quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Fazer meia

            Poderá parecer estranho dedicar uma crónica a este tema.

Explico-me. É que, de manhã, ao calçar as meias (ou peúgos ou peúgas, como também se diz), me ocorre amiúde e saudoso o tempo em que minha avó Bia dos Santos me pedia para, os dois bracinhos estendidos para a frente, eu segurar a meada de linha que ela comprara, a fim de, balançando-os ora para cima ora para baixo, ela conseguir, em movimentos de vaivém, fazer o novelo bem redondinho. De vez em quando, a linha lá se empeçava e era preciso dar duas ou três voltas na meada para tudo voltar ao normal.

Sentia-me útil, sentia o calor da minha avó – e era um momento doce e enlevado. Ao serão, por entre histórias, a que não faltavam lobisomens e encruzilhadas, lá eu via as duas mãozinhas enrugadas, mas lestas, com as duas luzidias agulhas de barbela, enfia em baixo, passa por cima, uma paragem de vez em quando para medir e ver se já estava na altura de fazer o calcanhar... E eu admirava. Mais tarde, iria calçar umas dessas meias feitas por minha avó!...

Decerto se compreende já a razão de ser da crónica: para recordar palavras concretas; para juntar a etnografia à tradição; para evocar bem saudáveis momentos de avós e netos, em que tanto se aprendia!...

Aliás, assim de repente, ¿quantas das nossas crianças, hoje, compreendem cabalmente o significado e a ternura e a sabedoria que se desprendem destas quadras populares?

 

Nossa Senhora faz meia

A linha é feita de luz

O novelo é lua cheia

E as meias são pra Jesus

 

Uma meia meia feita

Outra meia por fazer

Diga lá, minha menina:

Quantas meias vêm a ser?

 

¿E distinguir as diferentes dificuldades que envolvem fazer o pé da meia e arranjar um bom pé-de-meia?

Tem S. Brás mui louvável Centro de Artes e Ofícios. ¿Que tal a ideia de organizar um concurso ou serões de fazer meia, com avós e netos? ¿E professores de Língua Portuguesa a ensinarem essas palavrinhas tão nossas?

José d’Encarnação    

            Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 313, 20-11-2022, p. 17.

 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Pingam as goteiras…

            Pingam as goteiras no telheiro. Completamente descompassadas. Não sei bem se já não chove e é o resto d’água acareado nas telhas ou se continua a chover. O som das pingas continua descompassado, intermitente, não é de aguaceiro nem de chuva forte.

Em tempo de guerra como é o nosso, embora dela pensemos estar longe, o matraquear das gotas lembra matraquear de metralhadoras.
É bom estar no sossego do lar, sem necessidade de sair para compras, para ir buscar comida, para nada. Bom ter um lar. Abrigo.
Ainda ontem à noite passei por um. Tinha um chapéu de chuva aberto e aconchegava-se à parede, embrulhado em manta coçada. Todas as noites que por ali passo, eu vejo o vulto. Sem-abrigo? Guarda da obra em frente? Por que carga d’água estará ali tantas noites? Ainda não tive coragem de parar e perguntar-lhe.
Tenho os pés quentes nas pantufas que há dias me ofereceram. Sinto a macieza da carpete que imita tapete persa. Bruxuleia ali, bem azulinha, a minichama do aquecedor, alaranjando a grelha em brasa. Hirtas, em duas esquinas do pilar da sala, duas longas esculturas de madeira são gatos estilizados. Hieráticos. Um tem olhos verdes e bigodes sobre o focinho rosado. Não sei que me quer dizer. ¿Que eu tenha paciência? ¿Que encare a vida com serenidade? Talvez.
            O Spike veio pedir-me para ir à rua. Disse-lhe: «Está a chover, o dono já vai contigo!». Deitou-se, tranquilo, a meus pés.
Creio que os pingos-metralhadora já se calaram. E vou espreitar a noite com o Spike. Creio que estamos em quarto crescente, mas as nuvens não me deixarão ver a lua. E tenho de olhar bem para o chão, não vá encharcar os sapatos nas poças.
Respira tranquilo o Spike. Sabe esperar, de cabeça apoiada no chão. Levantou-se agora, olha para mim: «Vamos?». Vamos.

                                                                                               José d’Encarnação

        Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 835, 15-12-2022, p. 11.



sábado, 3 de dezembro de 2022

Museu Verdades de Faria

            Não há museu dominante na minha memória. A palavra traz de imediato e de supetão uma caterva deles e há que dizer-lhes: «Esperem aí um bocadinho para eu arrumar ideias!».

            O primeiro, sem dúvida, o Museu-Biblioteca dos Condes de Castro Guimarães, o da minha juventude. Não só pelo ar de casa senhorial que sonhadoramente se desprendia, romântico, daquela fortaleza, ao pé daquela língua de mar plantada, mas porque sabia bem, pelas tardes frias, sentir o calor fagueiro daquela lareira na sala de leitura, onde se estudava pelos livros que só ali se podiam encontrar. Guardo ainda, religiosamente, os dois cartões de leitor: o da biblioteca fixa e o da móvel. Mensalmente a carrinha parava ao pé de minha casa, num lugarejo dos arredores da vila, e ali me deixava Júlio Verne, Emílio Salgari. Júlio Dinis, «As Vinhas da Ira», «Olhai os Lírios do Campo», as grandes biografias…
            O segundo, o do Mar, também de Cascais, por me haver empenhado a fundo na sua criação. Se se proclamava ser «terra de reis e pescadores», os reis haviam partido, mas a tradição piscatória urgia preservá-la! Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora de Porto Seguro –integravam os seus templos a paisagem histórica da vila.
            O terceiro, o da minha terra natal: o Museu do Traje de S. Brás de Alportel. Só bastante mais tarde dele tive conhecimento; hoje, não me canso de o admirar, pela distinta e pioneira concepção museológica de que o seu responsável, Emanuel Sancho, o impregnou: arquivo das memórias locais, sempre pronto a acolhê-las; ponto de encontro da comunidade local, a indígena e a estrangeira que escolheu S . Brás para viver. Ambas sentem o museu como seu, o ponto de encontro privilegiado!
Importa, porém, escolher um para a visita de hoje. Escolho o Museu Verdades de Faria. Na verdade, visitá-lo proporciona sempre uma viagem. Fugimos ao corrupio quotidiano e de pronto nos embrenharmos noutra dimensão.
Sim, surpreende-nos o seu ar apalaçado, altaneiro, Torre de S. Patrício lhe chamaram os primeiros proprietários. Contudo, situado numa encosta quase no topo norte da Av. Saboia, em pleno coração do ridente Monte Estoril, romanticamente integrado, também ele, em parque de frondosas e mui variadas árvores, o edifício convida mesmo àquele sossego de saborear a vida, na vontade de que os minutos escorram lentos, no embalo do gorjeio de pássaros e de fontes, na concha abrigada dos recantos de que o bom gosto de princípios do século XX sabia entretecer a vida.
Nasceu a casa do pensamento artístico de Jorge O’Neil, o mesmo arquitecto que gizara a dos Condes de Castro Guimarães. Mas, enquanto ali é o mar que importa, aqui, arejada pela brisa da serra, do alto da torre a vista se espraia pelas lonjuras do estuário do Tejo até ao dorso da Serra da Arrábida, a morrer no Cabo Espichel…
Por disposição testamentária de Henrique Mantero Belard, aceite na sessão de 24 de fevereiro de 1975 da Comissão Administrativa do Município de Cascais, o imóvel passou a ser municipal, na condição de ali se fazer casa-museu com o nome da esposa do doador, Verdades de Faria. O parque anexo, de 5000 metros quadrados, transformado em jardim, seria para mui serena fruição por parte da população.
Uma casa que vale por si!
            A casa vale por si. Azulejos de rodapé, com as habituais cenas do quotidiano em praticamente todas as salsa; aquela singular casa-de-banho em que, mesmo entrando, só a custo se descobre onde está a sanita; os azulejos distorcidos a acompanharem quem sobe a escadaria; o bucólico e fresco pátio interior, com sua fonte a meio, num convite à leitura e à meditação…
Optou-se por aí se erguer o Museu da Música Portuguesa, sobretudo porque a Câmara adquiriu o espólio de Michel Giacometti, o conhecido etnomusicólogo que escolhera Cascais para viver, espólio que Fernando Lopes Graça não hesitou em enriquecer cedendo o seu. Dois legados ímpares!
Não admira, pois, que paulatinamente duas linhas de actuação se hajam imposto: centro de investigação de Musicologia e, por outro lado, os saraus musicais, os concertos, os encontros musicais passaram a fazer parte da sua imparável programação.
Assim, às melodias que, ao longo dos séculos, homens sábios souberam compor para nosso deleite e deles, unem-se agora, com frequência, as que às aves do parque o Criador maravilhosamente soube ensinar.
Não enjeito (longe de mim!) os outros três museus; compreende-se, no entanto, que a visita pausada ao Verdades de Faria – para uma exposição, para um concerto ou, até, para saborear os acepipes de um ‘pôr-do-sol’ a rematar encontro científico ali realizado – seja de me encher as medidas!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado na revista Zeus (V. N. Gaia), Ago/Set 2022, p. 70-71. Na rubrica «Museus da minha memória».

 
Sanfona - que foi peça do mês

Uma das muitas iniciativas do museu


sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Conceito e restauração

            O restaurante continua a constituir um dos equipamentos imprescindíveis no dia-a-dia. Se já antes se recorria ao procedimento do take away (levar para casa), os tempos pandémicos tornaram este expediente quase banal e foi – deve dizer-se! – uma forma de muitos restaurantes não encerrarem definirem as portas.
Passado o período do maior contágio, eis que a ida ao restaurante se encarou de imediato como forma de espairecer, de sair, de conviver!
Sempre a refeição se apresentou, de resto, não apenas como ‘necessidade’ mas, de modo especial, qual imprescindível meio de cimentar comunidade. Não estabeleceu Jesus Cristo a ceia como momento fundamental da Sua vida? Não é com uma boda que se celebra o casamento? ¿Não vem de longe – mormente do tempo dos Romanos – o hábito de, no dia de aniversário da morte, se evocar o morto com um banquete funerário, de que temos, aliás, inúmeras representações pictóricas e em baixos-relevos de sarcófagos?
Não admira, pois, que ser «chef» (sim, tem de ser em francês…), sobretudo se distinguido com estrelas Michelin, se antoje como meta deveras almejada e que, concomitantemente, se aplique ao serviço, em restaurantes, a palavra «conceito», amiúde ligada à noção de «gourmet» (a língua francesa de novo a dar cartas).
O vocábulo «conceito» reúne em si todo um conjunto de opções pretensamente inovadoras, passíveis de proporcionar originalidade. Acontece que nem sempre «original»  equivale a «conforto», a «eficácia», mas… utilizámos um novo ‘conceito’, ¿não utilizámos?
Sabe-se que «gourmet» significa ‘guloso’, ‘gourmandise’ é… guloseima! Conhece-se também o rifão popular «Os olhos também comem!». Daí, o conceito – em que a apresentação, o empratamento se guindam a protagonistas da cena! Até a loiça se escolhe a dedo, para melhor se adequar ao conceito pretendido.

Tenho na minha, porém, que três elementos fazem e mantêm um restaurante: o ambiente físico, a atenção do pessoal e a boa confecção dos pratos. O demais adiciona mas não substitui. Alguém me confessava, há dias: ter um restaurante é uma arte que se quer agradável; gulosa, sim, mas apetecível e reconfortante. O pessoal de serviço detém na cena – ele, sim! – o papel fundamental, na atenção máxima a todos os pormenores, de todas as mesas a seu cargo, da globalidade da acção. Compreende-se, por isso, que haja tão poucos a quererem abraçar tal profissão!

                        José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 834, 01-12-2022, p. 12.

Post-scriptum: a imagem pode ser boa explicação para a ideia de... 'conceito':



domingo, 20 de novembro de 2022

Fezes sem mezinha!

            Apetecia-me pôr acento grave no e, contra todas as regras; mas não é preciso, que o z tudo esclarece. Quero, porém, que se distinga bem de ‘mesinha’, palavra que evoca aconchego, enquanto mezinha nos leva para o lado menos agradável da vida, ainda que envolto naquele manto suave das coisas meio ocultas, a sabedoria dos nossos antepassados, o recanto onde, um pouco às escondidas, a senhora de virtude esconjura os maus espíritos…
Atenho-me às fezes, salvo seja!
  Foto de Matic
Ó homem, nem queiras saber, o moço só me dá fezes! E fezes sem mezinha, essas, sem mezinha!
Estamos, pois, no sentido figurado da palavra, bem conotado, no entanto, com o que de menos agradável as fezes têm – e, por isso, sempre as queremos expulsar e preocupados ficamos quando começamos a sentir que as maganas não querem.
Surgiu-me a curiosidade: donde vem a palavra «fezes»? Donde vem a palavra «mezinha»?
Pasmei.
Deriva a primeira do latim ‘faex’, que tem o plural ‘faeces’. Ora, em latim, ‘faeces’ são as borras do vinho ou do azeite, o resíduo de qualquer coisa, o sarro do vinho, o depósito que fica no fundo da garrafa. O termo ‘fecal’ vem daí. Também pode ser (abrenúncio!...) uma pintura para a face!...
Fiquei esclarecido. E encantado também, por o povo saber, mesmo no seu dia-a-dia, sem estudos, usar imagens literárias prenhes de significado. Que piores ‘fezes’ pode haver senão… as verdadeiras? Daí que, amiúde, para elas, no linguajar quotidiano, a uma pessoa apeteça mandar a outra para lá!...
Vamos, então, à… mezinha!
E também pasmei, porque ‘mezinha’ vem do latim ‘medicina’. Ou seja (e os senhores médicos que se aguentem no balanço!), o medicamento por excelência! E há um pormenor não despiciendo: é que o significado primeiro de mezinha é… «líquido para clister»! Daí a sábia junção popular entre ‘fezes’ e ‘mezinha’ e a riqueza semântica (diriam os eruditos!) da frase «Aquilo são mesmo fezes sem mezinha»!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 311, 20-10-2022, p. 13.

 

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Uma hora de borla!

             E logo apareceu a imagem do Primeiro a anunciar, sorridente, que, esta noite, Portugueses, ofereço-lhes uma hora de borla! 
            Perante, de facto, tantas promessas com que o Orçamento de Estado para 2023 se albarda, muitas das quais não vão passar disso mesmo, de «promessas», esta, em possível noticiário, no lusco-fusco de sábado, 30, até poderia apanhar alguém desprevenido. Cedo reconheceria, porém, que se não tratava de dádiva nenhuma, porque a mesma mão que ora a dava, em 26 de Março, sem alvoroço, no-la roubaria sem tir-te nem guar-te!

            Talvez, no entanto, a gracinha não seja tão inocente assim, pois encarreira com milhentas outras que, mui serenamente, albardam também elas o nosso dia-a-dia.
            A tua seguradora, sempre que vais a uma consulta médica e usas o cartão, rapidamente te envia uma mensagem:
            – Já reparou que, ao usar o nosso cartão para a consulta, poupou 20 euros?
            A mensagem vem de endereço que não permite resposta. É o que lhes vale, porque apetecia retorquir-lhes:
            – E esses escassos 20 euros que ora poupei, os únicos que lhes gastei neste mês, que são em comparação com a mensalidade de 217,58 € que já lhes paguei? E é todos os meses que eu vou a consultas, é?
            Também os senhores do supermercado de que tens cartão, logo após cada compra não esquecem de te dizer: «Com o uso do cartão já poupou 2315,90 €». E, em cada compra, lá vão mais uns cêntimos para o cartão. Pois, para o cartão. A descontar na próxima conta. Assim como pescadinha de rabo na boca…
            E já que estamos em maré de compras, quão aliciante está a ser o 9! Não, isso não custa 5,00 €, custa 4,99 €! Não, esse molho de espinafres custa-lhe apenas 1,99 €! E um pão saloio fatiado de 850 g? 3,19 €! Nada de zeros! Nada de perniciosos arredondamentos, ná!
           Outro dia, numa entrevista rápida de noticiário televisivo, uma velhota não teve pejo em proclamar: «Isto ninguém dá nada a ninguém!». Mesmo quando dás um beijo, a tua expectativa é que venhas a receber outro; se não, da próxima vez, não dás, pronto!...
          E já os Romanos tinham a frase do ut des, «dou para que tu me dês!». Mesmo em relação aos deuses, imagine-se! – «Eu ofereceu-te isto, deusa, e agora o assunto fica do teu lado, ouviste?».

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 833, 15-11-2022, p. 12.