sexta-feira, 19 de julho de 2024

Gorpelha

            Sempre me encantou a gorpelha.
Desde pequeno.
O jeito de se fazer em palma aquele sacão enorme que se punha sobre a albarda do animal – o burro, a mula… – assim a modos dos alforges.
Só que os alforges tinham um ar mais feminino, feitos (parecia-me) de retalhos coloridos, e serviam para lá pôr, dum lado e doutro da albarda, coisas delicadas, que a senhora comprara na feira. E sobre os alforges por serem de pano, podia a senhora sentar-se de lado, sem problemas de segurança.
A gorpelha, não. Ainda que obra de mãos femininas, claro, era objecto para ser manuseado por mãos calejadas. Lá se transportavam as alfarrobas. Menos as amêndoas que sempre me lembro de as ver em sacas, que amêndoa exige mais delicadeza de trato. Alfarroba, não. Tem casca rugosa, é comprida e ajeita-se bem na gorpelha. Também o feno. Acho que me lembro de se pôr feno na gorpelha. Feno e folharasca para a cama das bestas.
Grande invenção a gorpelha!

            E, portanto, além de ter pedido ao Emanuel Sancho que, da sua preciosa colecção, me cedesse uma foto ilustrativa (aí vai!), fui investigar a origem do nome.
Dir-me-ão logo que é golpelha que se escreve e não gorpelha. Esclarecerei que há as duas formas. Golpelha é mais difícil de pronunciar, até porque duas sílabas seguidas com l (gol e pelh) a gente gosta logo de fazer a dissimilação e mete o r. Acrescentar-se-á que, do ponto de vista etimológico, da origem da palavra, gorpelha (com r) é que está correcto, porque deriva da palavra latina «corbicula», que se encontra registada na obra do agrónomo latino Paládio (livro 3, 10.6), com o significado – imagine-se! – de «cesto pequeno». De pequeno passou a grande no Algarve (as manigâncias que a língua traz!...); e o «b» passou a «p», que é mais fácil de pronunciar.
            Anote-se: a, por vezes, indicada, origem da palavra a partir do latim «vulpicula», ‘raposa pequena’, não pode ser senão… anedota! Quanto a ser de esparto, não nego que possa ser; eu sempre a vi de empreita. Quanto a servir para transporte de fruta, amigos, vocês acham?

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 332, 20-07-2024, p. 13.

 Post-scriptum: a fotografia gentilmente enviada por Vítor Barros:



quinta-feira, 18 de julho de 2024

Vadiar

            Confessava, há dias, a um amigo a minha enorme costela de preguiçoso: procuro sempre escolher os caminhos mais fáceis, dou vazão quase imediata aos assuntos simples… «Este já está! Vamos a outro!». A pessoa fica aliviada e pode preguiçar um pouco antes de se meter noutro embaraço.
            Desse amigo recebi, em resposta, uma frase lapidar:
«A preguiça é um direito para quem trabalha!».
            E mais preguiçoso fiquei.
            Porventura, mais consciente de que muita razão tinham os Romanos, quando procuravam conciliar o ‘otium’ com o ‘negotium’, um o contrário do outro, para contrabalançar.
            Por isso me alegrei esta semana, ao receber carta de uma colega brasileira: aposentada há já algum tempo, está agora com um dos filhos a descobrir, finalmente, a terra italiana donde seus antepassados fugiram para o Brasil, por ocasião da II Grande Guerra. E recebi uma outra, de um casal amigo, francês, aposentados desde há pouco: andam a descobrir o Peru!
            Por isso, há tempos, pus a cabeça entre as mãos, ao saber, de dois outros grandes amigos meus, ele e ela. Ela, então, muito da minha amizade, cúmplices de muitas andanças. Outro dia, num jantar, explicou-me ele porque se haviam divorciado, embora continue a gostar dela. É que vivia para o seu trabalho: ela, docente, não tinha tempo para ele.
– Vamos dar um passeio?
– Desculpa, não tenho tempo, tenho um monte de testes para ver.
Era sábado, hipoteticamente dia de pausa…
Conclusão: vadiar é preciso!
          O tempo atmosférico não está, de facto, agora para vadiagens ao ar livre, porque tanto há calorzinho agora, como, daqui a pouco, surge, de repente, no horizonte, uma nuvem bem cinzenta e dá em despejar-nos o cântaro em cima! O segredo está no aproveitar: há uma nesga de sol? Vamos dar já um giro! Se houver horários a cumprir, paciência! Vamos aproveitar quando os não haja, porque, é verdade, vadiar é mesmo preciso!

                                               José d’Encarnação

            Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 867, 15-07-2024, p. 10.