Foi apresentado no domingo, 19 de Setembro de 2021, o livro Um Anjo e Quatro Virgens, romance da autoria de José Luís Sabido, que já estava disponível desde 5 de Junho do ano passado, mas que, por via da epidemia, se não pôde apresentar na altura. Aproveitou-se o ensejo de, na villa romana de Freiria, se dar conta do livro Sustentabilidade (com os trabalhos premiados nos XIII Jogos Florais da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana), para se trazer também este a conhecimento público. É a 54ª publicação da Associação Cultural de Cascais e para ela tive ocasião de redigir este prefácio (p. 3-6):
-ismo, sufixo
perturbador!
É bem provável que, no período pós-corona,
voltemos a receber frequentes convites para o lançamento de livros. Queira-se ou
não, neles se espelhará, sem dúvida, o que, nesta fase de confinamento, perpassa
pelo ânimo de todos e de cada um de nós. Se forem textos redigidos agora. Os
anteriores reflectirão também outros pensares. Próprios e alheios. Alheios
feitos nossos. A nível individual ou colectivo. Experiências de cada um dos
autores – vividas, testemunhadas. Sempre a merecerem, porém, o comentário
oportuno, a reflexão.
O escritor, personagem dos seus
escritos. Pela forma como escreve, optando por esta palavra e não por outra.
Pelo tema que privilegia. Pelo olhar.
ooo
Não
é a primeira vez que José Luís Sabido se abalança a escrever.
Dele
se publicou, em 2003, Tires Terra de
Canteiros, onde desfiou, «assim a eito, memórias de tempos idos que, doutra
forma, a pouco e pouco se esfumariam na joeira inexorável da vida», como tive ocasião
de anotar no preâmbulo desse livro.
E
se Tires Terra de Canteiros foi ímpar
evocação do trabalho da pedra, Tires
quando eu Era Pequenino, de 2005, constitui retrato vivo das famílias da localidade,
entre 1944 e 1948. Histórias para não esquecer.
O facto de, em 1971, ter conseguido
emigrar para os Estados Unidos da América, após tentativas goradas, na década
de 60, para a África do Sul e o Canadá, deu-lhe a ideia de escrever Os Cavalos do Senhor Morgado, em duas
partes (publicadas em 2005 e 2008), a dar conta, romanceada mas candente, das
agruras vividas em Portugal, mormente pela classe operária, sob a ditadura
salazarista. A permanência na América não podia, em seu entender, deixar de ter
também o seu testemunho.
José Luís Sabido é assim. A vida não
passa por ele – é ele quem na conduz! Por isso, os seus «versos soltos»
incluídos na antologia Cinzelar as Palavras
como as pedras… em S. Domingos de Rana (Associação Cultural de Cascais,
2009, p. 43-52) falam de deus, dos crimes, da mentira, da guerra, do sem-abrigo
e… dos -ismos:
De todos os
muitos ismos
Resta-nos
apenas um
É o humano
egoísmo
É só ele e
mais nenhum!
Ismos,
sufixo das teorias baptizadas, das bandeiras de muitas lutas. Ele aparece aqui,
neste Um Anjo e Quatro Virgens –
título, de facto, estranho para um livro. Não é, como se verá, porque se trata
de um libelo contra o fanatismo religioso, totalmente desprovido do calor
humano, cego, implacável.
Vamos, então, viajar com José Luís
Sabido até aos Estados Unidos da América nas décadas de 60 e 70 do século
passado, aquando da guerra do Vietname. São nossos companheiros de viagem duas
famílias, uma imigrante lá há tempo, de vida organizada; outra que para lá vai
pela primeira vez, a fugir de eventual ida do filho para a guerra no Ultramar,
nunca andara de avião e, embora bem colocada na Baixa lisboeta, vai tentar amealhar
ali mais alguns cobres.
Pretexto, consequentemente, para
sabermos duma sociedade multi-racial, multi-religiosa (cá estão os -ismos!...),
assaz desigual e quase do «salve-se quem puder!». Não sem, de permeio, como
quem não quer a coisa, darmos uma espreitadela por aquela Baixa duma Lisboa em
que, na zona, todos se conheciam e confraternizavam. O tipicismo do compassado
apitar dos cacilheiros, o pregão do vendedor de cautelas, a taberna do galego,
o maço de três-vintes, o copo-de-dois
pedido por não haver moedas para o de-três…
Claro, teremos romance no verdadeiro
sentido do termo – paixões destroçadas, paixões reprimidas, ciúmes criminosos,
crueldades impensáveis… E romance policial por via disso, bem inteligentes
interrogatórios judiciais à mistura… O ambiente cosmopolita da 5ª Avenida, a
miséria do Bairro Harlem…
«Lugares-comuns», dir-se-á. Aceito.
Nem sempre, porém, o «lugar-comum» se consegue aninhar assim em linguagem
singela, despojada de pretensões literárias, onde, por exemplo, o titubear
entre o presente e o imperfeito do indicativo nos enlaça e nos torna
inevitáveis testemunhas duma acção plena de imprevistos e que, por essa razão,
nos prende do princípio ao fim.
ooo
Quando os drones
das televisões nos mostram o aeroporto de Lisboa transformado em assustador
parque de estacionamento dos aviões da TAP, entremos, pois, nesse mesmo
aeroporto, mas em 1971. Bem diferente do de muitos meses atrás; assaz diferente
do deste misterioso dealbar de 2020. As viagens, doravante, já não vão ser como
outrora; mas podemos matar saudades! Bem-vindo a bordo, amigo leitor! E faça
boa viagem!
Cascais, Páscoa de 2020
José d'Encarnação