São os vampiros. Não há esquina onde não se encontrem, meio de transporte em que não estejam, hospital em que não se escondam, televisão onde não mostrem os dentes. Prontos, sempre, a sugar-nos o sangue até ao tutano, insaciáveis… Até nós deixarmos!...
Estreou, no passado dia 10, sexta-feira, com este título «Eles “Andem” Aí!», a revista do Grupo Cénico da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais, no seu vetusto e simbólico Teatro Gil Vicente. Vai estar em cena, aos sábados, a partir das 21.30 horas – e é de lá ir para aplaudir e para, como reza o convite dito logo no início do espectáculo, «esquecer tudo o que se passa lá fora e… rir!».
Um símbolo
Antes de traçar, ainda que em largas pinceladas, o panorama da revista, permita-se-me que reafirme ser a iniciativa o símbolo de uma Cascais que resiste, no seu coração histórico. Os mais velhos foram passando o testemunho aos filhos e aos netos, não deixaram morrer um espírito de crítica sadia, de quente convívio, de amor a uma vila seis vezes centenária, com História, e que vai vendo passar, cada vez mais, outras gentes que do ‘espírito de Cascais’ pouco ou mesmo nada percebem.
O Gil Vicente assume-se – e é! – para além da sede da Associação ora a comemorar os 125 anos de existência, a sala onde vive e se revive a tradição. E um espectáculo de revista bem à portuguesa constitui, sem dúvida, o melhor pretexto para um ponto de encontro jovial, autêntico, consolidador de vizinhanças.
Compreende-se, pois, que – apesar de convidados – os representantes das entidades oficiais, nomeadamente autárquicas, não tenham estado presentes. É que o Gil nada lhes diz, porque… noutras águas navegam. Lamentar a ausência? Acho que não, pois cada um escolhe o caminho por que deseja singrar.
Devotado trabalho conjunto
Não foi distribuído programa nem praticamente se referiram nomes. No final do espectáculo, passava da meia-noite e meia, todos os intervenientes encheram o palco: os actores, o ensaiador, os que ficam sempre atrás das cortinas, todos!... Poderia eu próprio (e ainda hesitei) solicitar os dados da ficha técnica, para os escrever aqui. Preferi não o fazer, porque sentimos todos quanto há ali de trabalho conjunto, de dedicação extrema, muitas horas de noites perdidas para a família mas ganhas para uma causa. E nunca será de mais evocar – como se faz, e muito bem, no final do 1º acto – o que tem sido, ao longo dos anos, a actividade do Grupo Cénico, marchando contra tudo e contra todos!
Contra e a favor
Como é de lei numa revista, aplaude-se, critica-se, brinca-se, ri-se… que já lá diziam os Antigos que é a rir que se chicoteiam maldades!
Abre a série o Zé-povinho numa chula mandada (bem gostava ele de mandar, ia tudo a trote e a compasso, oh se ia!...); baila-se o vira, o fandango, arma-se bailarico… E logo ali se vê o que vai ser uma das constantes ao longo da noite: a magnificência, ainda que singela, do original guarda-roupa – um espanto! Termina o Zé a fazer o seu manguito e… o baile acaba!
A passageira quer apanhar o comboio, em Santa Apolónia, mas não sabe para onde vai nem percebe nada do que lhe estão a dizer (saboroso esse conjunto de trocadilhos). Sabe é que está aflita para ir à casa de banho. Pois é: e o comboio partiu sem ela. Vemos o comboio partir todos os dias, não o apanhamos, porque nem as necessidades básicas conseguimos satisfazer…
Fala-se de iniciação sexual. A acompanhante de luxo entra pelo teatro, de carro, e é a cena que se imagina entre ela que ora chega, às tantas da matina, e a lavadeira que já ali está ao serviço desde madrugada, «lava por baixo, lava por cima»…
Original a coreografia do bailado cigano, a fazer-nos sonhar Andaluzias…
Dois bêbados não acertam a medir o pau, porque querem medir-lhe a altura e teimam em pô-lo de pé. Há hoje alguma coisa que se consiga manter de pé? – pergunto eu. E eles também não acertam! E se o medissem no chão? – sugere o ancião que deles se abeira. Mas eles – como tantos outros… – acham que os anciãos só servem para atrapalhar ainda mais!
Ah! E temos um espantalho no jardim. Um? Muitos! O que há mais por aí são espantalhos! Não pensam mas falam, oh se falam! O melhor é pô-los a bailar – e isso conseguiu-se fazer!
E para tratar de festas populares (as que ainda resistem e as que houve outrora) nada melhor que pôr em cena dois atrasados mentais, a quem tudo é permitido. Perguntam pela praça de touros: então, que aconteceu? Riem-se, porque o parque de estacionamento do Parque Marechal Carmona esteve sem abrir bastante tempo porque alguém se esqueceu das necessidades fisiológicas do guarda… E, depois de um enorme trocadilho do «tinha tinha mas não tinha tinha» – e, mais adiante, «pila» que é «pilha» – três são as palavras de ordem não para uma manifestação (também podiam ser!) mas para uma dança: «merda», «porra», «chiça» (com sua licença!).
Abre o 2º acto com um viva aos soldados da paz. Proclama alguém, de seguida, que… «não é piegas!» (onde é que a gente já ouviu isto?); e que «não foi o meu pai que faltou ao emprego, foi o emprego que faltou ao meu pai». E a menina sonha vir a ser actriz de um filme pornográfico, embora não saiba lá muito bem o que isso é.
Sempre aplaudido e muito bem apresentado e coreografado o momento do fado. Há problemas de erecção num consultório; problemas entre uma tripulação no aeroporto; a Escola Ballete Russa mistura-se com as urgências do hospital («eram praí 7 e pico…!»).
Termina-se em apoteose, com um bolero no Bar Cemitério e os vampiros a aparecerem nos mais diversos domínios: Futebol, Código Penal, Saúde, Banca, Obras Públicas, Governo, FMI… Vampiros!
Um lavar d’alma
Saímos, pois, consoladinhos, de alma lavada: manteve-se a tradição; lutou-se por um ideal, gritou-se contra o tal mundo que se prometera deixar lá fora. O Teatro Gil Vicente esteve cheio: o público aplaudiu forte; e o voto é de que os aplausos continuem e tão devotada equipa não esmoreça!
Parabéns!
[Publicado no Jornal de Cascais, nº 301, 15-02-2012, p. 4].
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