sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Três escritoras cascalenses por adopção

 Nem sempre damos valor aos que estão ao pé da porta. Lembrei-me, por isso, de referir três escritoras cascalenses por adopção. Porventura, porque – não sendo ases do desporto dignos de alguns minutos nos ecrãs televisivos… – por aqui vão escrevendo sem alardes: Júlia Nery, Maria Helena Ventura e Pepita Tristão. Não para tecer considerações globais sobre a sua actividade literária, mas na intenção de aludir tão-só a dois ou três traços do perfil de cada uma.

Júlia Nery faz gala das suas «raízes beirãs», embora natural de Lisboa. Cedo veio para Cascais, onde, nomeadamente na «Polivalente», foi professora de Português. Pioneira em dois campos da literatura portuguesa:

– na abordagem das questões relacionadas com a emigração portuguesa para França nos anos 60, com o livro Pouca Terra… Poucá Terra…, de 1984, e nessa linha, está o seu recente romance, Ei-los que Partem, de 2017, sobre a nova emigração que o programa ERASMUS sem dúvida potenciou;

– e na chamada de atenção para a coragem do cônsul Aristides Sousa Mendes, com o romance O Cônsul, de 1991, que Claire Cayron haveria de traduzir para francês (La Résolution de Bordeaux – 1993).

            Helena Ventura, natural de Coimbra, também se radicou em Cascais. O romance histórico será, creio, o género que mais lhe agrada, contando-se por uma mão-cheia as obras com que, nesse domínio, nos brindou. Centrando-se na personagem escolhida, acaba por mui cuidadosamente e com rigor a integrar na época. Cito a mais recente, Minha Irmã Luísa Todi que o musicólogo Doutor José Maria Pedrosa Cardoso apresentou, a 9 de Novembro, no Castelo de S. Jorge, por ser esse um local ligado à vida desta mui notável – e quase esquecida – cantora lírica portuguesa. Natural de Setúbal (1753), Luísa Todi percorreu as grandes salas de espetáculo europeias. Viria a falecer em Lisboa no ano de 1833. E se refiro estas datas é porque abrangem, por exemplo, o terramoto de 1755 e suas consequências bem como a implantação do liberalismo em Portugal, circunstâncias históricas que dão azo à romancista para nelas inserir a vida da sua biografada, ainda que, ressalve-se, não é de biografia que se trata, mas sim de um romance engendrado a partir de mui aturada pesquisa biográfica. Helena Ventura prima pela arte de bem escrever e, amiúde, somos surpreendidos a ver-nos realmente no ambiente descrito.

            Pepita Tristão veio de Castelo de Vide, no Norte alentejano. Integrou a redação do Jornal da Costa do Sol até à sua extinção em 14 de Janeiro de 2010. A par da actividade jornalística, em que a reportagem e a entrevista foram os seus géneros preferidos, tem-se aventurado – e com saber! – pela ficção, amiúde sugerida por histórias reais, o que não raro sucede a quem junta em si duas facetas: a de jornalista e a de escritor de ficção. O seu mais recente livro, apresentado na Feira do Livro e que só a pandemia impediu de ser apresentado na Casa Sommer, em Cascais, a 19 de Setembro último, chama-se Histórias de Amor e de Morte. Logo a primeira nos leva ao (já demolido) Hotel Atlântico de mui misteriosa passagem subterrânea…

                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 327, 2020-10-28, p. 6.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Canteiro – uma tradição, uma honra!

             Molda-se o Homem ao seu ambiente? Sim, adapta-se! Na montanha, é madeireiro ou pastor; junto aos rios, pesca e cultiva os campos. Carece de alimento, carece de abrigo para se repousar da canseira dos dias. E faz choupana de colmo ou de troncos, adoça grutas, usa o barro ou trabalha a pedra.      

            Assim em S. Brás, nos Funchais, onde o chão se prodigalizava em lajedo fácil de trabalhar. Os trabalhadores punham os bancos a descoberto; os cabouqueiros estudavam o melhor corte; os canteiros presenteavam os clientes com peitoris, ombreiras, lintéis para dar solidez às casas ou, mui simplesmente, lancis para delimitar passeios de ruas e de estradas.

            Não lhes bastava, amiúde, aprimorarem-se no alindar a escopro de dentes as arestas ou a bujardar as superfícies; aqui e além, ia um adorno mais, uma folha, o baixo-relevo dum fruto ou a data da construção e as siglas do nome do proprietário. O canteiro a sonhar escultor!...

            E com viagens sonhava, quando lhe pediam para esculpir um marco quilométrico com os quilómetros a que ficava o destino mais próximo. Letra bem feitinha, a ser pintada depois. E os números que bem se entendessem, mormente nos hectométricos, a que só alguns ligavam importância, mas onde o canteiro se esmerava também: 1, 2, 3… E quanto se orgulhou ao gravar na parte arredondada de cima E. N. 2! Está bem, havia a de Lisboa ao Porto, a Estrada Nacional nº 1, mas esta era muito maior, de Faro a Chaves!... O país de lés a lés! E o canteiro sonhava: como é que seria Chaves? Dizem que há lá uma ponte romana!...

            Afamados, foram os canteiros de S. Brás para as pedreiras de Meknés, em Marrocos, no começo do século XX, com o apoio do vice-cônsul João Rosa Beatriz, e, a partir dos anos 40, para Cascais, onde introduziram novas formas de trabalhar a pedra.

            Canteiros de S. Brás, uma tradição, uma honra!

                                               José d’Encarnação

 Texto que figura numa das paredes da Casa Memória EN 2, em S. Brás de Alportel, espaço museológico inaugurado a 22 de Agosto de 2020.

O que é um churrião?

            Uma carruagem puxada por cavalos e que se destinava, sobretudo, ao transporte de pessoas. Um carro pesado, próprio para zonas plana.

            E sabia que havia um carro, também ele pesado, que transportava o azeite a partir dos lagares situados no interior para as fábricas de conservas de peixe das localidades litorais?

            E onde é que eu aprendi isso?

Panorâmica da exposição dos veículos de atrelagem 
          

          No Museu do Traje de S. Brás de Alportel! Uma das suas exposições permanentes é a dos veículos de atrelagem, uma colecção digna de ver. Para além d’As Engrenagens do Tempo, que é uma maravilha como se sabe e que nunca nos cansamos de ver, há a das casas agrícolas e, de modo especial, a mui adequadamente designada «terra de cortiça», um hino à actividade deste sector que guindou S. Brás aos píncaros da economia. Nela se podem apreciar pranchas de cortiça retiradas em períodos diferentes da vida da árvore, instrumentos de trabalho e assistir ao documentário, de 8 minutos, sobre o processo de preparação e transformação da cortiça.

           Tudo isto para dizer o quê? É que precisamos de sentir ainda mais nosso o nosso Museu. Lá se pratica ao vivo o que se tem designado por Museologia Social, ou seja, a inserção do Museu na vida local, porque a vida local também encontra no Museu incondicional apoio. Quantas associações não têm no Museu o espaço para as suas iniciativas? Não acolheu o Museu o projecto Palmas Douradas que tanto renome está a dar a S. Brás?

            Há, pois, que engrossar a corrente de simpatia para com esta entidade museológica, que (digo-o com conhecimento de causa, inclusive – perdoar-me-ão a nota – porque sou formado em Museologia) dá cartas a nível nacional por essa aproximação extraordinária, que privilegia, com a comunidade. Na ausência – não se sabe, infelizmente, por quanto tempo – de um Arquivo Municipal, tem sido o Museu do Traje a disponibilizar-se para receber recheios de casas em mudança de proprietários, documentos antigos, tudo o que possa ajudar a manter viva a nossa memória.

         E essa ‘corrente de simpatia’ tem de começar pela entidade que o detém: a Santa Casa da Misericórdia. Bem no sei: o Senhor Provedor tem mais com que se ralar, na gestão da pandemia; mas, assim como que para desanuviar dessas afeleações, pode, uma vez por outra, mudar o registo do seu pensamento para uma das suas valiosas pérolas – o Museu!

José d´Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], 20-09-2020, p. 13.

 

 

 

 

domingo, 18 de outubro de 2020

Às três pancadas

 Fora do meu ambiente e dos meus livros, cogitava eu no que poderia propor como tema minimamente interessante dentro dos meus limites, quando a senhora chegou. Pôs as moedas no distribuidor das bebidas e, perante inesperada falta de reacção, não esteve com meias-medidas: murro de lado, murro à frente, murro do lado esquerdo, e já se preparava para sacolejar o mecanismo, quando ele se decidiu entregar o manjar selecionado.

Lembrei-me que, na Instrução Primária, também umas pancadinhas acabavam por evitar calanzices. Crime de ofensa corporal, hoje! E não há pancadinha que se veja, a não ser essas nas máquinas renitentes e, até, por vezes, nos computadores - a lembrar-nos saudáveis gestos d’outrora!

As três pancadas sugeriram-me, porém, a frase corrente «às três pancadas», usada para significar algo que ficou desajeitadamente posto: o chapéu às três pancadas, a gravata às três pancadas, «Aquele, já sabes, faz tudo às três pancadas!»…

           Curiosa, portanto, esta acepção simbólica da expressão, enriquecida, aliás, com a enorme força mística e telúrica que encerra o número 3: toque dum lado, toque doutro e doutro... Já está!

Acho que este «A Retalho» pode ser, afinal, um bom exemplo de crónica... às três pancadas!...

                                                                       José d’Encarnação

     Publicado em VilAdentro (S. Brás de Alportel) nº 209 (Junho 2016).

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Aquele toque incessante…

             Saboreava eu frugal merenda. O Spike adormecera no chão, num respirar mui sereno. Aquele toque chamou-me a atenção no silêncio enorme da sala, que a serenidade exterior complementava. Nem um raminho do pitósporo bulia. Eram os segundos do relógio de parede. Um após outro, um após outro. Divertia-se o ponteiro, achei eu, a dar saltinhos a cada segundo que para mim deixara de existir.

            Dei comigo a pensar nos monges de antigamente. Havia as Laudes, logo pela manhã. Se calhar, ainda há, nomeadamente em mosteiros de clausura. Laudes, o começo da jornada, a louvar a alegria de estar vivo, de ter um dia pela frente. Cantavam as Vésperas ao cair da tarde. Vinham depois as Completas, a concluir o ciclo diurno.

            E lembrei-me do toque das ave-marias, a regular a labuta nos campos, do nascer ao pôr-do-sol, com a necessária pausa do meio-dia. Mesmo nos meios urbanos, os párocos fazem questão nesse toque das Trindades, como para lembrar que há tempo para além do tempo. Ao meio-dia, junta-se ao Angelus, em muitos sítios, o toque lancinante da sirene dos bombeiros. «Já é meio-dia, senhores?! Como o tempo passou depressa!».

            Ainda bem se a sensação é essa – que, para idoso num lar sem visitas nem gente que o possa acarinhar, dar-lhe a mão, fazer-lhe uma carícia e ele a sentir-se ainda gente… para idoso assim, que martírio esse lento e taciturno escorrer monótono das horas, pautadas somente pelo ritual das refeições…

            Tanto que tenho lido – e até escrito! – sobre o tempo, que, felizmente, desde moço me habituei a usar bem! No colégio, era meia-hora para as abluções matinais, dez minutos para o banho de chuveiro semanal, meia-hora para as ‘ocupações’… ‘Ocupações’: curioso nome dado às tarefas diárias, por que todos tinham de passar, a fim de perceberem como se faz.

            Lembrei-me, por isso, do anúncio do filme «Mãe Fora, Dia Santo em Casa», de Ludovic Bernard, que começa com o pai a dizer à mulher que ela é uma felizarda, porque põe os putos na escola e fica livre o dia todo. Ela tira, portanto, dez dias de folga e a família fica… sem mãe! Coitado do senhor, que nem calculava a quantidade de voltas que uma «dona de casa» (!) tem de dar! E ia deitando fogo à casa, o pobrezinho!...

                                                                                  José d’Encarnação

                Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 785, 15-10-2020, p. 11.

 

 

domingo, 4 de outubro de 2020

Palpites

              A Marta dava andamento ao processo que o patrão Vítor lhe estava a passar. Eu esperava, tranquilo, do outro lado do guiché. Viera entregar para abate a viatura que nos acompanhava há mais de 20 anos; era assim como a despedida de um ente querido, salvo seja! Deixei, pois, o pensamento voar, para me libertar do momento. E, de repente, o olhar caiu na folha A4 afixada mesmo na parte superior do vidro. À primeira vista, não percebi, porque me pareceu uma tabela de preços. O pensamento ainda não estava por completo ali. Exigi-lhe que voltasse e visse bem o que ali dizia, até porque, ao fundo, alguém escrevera com esferográfica this is a private joke! Uma «brincadeira»? Se é brincadeira, interessa-me, que, nesta maré de despedida, algo que me distraia é que vem a mesmo a calhar

            E decidi-me a ler essa TABELA DE PREÇOS, embora soubesse de antemão que não iria pagar nada.

              Mão de Obra por Hora 25,00 €

                Mão de Obra por Hora com observação de cliente 35,00 €

                Mão de Obra por Hora com observação de cliente e palpites do mesmo 45,00 €

            Não resisti a uma gargalhada e comentei com o Vítor e a Marta:

            – Que está bem apanhada esta, isso é que está! Assim como quem vai ao médico e se queixa disto e daquilo e aventa logo: «Dr., isto é apendicite de certeza! Ou, então, é o intestino cheio de pólipos e há cancro por i. Receita-me uma colonoscopia? Há três anos que fiz a última, preciso de a voltar a fazer, não acha?». E o médico ouve, ouve, ausculta o paciente, palpa-lhe delicadamente o abdómen, com uma vontade danada de lhe perguntar quem é o médico ali…

            Os palpites. Esses, numa consulta médica, são frequentes, que amiúde já se sabe o que se tem, de que medicamento é que se precisa… Agora, numa oficina de reparação automóvel, o mecânico observa dum lado e do outro e lá está o cliente a atrapalhar: «Se calhar, isso é tudo da centralina, que se desligou, já noutro dia me aconteceu a mesma coisa, a gente a pensar que era a bomba de água ou o veio de transmissão… É verdade, o Amigo já viu se a correia se partiu?...».

            Trata-se de uma brincadeira essa tabela, mas que encerra uma bela lição, isso é que encerra!

                                                           José d’Encarnação    

          Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 784, 01-10-2020, p. 11.