A história é
bem conhecida. O trabalhador faz o buraco no passeio com todo o seu cuidado,
afunda-o quanto lhe parece necessário, enquanto o colega o observa atentamente.
Acabada a tarefa, descansam os dois, para fumar um cigarrinho. Uns dez minutinhos
depois,. o primeiro avança uns dez metros, começa a levantar a calçada, os pequenos
paralelepípedos um a um, sem pressas, e o outro pega na pá e encarrega-se de
tapar o buraco, ajeitando o melhor que pode as pedras retiradas. E assim por
diante. Um dos vizinhos fica intrigado e não resiste a perguntar:
– Não percebo.
Então você abre e o seu colega fecha, assim sem mais nem menos?
– Sabe, amigo,
é que nós somos três: eu abro o buraco e aqui o meu camarada tem por obrigação
tapá-lo. Aconteceu que o nosso camarada encarregado de trazer as árvores para
plantar ficou com covid e telefonou a dizer que não vem.
Pois.
Amiúde nos
interrogamos, por exemplo, com as equipas de arranjo em postes elétricos ou de
telefone: vêm três ou quatro, um sobe ao poste, os outros ficam em baixo a ver
se tudo corre bem.
Admirei-me, há
anos, quando vi chegar a equipa de um canal de televisão que vinha gravar imagens
para o indicativo de uma série. Uma caterva! Um era o motorista, outro pegava
nos cabos, dois eram os câmaras, eu dava opiniões, a realizadora da série dava
ordens, um outro segurava nos holofotes... Compreendi, então, ao vivo, o que significa
o bem longo rol de pessoas que compõem a equipa duma gravação, por mais singela
que seja.
O mundo das
competências e da especialização cada vez mais importante e necessária e compreensível.
Sabe-se, por
outro lado, quanto importa, hoje, passar por diferentes estádios, a fim de
ganhar múltiplas competências. A constante rotatividade de pessoas de um serviço
para outro numa instituição (agora, ficas de rececionista, amanhã dás apoio a
consultas, depois de amanhã atendes na secretaria…) constitui norma geral, que já
não causa perplexidades.
Aplicada,
porém, às competências de entidades, essas regras mudam de figura e causam-nos
mais estranheza, porventura, do que ao vizinho que vira os abre e tapa buracos,
na medida em que (e a imagem, nesta Primavera de 2022, poderá ser bem pertinente!)
insistentemente se proclama «Em tempo de guerra não se limpam armas!», que é como
quem diz, usando outro aforisma, «para grandes males grandes remédios».
Quando,
por exemplo, é a preservação dum património cultural relevante que está em
causa, todas as boas vontades se devem ajuntar. Assim aconteceu em Cascais, onde,
depois de longos anos de negociações (algumas ainda em curso), os fortes da
orla marítima, já há muito desafectados das suas funções militares e em risco
de ruína, foram, pouco a pouco, entregues pelo Património do Estado ao
Município e a outras entidades, como a Faculdade de Ciências para instalação do
prestigiado Laboratório Marítimo da Guia, outrora chamado ‘do Museu Bocage’ e
agora pólo do MARE – Marine and Environmental Sciences Centre. Pode ver-se uma
panorâmica dessa reutilização em http://hdl.handle.net/10316/24359
Podes,
porém, um dia receber uma carta assim:
«Suponho
que te recordes de há cerca de um ano te ter perguntado se aceitarias participar
num júri de catedrático aqui na Universidade. Infelizmente, fomos obrigados a
alterar a composição desse júri, porque o decreto lei que saiu em Dezembro para
progressão na carreira obriga a que os júris tenham equilíbrio de género... Assim,
para que isso aconteça, diminuímos o tamanho do júri, saindo homens, neste caso
os homens já reformados/jubilados e eu próprio. Quero, por um lado, pedir-te
desculpa desta alteração e, por outro, agradecer-te a disponibilidade que
mostraste para este concurso, bem como para outros anteriores».
E
porventura comentarás: «Estranho mundo este em que, por cega obediência a modas
a ganhar estatuto de lei, o critério do género
prevalece sobre o da a competência!...».
Castro Verde
Passei
por Castro Verde, vila a que, em meu entender, pese embora a sua escassa
população (isso dos votos é sempre um problema…), importa dar maior atenção.
Há a campanha para
atribuir uma classificação de valor universal à sua Basílica Real, para além de
já ser monumento nacional:
«A
escala grandiosa do edifício projetado por João Antunes, célebre arquiteto das
ordens militares de Santiago e Avis, torna-o numa referência marcante na
silhueta urbana, visível à distância. Mas o monumento é igualmente notável pelo
seu património integrado e móvel, com destaque para os ciclos de azulejaria e
pintura mural – nos quais se exalta a importância nacional daquele acontecimento
bélico –, os altares de talha dourada e policromada e o imaginário mariano» –
escreveu-se no texto de publicidade.
Pelas
suas características ímpares, o território castrense foi classificado pela UNESCO como Reserva Mundial da Biosfera – e é
um encanto ver as abetardas e passar pelo Centro de Educação Ambiental do Vale
Gonçalinho, o ai-jesus da Liga de Protecção da Natureza.
No
entanto, para além do Museu da Ruralidade – cuja visita também se impõe – há em
Castro o Museu da Lucerna. E é este último que sofre na pele, digamos assim, os
malefícios do jogo das competências.
Aconteceu
que em Santa Bárbara de Padrões se encontraram centenas de lucernas romanas votivas.
Um espólio único, a que o casal Maia – como nos habituámos a chamar aos
saudosos Maria Adelaide Maia e seu marido Manuel – prestou a devida atenção, não
apenas através da publicação, em 1997, pelo Núcleo de Arqueologia da Cortiçol, do
livro Lucernas de Santa Bárbara, da autoria justamente de Maria Garcia
Pereira Maia, mas sobretudo pela criação desse Museu da Lucerna, já de renome
internacional, como é sabido. Aí se mostram dezenas de lucernas, das centenas dos
mais variados tipos e decorações, que há em depósito, além do chamado signário
de Espanca, um documento único da «escrita do Sudoeste».
Sobejamente se tem reconhecido
a relevância histórico-arqueológica da zona, quer pelo valioso espólio
arqueológico que se dá como aí tendo sido encontrado (http://hdl.handle.net/10316/31736),
quer por estar a ser cada vez mais consentânea a hipótese de que foi,
porventura, em Santa Bárbara de Padrões que se localizou a cidade romana de Arandis
ou Arannis, que consta de repertórios antigos. João Pedro Bernardes teve
ocasião de o demonstrar no artigo «A propósito da localização de Arannis/Arandis»
(Conimbriga 45 2006 153-164). Aliás, não
é por acaso que está em Castro a Extensão de Arqueologia da Direcção Regional
da Cultura do Alentejo!
E que
tem a ver Castro Verde com o preâmbulo em que se falou de buracos e de competências?
Nasceu
o Museu da Lucerna da iniciativa da Cortiçol – Cooperativa de Informação e Cultura,
a que, desde o início, a Somincor – Sociedade Mineira de Neves Corvo, S. A., empresa
concessionária das minas de Neves-Corvo, não regateou mui lúcido apoio. Ora, a
sua manutenção e, sobretudo, o seu desenvolvimento vão requerer que se sentem à
mesa as entidades que poderão, em conjunto, ter competência para o efeito: a
Cortiçol, a Direcção Regional da Cultura e a própria Câmara Municipal. Um ‘assento’
que não pode tardar, como se compreende.
Ilustração de J. L. Madeira | |
Toda a glória, beleza e alguma incerteza (terrena) que paira nas estrelas! | |
O
Museu da Lucerna constitui, na verdade, um dos muitos casos que, por esse
Portugal afora, haverá – numa espera, sempre longa de mais, de que as competências
se deslindem e assumam.
Um
dos encantos do Rio Grande do Sul, no Brasil, são as «colónias» espalhadas pelo
seu interior, redutos da ‘colonização’ aí concretizada pelas sucessivas levas dos
que, do interior da Europa flagelada pela II Grande Guerra, ali buscaram
refúgio. Outro, quiçá pouco conhecido, é o facto de, num recanto desse estado
brasileiro, se falar o pomerano,
uma língua baixo-saxónica
que já nem é falada na região do Mar Báltico donde fugiram as gentes e que, no
Brasil, capricharam em manter a sua língua nativa.
A evocação do pomerano e das ‘colónias’
que houve ensejo de visitar, em Maio de 2008, por ocasião do VI Encontro Nacional de
História Antiga, organizado pela Universidade Federal de Pelotas, surgiu-me porque
nos movimentamos sempre, queiramos ou não, pelos meandros duma memória a
preservar. Por outro lado, de então me ficou a suave imagem duma das colónias, a
São Manoel, onde se instalaram, em 1883, imigrantes de origem italiana; aí,
no Moinho Gottinari ou Templo das Águas,
Martha e Marco Gottinari ajeitaram amplo labirinto no meio do canavial que bordeja
sussurrante arroio em cachoeira. Davam-se voltas e voltas e lograva-se, por
fim, encontrar a saída!...
Que para o Museu da Lucerna – e para tantos outros casos idênticos em longas
expectativas de mui desencontradas competências – depressa se dêem as necessárias
voltas e se encontre uma saída feliz!
José d’Encarnação
Publicado em Al-madan on line, tomo 2 do nº 25, Julho de 2022, p. 6-8.