sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Beatrix Cenci – o espectáculo

            Tecemos noutro lugar alguns comentários acerca da relevância do texto que a Doutora Graça P. Corrêa propôs – com dedicatória a Carlos Avilez, «amante intenso do Teatro» – para a peça «Beatrix Cenci», ora em cena no Teatro Municipal Mirita Casimiro, desde 13 de Novembro. Foquem-se agora dois ou três aspectos do espectáculo em si.
Deverá anotar-se, em primeiro lugar, que de um simples folhear dos textos de apoio ressaltará a noção clara de a Escola Profissional de Teatro de Cascais se poder vangloriar de ser bem fecundo alfobre de actores e, por outro lado, desse mero folhear há-de resultar a consciencialização de que – tanto no que se refere aos variadíssimos aspectos técnicos que tornam possível um espectáculo como à arte de representar em si mesma – estamos em presença de pessoas com larguíssima experiência e vasto currículo já, gente que não tem parado e vai de actualização em actualização, para nos fornecer, alfim, algo simples na aparência e que é, todavia, fruto de longo estudo e mui árdua preparação. Nesse aspecto, não é de admirar, por exemplo, que Carolina Faria, de 18 anos, formada em Agosto passado com a sua intervenção em «Os Gigantes da Montanha», integre já este elenco, na figura de Beatriz aparição.
Sim, são os actores que estão à vista; sabe-se, contudo, e nunca é de mais repeti-lo que o espectáculo se faz de som, som que não são apenas os trechos musicais sabiamente escolhidos para realçar uma passagem mas todo o conjunto de sons de ambiente; faz-se de luz, luz que ilumina ou que falta, ‘desenho de luzes’ é a bonita expressão ora usada (aqui pela mão de Fernando Baranda); faz-se de… vídeo! Nesta Beatrix, mui oportunamente se recorreu ao vídeo (obra de José Teresa Marques) projectado na pantalha ao fundo, para documentar as realísticas cenas de orgia perpetradas pelo conde em sua mansão ou para nos transportar a ambientes de mar, bucólicos ou de simples colorido a complementar a cena.
Tudo se passa, aliás, à nossa frente, como vem sendo hábito nos espectáculos do TEC. Não há pano de cena, não há pancadinhas de Molière, há luz que se apaga e cirurgicamente se vai acendendo. O espectador ‘está’ em cena, sem barreiras. E vem falar connosco Artemisia Gentileschi (Teresa Corte-Real), a pintora que, aos 6 anos, assistiu à decapitação de Beatrix. Nessa altura, gostávamos de ter um gravador ou a possibilidade de ler depois, nos textos de apoio ou em livro, esse ‘discurso’ ou esses discursos, veículos, se bem compreendi, usados por Graça P. Corrêa para trazer a cena à actualidade.
Encontra-se, em todas as peças teatrais, uma infinidade de pormenores que foram meticulosamente analisados, discutidos. Difícil, muito difícil se torna apanhar o significado deles, na sua maior parte. Por isso há, de vez em quando, mesas-redondas em que os intervenientes explicam por que razão seguiram esta e não aquela proposta. Postulava-se uma dessas mesas-redondas, a respeito desta Beatrix Cenci. Não digo tanto sobre a história em si e o que ela representa de feroz libelo contra o poder desumano da economia, do prestígio social, da religião, mas sobre a ‘leitura’ que ela implicou para chegarmos a este espectáculo, com esta dramaturgia e não outras, estas marcações e não outras, com este cenário e não outro, com este guarda-roupa (mão de Fernando Alvarez)… Pouco a pouco, no espírito do espectador, após a saída, haverá imagens que reteve mais do que outras, cenas que mais o impressionaram ou lhe proporcionaram encanto.
Ao ler algo do muito que se escreveu sobre a história de Beatrice Cenci, uma perplexidade terá surgido: como é que isto se passa para a cena? De uma forma brutal, sim, em provocação evidente e feia; mas sem o recurso fácil a cenas susceptíveis de chocar sensibilidades.
Veja-se, a título de exemplo, a forma realmente engenhosa e perfeita do ponto de vista cénico como se representou um momento da incestuosa violência sexual por parte do pai. Ele, de pé, hirto, olha sadicamente para a filha que, deitada à sua frente, estrebucha, grita, chora, clama!... E ele, impertérrito, sem palavras, esbirro. Mas no chão, ao lado, o servo mudo, Santi (muito boa interpretação de Francisco Monteiro Lopes), no estertor próprio de quem assiste ao acto…
É Renato Godinho – também ele antigo aluno da Escola Profissional de Teatro de Cascais e com muito trabalho desenvolvido já igualmente em cinema e televisão – quem incarna a figura do Conde Francesco Cenci. Um rigor levado ao extremo, na atitude precisa, na entoação adequada. Candidato sério, a meu ver, ao título de «melhor actor do ano». Acompanha-o muito bem Soraia Tavares, uma Beatrix muito segura do seu papel, a demonstrar bem quanto já aprendeu desde que iniciou, em 2009, os estudos na EPTC; encantou-nos com a sua voz, não só quando, em 2015, logrou chegar à semifinal do concurso «A Voz de Portugal», mas agora, ao interpretar uma ária da ópera que Berthold Goldschmidt apresentou, em 1949, sobre a história de Beatrice.
O drama «Beatrix Cenci» está em cena no Mirita Casimiro (Monte Estoril), até 12 de Dezembro, quartas e sábados às 21 horas, domingos às 16. O espectáculo, sem intervalo, tem a duração de duas horas e é para maiores de 14 anos.
 
José d’Encarnação

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O TEC festeja 56 anos com uma peça violenta

          Não resisti e fotografei o estado de lastimável decrepitude total do Teatro Rosa Damasceno, em Santarém. Uma punhalada. Aquelas janelas sem vidros, aquela arquitectura típica do estilo de Amílcar Silva Pinto, «modernismo radical» se lhe chamou, com muitos apontamentos da arte ‘deco’ próprios dos anos 30. Tudo em irreparável degradação. Como foi possível? E, por oposição, regozijei-me – que se me perdoe… – com os 56 anos, ora cumpridos, do Teatro Experimental de Cascais e com a vida do nosso Teatro Gil Vicente.

Grito doloroso servido em baixela

            Difícil resumir as emoções, os sentimentos, as reacções por que o espectador passa ao ver esta Beatrix Cenci, na versão da Doutora Graça P. Corrêa, que também assina a encenação e a dramaturgia.
            A jovem viveu no século XVI e permanece uma lenda, símbolo da resistência, até à morte, contra a tirania, consubstanciada na figura hedionda, cruel e desumana do pai, conde de linhagem.
            Chamo ao espectáculo «grito doloroso servido em baixela», por ser lancinante, difícil de aceitar, mas, ao mesmo tempo, a oportunidade para toda uma equipa, esmerando-se ao limite, mesmo arrostando com a apregoada – mas sentida! – ‘maldição’ de Beatrix, nos brindar com ele servido em baixela.
Do espectáculo em si se falará noutra altura. Quedemo-nos, por agora, no texto e no antídoto que ele pretende inocular. Sim, inocular. Era bom que inoculasse. Qual potente vacina contra todos os covides que nos ameaçam e perturbam.

Grito actual inoportuno?

            Na pasta de textos vêm, além dos currículos dos elementos da equipa artística, da equipa técnica e dos actores, a apresentação da autoria de Graça P. Corrêa («Beatrix Cenci em 2021»); quatro passagens alusivas a Beatriz Cenci na literatura (Charles Dickens, Herman Melville, Stendhal e Nathaniel Hawthorne); a transcrição do excerto de um livro de Graça P. Corrêa, em que analisa o livro de Percy Shelley, Os Cenci, do 1º quartel do século XIX, em cuja versão se inspirou para escrever esta peça; e, finalmente, breve trecho em que Ros Murray se refere à versão dramatúrgica desta história encenada por Antonin Artaud em 1935, interrogando-se se estaremos perante o «preâmbulo a um teatro da crueldade». De permeio, reproduções de quadros e de esculturas sobre o drama de Beatrix, a mostrar como, ao longo dos séculos, ele tem sido recordado. Aliás, como para exorcizar o espírito da jovem – que, reza a tradição, se passeia de cabeça decapitada nas mãos pela ponte de Roma, na noite anterior ao aniversário da sua execução – aí se pôs uma lápida a proclamar que, a 11 de Setembro de 1599, Beatrix ali foi «vítima exemplar de uma justiça injusta».
            «Para quê contar esta história tão pesada e agonizante numa época já de si tão conturbada e tortuosa, e que tão pouco tem de genuína alegria e luminosidade?» – pergunta Graça P. Corrêa. E responde:
«Para lembrar a opressão, vasta e entranhada. Para lembrar que a revolta é uma arma contra a injustiça. Para afirmar a liberdade luminosa da vida contra a mesquinhez servida pelo autoritarismo».
            Dói ver. Importa, porém, que se veja e se medite!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 340, 2021-11-24, p. 6.

 

 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O panteão documentado em Conímbriga II

          Religião, relação íntima do Homem com o Divino, constitui domínio de difícil penetração. Haverá construções destinadas ao culto; esculturas a representar divindades; objectos rituais… São, todavia, escassas epígrafes o documento primordial para se saber de divindades veneradas; limitado é, pois, o que se conhece do panteão romano em Terras de Sicó.
            Muitas epígrafes poderão vir a encontrar-se, por exemplo, nas paredes das casas de Condeixa-a-Velha. É que são árulas, de contexto privado, o que se tem – e é, de facto, um conjunto singular! Faltam-nos, porém, os textos oficiais, exarados, verosimilmente, em monumentos maiores que na muralha e nas paredes das casas da aldeia tiveram, seguramente, utilização privilegiada, esquecidos os homens do significado dos estranhos dizeres!
Notável, porém, esse conjunto de pequenos altares domésticos, em que, a par do deus maior, Júpiter Óptimo Máximo, se homenageiam divindades que mais se prendem com devoções particulares: Minerva, os Lares sob diversas invocações, Liber Pater, Aqua (!)… E até as dedicatórias ao Génio de Conimbriga e à cidade em si (considerada como algo de sagrado, porque tem Lares a protegê-la), parecem ter resultado mais de um acto pessoal sem envolvimento de hierarquias.
Júpiter Conimbricense?
           Propôs Robert Étienne que, no altar dedicado por um indígena – Tangino, filho de Tongina – a I. O. M. C., o C final, em vez de Conservatori como noutros locais acontece, significasse C(onimbrigensi) ou C(onimbrigae). O deus maior dos Romanos, Júpiter Óptimo Máximo, assumiria, desta sorte, roupagem local, à medida dos Conimbrigenses… E tal não seria de admirar, pois que temos também dedicatória Flaviae Conimbrigae et Laribus eius, «à Flávia Conímbriga e aos seus Lares». O culto da ambiguidade era aliciante para o Romano, como o é, nos nossos dias, para os publicitários… Assim, em sigla, terá sido deixado de propósito: cada qual entenda como quiser…
Temos, todavia, uns Lares das Águas (Lares Aquites), estranha designação que acentua esse carácter autóctone que as divindades depressa por Terras de Sicó assumiram e reivindicaram. E davam-se-lhes graças por, vinda de Alcabideque, água, de facto, não faltava! Aliás, decerto também devido a esse acentuado localismo, um dos pequenos grupos étnicos, os atrás citados Lubancos, quis ter Lares próprios…
Lugar à parte pode merecer uma dessas árulas mais mimosas, a que já aqui nos referimnos: a que Valério Dafino, porventura um liberto, dedica Libero Patri, «o Pai Líber», deus itálico da fecundidade, assimilado a Baco. A expressão Liber Pater, além de parecer mais ‘familiar’, abarca um significado maior: a fecundidade, entendida não apenas no sentido próprio de perpetuação da família através de novas e saudáveis gerações, mas também numa acepção mais ampla, a da prosperidade: próspero é o que vence obstáculos, aumenta o seu prestígio, goza o seu bem-estar… Que melhor bênção haveria de querer Valério Dafino?!
Ocultas (por enquanto, creio) a nossos olhos as solenes dedicatórias maiores, apetece-nos, pois, ficar assim aconchegados a númenes protectores, muito nossos, desprovidos de galas sumptuárias!... Por Terras de Sicó!

                                                                    José d’Encarnação

Publicado a 16 de novembro de 2021 no blogue dos amigos de Conimbriga:

https://laconimbriga.blogspot.com/2021/11/o-panteao-documentado-em-conimbriga.html

 

Emanuel Sancho reconhecido

            Em cerimónia realizada, a 29 de Outubro, no Museu da Marinha, em Lisboa, Emanuel Sancho recebeu – juntamente com Anísio Franco, Francisco Clode e Isabel Victor – o PRÉMIO «Museólogo do Ano» 2021, galardão que lhe foi concedido pela Associação Portuguesa de Museologia.

            Recorde-se que o Presidente da Direcção desta Associação, Dr. João Neto, director do Museu da Farmácia, se deslocou não há muito tempo a S. Brás, a fim de ver in loco a situação do Museu do Traje, o trabalho aí desenvolvido com tão escasso material humano (dizem-me que terá apenas três funcionários!) e, sobretudo, o enorme papel que está a desenvolver, apesar de tudo, em prol da integração cultural de toda a população são-brasense, nomeadamente da numerosa ‘colónia’ estrangeira. E terá ficado muito satisfeito com o que viu; daí, o galardão concedido a quem – depois dos venerandos irmãos Cunha, sacerdotes que foram os motores da criação do Museu – tem logrado manter a instituição com actividade cultural de relevo.

           Na ausência – espero que bem provisória – de um arquivo municipal capaz de arrecadar objectos que as novas gerações herdaram dos antepassados e não sabem que lhes hão-de fazer, os quais – queiramos ou não – constituem memórias ímpares da nossa identidade, Emanuel Sancho tem procurado arranjar espaço para guardar todos os espólios antigos a correr risco de abandono e deterioração. Uma actividade, também essa, deveras meritória, a necessitar do maior apoio por parte de entidades públicas e privadas.

          Como museólogo e como são-brasense, sinto orgulho no lugar cimeiro a que, por exemplo no âmbito da chamada Museologia Social, o Museu do Traje, por via do empenho de Emanuel Sancho, logrou alcandorar-se.

Honra ao mérito!

 

José d’Encarnação                     

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 300, 20-11-2021, p. 13.