Texto inédito do Dr. Josias Gyll, que há vários anos me entregara, manuscrito, para a hipótese - que não se concretizou - de vir a ser publicado no «Jornal da Costa do Sol». Publico-o, agora, por especial deferência de Pepita Tristão, em jeito de homenagem ao Médico humanista que, como ele próprio afirmava, via no doente não o doente mas a Pessoa e que sabia unir a ciência médica à ciência psicológica.
Um vulto a merecer mais homenagem em Cascais, onde exerceu Medicina até depois dos 80 anos, sem desfalecimento.
Honra ao mérito!
José d'Encarnação
A Vida e a Morte
ocupam tempo essencial na existência vivida do SER humano, o qual se situa na fronteira
dos comportamentos de viver para morrer e, em cada momento, de morrer para
viver, se entendermos que, nas nossas culturas, viver é saúde, felicidade,
riqueza, actividade, juventude, beleza; e morrer é perturbação, infelicidade,
pobreza, perda, inactividade, fealdade, velhice, morte física, ausência, afastamento,
solidão, perda de afectividade.
Esta
dialéctica da Vida e da Morte que é o conteúdo da angústia existencial do
Homem, é feita de imaginação, a qual
é elaborada com os reliquats das memórias
de afectos e de pensamentos esquecidos no inconsciente.
É
a imaginação que preside aos nossos completamentos,
às nossas preferências, às nossas necessidades, às nossas decisões e
raciocínios e até a uma lógica pretensamente pura, fria, isenta (ninguém é
isento de si mesmo).
Isto
significa que os modelos do viver e do morrer são fenómenos psico-sócio-histórico-culturais,
por isso variáveis com as latitudes, com as épocas e com o conteúdo que
estrutura o indivíduo e que foi adquirido por aprendizagem.
A
plenitude do viver é encontrada na plenitude do morrer porque, quem morre, vive
intensamente os últimos tempos do seu existir no espaço corporal que é o seu e
na sua época.
A
Morte e a Vida não estão separadas; pelo contrário, constituem uma Unidade
Natural, Humana, Universal.
Mercê
das células germinativas, o SER humano alberga a eternidade, quando elas são dinamizadas
por comportamentos ditados pela consciência teleológica da Espécie Humana. Assim,
a sexualidade tem conotações com a Vida e com a Morte; com efeito, na sexualidade
que inclua a cópula, a qual cessa com o orgasmo, os seres humanos libertam toda
a angústia existencial em máximas metamorfoses de Vida em mortes, quando a
percepção da limitação do Eu se dilui até à inconsciência; – é um vazio
feito de intenso conteúdo de Vida, – é uma morte.
A
angústia não é mais que erotismo insatisfeito e erotismo é sexualidade insatisfeita.
Enquanto
a Morte e a Vida são processos generalizados, o morrer e o viver, isto é, o
modo de morrer e de viver são formas individualizadas do existir do Homem. A Morte
não deve ser interpretada como um processo de negação
da Vida, o que seria contraditório da referida imortalidade do Homem (Homem
metafísico, Homem que se transcendeu em sua corporalidade) conferida pela
perpetuidade, devido às células germinativas. É por isso que o Homem É e continuará
SER.
Falo
numa visão Universalista, Humanista. Mas a verdade é que a relação que resulta da antítese Vida / Morte é uma realidade
subentendida em qualquer homem, porque, apesar de se transcender, ele não perde
a sua animalidade; por isso é também verdade que bio-psicologicamente a Morte é
individual, isto é, quando alguém morre é esse alguém que cessa de viver.
Assim,
a Morte quando negação de Vida é “angústia
de duração” para o Homem enquanto
age egocentricamente e se pensa numa filosofia
individualista, isto é, quando como indivíduo se sobrepõe à Espécie.
A
morte dum homem não é a Morte do Homem; como canta o poeta, «por morrer uma
andorinha não acaba a Primavera».
Falar
da Morte é vaguear no labirinto da complexidade, à procura do incognoscível. São
múltiplos e versáteis os caminhos da Morte; pode ser abordada por um discurso literário,
por um discurso religioso, por um discurso filosófico,
por um discurso histórico, por um discurso sociológico, por um discurso antropológico,
uu biológico, ou médico, ou por um discurso psicológico, ou por outros, isto é,
a problemática da Morte constitui uma antropociência elaborada com antropociências,
não no sentido de Claude Bernard, mas sim na visão de Karl Popper, o qual não recusa
valor científico ao que não é observável de imediato através da experiência,
desde que seja critério epistemológico dinamizado pela conjunção das 3 noções epistémicas de Kant contidas na convicção: opinião, crença e saber e desde que possa vir a
ser sujeito a critérios de testabilidade (de falsificabilidade e de validade).
Os
problemas suscitados pela Mote são determinantes dos comportamentos humanos e a
própria Morte tem um notável peso no Sociedade; ela dinamiza a cultura, a
actividade científica, modela os valores sociais, os direitos e os deveres individuais
e comunitários.
A
angústia da Morte é o motor mais eficaz da criatividade; lembremo-nos do êxito
de temas macabros da Arte e da Literatura nos séculos XIV e XV e que persistiram
até ao século XVIII.
As
diferentes culturas imprimem diferenças comportamentais nos vivos em relação aos mortos; há culturas que defumam os cadáveres;
outras que os cremam; na Tailândia lançam-nos aos abutres para mais tarde recolherem
o esqueleto já limpo; no Egipto Antigo os corpos mumificados eram colocados no
Nilo; na Síria os mortos são sepultados sentados e, nas sociedades industriais,
contra sabemos, há jazigos para os corpos mortos.
Todos
estes comportamentos visam satisfazer a necessidade de o próprio e de os outros
prolongarem a Vida; são comportamentos de presentificação
continuada, até que o morto se transforme em antepassado, isto é, seja
esquecido para ser recordado por quem nunca o conheceu. O luto, a dor moral manifestada,
a fotografia, são também heranças da Morte e prolongam, entre os vivos, a
presença do finado. Em África promovem-se celebrações nas quais se imitam
gestos, voz e outras expressões do defunto – comportamentos, por vezes, explorados
identificando-os com fenómenos de “possessão”. Entre nós a “missa de réquie” é
também uma celebração de
presentificação.
Mas
a Morte, nos nossos espaços culturais e na nossa época, é também o paradigma
das diferenças sociais. A distância entre a campa-rasa e o jazigo é análoga à distância
entre a barraca e a vivenda opulenta, à distância entre o operário pobre e o capitalista
rico, à distância entre os “malnascidos” e os “bem-nascidos, ou os “mal-morridos”
e os “bem-morridos”.
A
Tanatocracia e a Tanatopraxis são enormes impulsionadoras das comunidades; para
exemplo, refiro alguns dos conteúdos sociais e manifestações dinamizados pela
Morte: – as actividades das agências funerárias e das floristas; os rituais
sagrados; as indumentárias convencionais (míticas); as dispensas ao trabalho; e
todos os custos económicos destes eventos.
Falar
da Morte é, para alguns de nós, a passagem da consciência de estar vivo para o
medo do nada ou, talvez, a passagem para o medo de qualquer coisa indefinida; –
pode ser que seja a maneira de morrer que é temida. O medo da Morte ou o medo
dos nossos pensamentos é também um fenómeno psico-histórico-cultural; e é
também um fenómeno demográfico. Há regiões no Mundo em que se nasce com a Morte
ao lado; para estes seres-humanos, a Morte não tem o mesmo significado que ela
tem para nós, por um processo de convivência, o qual confere adaptação.
Também
entre nós e em tempos passados, houve uma maior aceitação
da Morte, quando a esperança de Vida, ao nascer, era significativamente pequena
e, simultaneamente, a natalidade era grande, isto é, a Morte pré-ocupa-nos e o medo
aumenta com o aumento da esperança de Vida e, principalmente, com a diminuição da natalidade. Ora, a vida humana duplicou a sua
duração durante o século XX; e a
natalidade baixa progressivamente; corremos para um pais de velhos e, em
consequência, cresce o medo da morte e cresce o evitamento dos cenários do
morrer; talvez, por isso, os nossos mortos são enterrados rapidamente, em
funerais apressados.
A
dialéctica entre o “Ter” e o “SER” é também factor de influência no processo do
morrer. Um grande investimento nos “teres” com prejuízo do “SER” (homem metafísico)
aumenta a angústia da Morte, aumenta o medo de morrer por dificuldades de libertação.
Por
outro lado, a estabilidade, o equilíbrio estável, aproxima o Homem da Morte –
já que Vida é equilíbrio instável e viver é um desequilíbrio com capacidades de reequilibração.
Realmente
só a Morte é equilíbrio estável e talvez não; nem a Morte porque, na realidade,
nada «acaba, tudo se transforma e esta transformação
implicita instabilidade, dinamismo – vida.
Curiosamente
a demência, doença actual cuja frequência aumenta progressivamente faz a adaptação da Pessoa que a sofre à Morte; ela opera lenta,
insidiosa e progressivamente o cérebro do indivíduo e, roubando-lhe neurónios,
rouba-lhe entendimento e também o medo de morrer; a Morte só existe para quem
tem conhecimento dela e conforme o conhecimento que se julga ter dela.
Para
alguns a Morte é o acesso à “Eternidade” e é tida por eles como apenas uma
fatalidade natural biologicamente ligada ao “poder oculto” da Natureza e
miticamente enraizada no “Pecado Original” – fundamento de todas as desgraças, inclusive
a finitude humana.
Do
ponto de vista psicológico, com a morte duma pessoa outras mortes se recordam,
– outras mortes de pessoas mortas e outras mortes também de pessoas vivas e a
morte dos mortos serve de experiência à futura morte do vivo.
Há
quem, prosaicamente, considera a Morte um sono; se assim a pensarmos será um sono
sem sonhos havido numa única e indimensionável noite espreguiçada no TEMPO –
num TEMPO esquecido ou nunca lembrado, num TEMPO sem Tempos, num Tempo
inconsciente.
Se
assim a pensarmos será a eternidade? ou será um acabar sem início? mas nada
acaba, tudo muda e, neste sentido, morrer é mudar.
Mas
voltamos a questionarmo-nos: o que é real no morrer e na Morte?
Estão
em nós todas as respostas necessárias, convenientes, adequadas e dimensionadas
a nós mesmos, às nossas dúvidas e para todas as verdades que julgamos
fundamentais; porém muitas destas verdades são apenas mitos. A verdade é apenas
a interpretação da realidade e esta
é só, para cada qual, o que cada qual pensa e sente acerca
do fenómeno; mas este pensar e este sentir são elaborados com o capital de conhecimentos
e de afectos que cada um possui, em cada momento do seu viver. É por isso que
uma realidade externa é essencialmente uma realidade interna, diferente para
cada pessoa.
Qual
a diferença, para cada um de nós, entre a realidade que vive numa ilusão e a
ilusão duma realidade? Todos nós nos confrontamos no dia-a-dia de nossa praxis
não só com o viver, mas também com o morrer.
A
situação da Pessoa que morre é causa
de perplexidades, dum espanto envolvente e não raras vezes paralisante e,
contudo, é desumano fugirmos do moribundo. O eufemismo “Doente Terminal” traduz
bem o desejo do médico em se afastar da Morte e do moribundo.
Quando
falo do moribundo, faço um apelo a todos nós para o respeito que há de humano –
de profundamente humano – na Pessoa que sofre a sua morte.
Todos
nós devemos oferecer condições internas e externas à Pessoa para que morra c/
dignidade entre os outros; toda a gente deve morrer a viver o seu existir. Por isso,
a Morte é, em vida, a situação de urgência
por excelência.
A
Morte é muito mais um fenómeno psico-sócio-cultural do que um processo somático,
no qual os vivos vivem (atabalhoadamente) a morte do morto e o moribundo vive a
sua morte, enquanto a elabora.
Rigorosamente
a Morte é um mito; ela não existe como realidade conhecida; também não existe psicologicamente
porque não é repetitiva. A Pessoa que morre e nós, vivos, que sofremos a sua
morte, sofremos fantasmaticamente apenas o que pensamos e sentimos dela, sofremos
apenas o que aprendemos acerca dela.
Sem
dúvida que o real esta no atmosférico criado pela relação
entre os vivos que sofrem a morte de quem morre e deveria estar na relação afectiva entre o moribundo e os vivos. Assim, a
Morte é separação máxima, é vida desincorporada,
é afastamento, é autonomia suprema na qual a Pessoa se liberta de todo o
condicionamento nomeadamente do próprio existir; mas é a única autonomia que
não permite ao humano a liberdade de lutar ou de fugir. Não permite por
ignorância – ignorância que resulta de carência de memória e de consciência, já
que a consciências está ligada à memória da perenidade e da unidade do indivíduo
em dialéctica com o ambiente.
É
esta relação da dialéctica com o morrer
que nunca foi vivida; por isso o moribundo não possui a experiência de isso
nem, corolariamente, possui a memória da consciência dela. Nem o moribundo, nem
os vivos que assistem ao seu morrer ou ao morrer doutros moribundos.
Há
por isso uma perplexidade conflituosa entre a perpetuidade e a temporalidade
aprendida. É que a consciência humana contém duas vertentes: a perpetuidade e a
unidade do SER consciente.
Este
contexto favorece o sofrimento de angústia, de mudança em direcção ao “continente” desconhecido no qual o Homem
encontra Deus – encontra Deus porque se encontra em sua transcendência e
encontra os outros – encontra a Vida.
A
Morte estabelece relações interindividuais de grande carga afectiva; o sofrimento
une pessoas. Na Morte o corpo perde dimensão, o SER ganha-a.
A
Morte é, seguramente, diferente para o moribundo e para nós, não só porque nós estamos
vivos e ele está com a Morte, mas também porque diferente é, certamente, o capital
de conhecimentos e de sentires quando perante a Morte.
Todavia,
devemos conhecer, para o ajudar, como é que o moribundo está a elaborar a acomodação à sua Morte; sobretudo deveremos estar, estar
com ele, solidários, em comunicação.
Se
assim não agirmos, o moribundo sofre só, porque está só quando morre.
No
contexto ambiente de aproximação da
Morte estabelece-se, habitualmente, uma conspiração
de silêncio indesejável; – indesejável porque inibe o diálogo interpessoal
sobre a angústia que envolve todos os que estão interligados – o moribundo, a família,
os amigos. Talvez o padre e o médico.
Neste
contexto esmagado pela angústia, os vivos choram e sofrem, no moribundo, a sua própria
morte, porque, quando alguém morre, é uma parte de nós ou em nós, que morre
também. Nós choramos a nossa morte, choramo-nos, choramos a nossa perda, choramos
a morte da nossa ligação com o morto.
E angustiamo-nos nas memórias do morto que estão em nós, que são nossas. A
Morte é o maior estimulante mnésico.
Manter a continuidade dos laços afectivos |
É
obrigatório que o amigo, o padre, o médico ajude a família a manter a continuidade
dos laços afectivos com o moribundo, enquanto vivo, a viver a sua morte, a fim
de lhe facilitar a elaboração da Morte;
a fim de o felicitar no morrer. Deve falar-lhe com serenidade, contemplativamente;
deve tocá-lo com as mãos, em silêncio, que é um modelo de diálogo afectivo e cognitivo
rico, verdadeiro e profundo; é o diálogo da solidariedade que é o novo rosto da
Paz e da Amizade.
A
nossa praxis está frustrada e irremediavelmente incompleta sempre que não estamos
lá a ajudar a Pessoa a morrer a e ajudar a família a humanizar-se no viver.
Não
é por sermos médicos que somos humanistas, mas é o humanismo que faz grandes médicos,
porque faz grandes homens.
A
Morte não é uma derrota para o médico se este oferecer até ao fim, à Pessoa, a
melhor qualidade de Vida possível.
Não
importa quando se morre; importa sim como se morre e mais ainda como se vive
até morrer.
Josias Gyll
Publicado em Cyberjornal, edição de 30-05-2019: