Não.
Não vou por aí.
Foi
mesmo no começo da tarde de 20 de Maio do ano da graça de dois mil e dezassete,
no comboio das 13.24 para o Cais do Sodré, em carruagem tranquila de quem já
almoçou ou tem o estômago a dar horas e prefere, por isso, manter-se em jeito
de letargia vital.
Exacto.
Ferrenho defensor das viagens em comboio, esse ambiente sempre foi para mim, há
décadas, fonte de inspiração.
Admiravam-se
os meus estudantes, quando eu lhes dizia que escrevia no comboio os meus
artigos ou aí preparava as lições ou, simplesmente, me encontrava comigo mesmo.
E,
por sinal, por uma daquelas inexplicáveis circunstâncias que a um suposto
«acaso» se atribuem, caiu-me sob os olhos numa das estantes cá de casa o livro
de David Kundtz, «Parar» (Lisboa, 2004), onde explica, a dado passo, que
aproveita um intervalo, ainda que curto, para andar, «embora algumas vezes»,
confessa, «vá até a um café e, na companhia de uma chávena de chá, me ponha a
observar as pessoas» (p. 86).
Gosto
de observar as pessoas. Ainda no dia anterior, estava com tempo e fui a pé do
Cais do Sodré até ao Espaço Europeu, no Largo Jean Monnet, e o que eu aprendi
acerca do povo que ora Lisboa tem!...
Pois,
nessa tarde de 20 de Maio, no curto trajecto entre Cascais e Carcavelos, onde
eles saíram, senti a necessidade obsessiva de escrever (ando sempre com um
bloquinho no bolso e lápis…) o que à minha frente se passava. E eu que, amiúde
(confesso o pecado), não acredito na felicidade, dei comigo a pensar: ela está
ali! Pode ser efémera, mas eu sinto-a e bem a senti, aliás, no olhar que, a
certa altura, serenamente, se cruzou e fixou no meu.
E
até me deu vontade de criticar Saint-Exupéry: num dos planetas que o
Principezinho visitou, ele deveria ter visto o que eu agora vi. Foi falha tua,
Antoine, embora eu bem te compreenda, porque a «flor» que deixaste na estrela tal
não te proporcionou. E foi pena! Podias ter posto um planetazinho mais,
dedicado à Felicidade!
Transcrevo,
pois, sem correcções de agora o que então saltou ao correr do lápis:
Deliciou-me
ver aquele casal de namorados, de sorriso sereno, olhares serenos trocados,
plenos da felicidade imensa de estarem juntos nesta viagem de comboio. Ele,
cabelo encaracolado, barba e bigode e brinco de azeviche na orelha direita;
ela, de olho azul regado pela serenidade dum céu sem nuvens, cabelo apanhado em
carrapito; na orelha direita, uma argolinha e uma espiral dourada pendente; na
esquerda, um «botão» negro apenas. Encostou agora a cabeça no ombro do seu
amado, no fingimento dum adormecer, deliciada com as carícias que ele lhe não
poupou.
Saíram
em Carcavelos; mas deram a impressão de não saber exactamente para onde ir,
porque olharam para um lado e para o outro e decidiram sentar-se num banco, para
mais calmamente resolverem que fazer.
Haviam
partilhado um pacotinho de bombons de chocolate. Levavam mochilas às costas. Estrangeiros
seriam, em viagem de amor.
Se
a Felicidade tivesse rosto era o daqueles dois jovens o que eu imaginaria.
Dulcificaram-me
a tarde soalheira deste sábado, porque a maior parte dos outros rostos que iam
na carruagem carregavam um ar tão sorumbático… Dir-se-ia que concentravam em si
todas as preocupações do mundo inteiro. No mais completo contraste com os dos
dois jovens que em Carcavelos deixei.
José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais],
nº 189, 31-05-2017, p. 6.