a achar que já não valia a pena viver, quando lhe impuseram essa ideia «revolucionária» de acabar com o ensino profissional.
Hoje, torcem a orelha e já não deita sangue. Porque será que, quando alguém chega ao poder, a sua primeira acção é destruir o que de bom os anteriores gestores haviam feito? Claro, agora pugna-se ardentemente pelo ensino profissional. Vão ver o que, há 50 anos, funcionava bem e foi estraçalhado! Nalgum sítio deve haver ainda arquivos disso – se é que não decidiram queimar tudo!

                                                      José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 707, 1 de Maio de 2017, p. 11.