Aí se apresenta, fruto de acurada investigação histórica sobre dois casos, um arguto e
revelador estudo sobre o fenómeno do saneamento político.
No âmbito dos muitos estudos inspirados
no centenário da implantação da República,
a autora, Aurora Martins Madaleno, lembrou-se de analisar o processo de
saneamento e reintegração de duas personalidades
em duas épocas distintas da história portuguesa; distintas no tempo, comparáveis
nas atitudes.
Bernardino Machado
Sem dúvida singular, a história de Bernardino
Machado (Rio de Janeiro, 28.3.1851 – Porto, 24.4.1944). Dinâmico político,
serviu o Partido Regenerador durante a Monarquia, ocupou diversas pastas
ministeriais na I República, tendo sido eleito, por dois períodos, presidente
da República: de 6-8-1915 a
8-12-1917 e de 11-12-1925 a
31-5-1926. Exilaram-no as gentes do Estado Novo e foi oficialmente exonerado do
lugar de catedrático de Philosophia Natural da Universidade de Coimbra (Faculdade de Philosophia), por despacho
publicado a 27.4.1931.[1]
Fiel aos princípios por que a revolução de 25 de Abril se norteara, a governação chamou a si esses processos de saneamento do
Estado Novo, nomeadamente os de figuras de notável valor cívico e cultural que
o regime saído do 28 de Maio de 1926 decidira aniquilar, por não se pautarem com
as suas ideologias. Um dos processos revistos foi o de Bernardino Machado.
Assim, por despacho de 4.10.1983, o Ministro da Educação
José Augusto Seabra determinou, «ouvido o Reitor da Universidade de Coimbra»,
que Bernardino Machado fosse reintegrado, a título póstumo, «no lugar e com a
situação que detinha no momento da
sua exoneração », acto que se
considerou «de elementar justiça», pois também ele prestara «à Pátria e ao Estado
Português um contributo de alto relevo cívico, na luta pela liberdade e pela
democracia» (p. 15).
Teve eco público essa reintegração,
cujo elevado significado simbólico foi devidamente realçado, por exemplo, quer
pela Câmara Municipal de Fama licão,
que havia encetado diligências nesse sentido (veja-se local do Jornal de Notícias de 25-07-1983), quer
pelo próprio Jornal de Notícias de
5-10-1983, que abre notícia, em grandes parangonas, na 1ª página. Curiosamente,
porém, a nível universitário parece que não terá havido especial reacção, pois
que nomeadamente as actas dos órgãos académicos tanto da Faculdade de Ciências como da de Letras de
Coimbra dessa altura nada assinalam a esse propósito.[2]
Permita-se-me que, a talhe de foice, teça
dois comentários ao que foi escrito.
1º) Bernardino Machado procurou
desenvolver, pioneiramente, a sericicultura, o fabrico de seda natural a partir
da criação de bicho s-da-seda,
retomando uma política que já vinha do tempo do Marquês de Pombal, que apoiou,
por exemplo, a criação da Real
Fábrica das Sedas do Rato (Alvará de 6 de Agosto de 1757). Trata-se de uma
actividade produtiva nem sempre tida em conta para a economia do País e que
passou por muitos altos e baixos. Assim, no âmbito do interesse pela recuperação do património local, lançou a Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, na década de 90, o programa
«Os Caminhos da Seda», que incluiu o projecto do Centro Interpretativo
do Real Filatório, destinado – com uma exposição
sobre a história do complexo e da sericicultura na região, assim como do
espólio recolhido nas intervenções arqueológicas realizadas no local – a servir
de apoio na visita às ruínas do que fora o Real Filatório de Chacim, nascido no
reinado de D. Maria I, por ser essa zona do País particularmente adequada à
plantação de amoreiras. No Centro se
previa o funcionamento do Núcleo de Estudos Sericícolas, «pólo de investigação sobre a história da sericicultura na região, com
um centro de documentação e
bibliografia».[3]
2º) Do percurso académico de
Bernardino Machado se escreve, na pág. 8, que obteve «a lente de catedrático de
Filosofia em 1879». Trata-se de um lapso de escrita ao correr da pena, porque a
autora, noutro livro publicado pela mesma altura, ao explicar o que é um
professor catedrático, escreve claramente: «É o chama do
Lente da Universidade»;[4]
contudo, se o refiro é não apenas para o explicitar mas também para, a esse propósito,
lançar luz (outros já também o fizeram, é certo, e com muita pertinência) sobre
a polémica gerada pela afirmação de
Dilma Roussef, a 31 de Outubro de 2010: fora eleita… presidenta do Brasil, versão que, um tanto incompreensivelmente, também
José Sarama go apoiou! Na sua origem,
como é sobejamente conhecido, a palavra lente significa «o que lê», como
vidente é «o que vê» e presidente «o que preside». Trata-se de um particípio
presente uniforme. Na verdade, voltando à palavra «lente», o professor da
Universidade, seguindo a vetusta tradição
medieval, lia perante os alunos o livro ou os apontamentos que redigira e os
estudantes bebiam as suas palavras. O ensino era, predominantemente, oral.
Desta tradição nasceriam as
«sebentas», livros policopiados (e, mais tarde, impressos) que compendiavam as
lições ministradas e que, na gíria, o estudante era convidado a «empinar».
Lente era, pois, uma categoria a
que, na actualidade, corresponde a de professor catedrático, o topo da carreira
docente universitária.
Jorge Fernandes Moreira
O
outro exemplo aduzido por Aurora Madaleno diz respeito ao Dr. Jorge Fernandes
Moreira, que, aquando do 25 de Abril,
exercia funções, como inspector superior, na Direcção -geral
do Ensino Superior. Foi, naturalmente, saneado, sob pretexto de ter pertencido
à Legião Portuguesa: Sottomayor Cardia, por despacho de 18-1-1977 (que duas
vezes no livro se transcreve – p. 18-19 e 62-63), determinou que lhe fossem
suspensos o vencimento e o exercício de funções, privando-o também dos «seus direitos
políticos plenos».
Compreende-se, pelo que se lê no
ponto 2.3 do livro, primeiro que a autora terá acompanhado de perto o percurso
de Fernandes Moreira, por ter sido ela própria técnica do mesmo Ministério da
Educação ; segundo, que o saneado foi
reintegrado no serviço em 1982, certamente por ter sido deferido requerimento apresentado
pelo próprio à Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e Reclassificação , de acordo com o estipulado no decreto-lei nº
232/78, de 17 de Agosto; contudo, eventuais ocorrências ou diligências feitas
entre o saneamento e a reintegração
não são referidas. Também de José Moreira pouco mais se diz no livro do que
«nasceu numa Aldeia da Beira Alta» (p. 16) e que as exéquias eclesiásticas por
ocasião do seu óbito se celebraram em S. Domingos de Benfica (Lisboa), a
11-7-2000.
A concluir, Aurora Madaleno apresenta o seu livrinho como «uma homenagem
à vitória da boa convivência, da democracia e da liberdade, sempre no respeito
pelos direitos dos cidadãos e na defesa do bem comum» (p. 20), não sem antes
ter referido (p. 19) o desaparecimento da documentação
relativa a este tipo de processos e de sublinhar que, hoje, devido a «estarmos
mais familiarizados com os meandros das instituições políticas e o carácter dos
políticos, quer pela liberdade de imprensa, quer pelos debates nas campanhas eleitorais,
quer, ainda, pelos processos de difama ção dos políticos na própria comunicação social» (p. 19-20), já se compreendam melhor «os
motivos por que se “saneiam” uns e outros cada vez que mudam os partidos do Governo»
(p. 20).
«A melhor forma de comemorar o Centenário
da República» – considera a Autora este seu depoimento, por ter dado relevo à importância
da «dignidade da pessoa humana» (p. 21).
As p. 23-68 são preenchidas com a transcrição dos diplomas referidos no texto. O prefácio (p.
5-6) é assinado por Afonso Cunha Duarte, que pondera ter este livrinho
contribuído para preencher «uma das lacunas das comemorações» do Centenário da Implantação da República, justamente por ter exemplificado o
«fenómeno do saneamento político» (p. 5).
José d’Encarnação
Publicado na edição de
10-09-2012, de Cyberjornal:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=16995&Itemid=30
[1] Cf. ROSA, Elzira Machado, «Bernardino
Machado e a Universidade de Coimbra»,
Revista de História das Ideias,
Coimbra, 12, 1990, p. 257-267, que, no entanto, apenas aborda "O
pensamento pedagógico de Bernardino Machado" e "A sua função na
Universidade" (agradeço ao Doutor Azevedo e Silva esta informação).
[2]
Agradeço ao Doutor Carlos André e ao Dr. Júlio Ramos a gentileza de terem compulsado a documentação
existente; e ao neto de Bernardino Machado, Manuel Sá Marques, a prontidão com
que me fez chegar os recortes da sua colecção, que integram, aliás, o Museu
Bernardino Machado de Fama licão e de
que se faz eco no blogue que mantém sobre o seu avô: http://manuel-bernardinomachado.blogspot.pt/
[3] Veja-se, por exemplo, de Real Filatório de Chacim: Nas ruínas de um
grande complexo industrial», publicada, a 23 de Setembro de 2010, no jornal
Mensageiro de Bragança.
[4] Aurora Martins MADALENO, «VilAdentro – Quem pergunta quer saber», Casa da Cultura António
Bentes, São Brás de Alportel, Abril de 2012. ISBN: 978-989-95726-6-9, p. 65.
Um cordial e apertado abraço!
ResponderEliminarVou transcrever o texto no meu blogue; obrigado.
Manuel Sá Marques