«São
páginas vibrantes de humanidade, a actriz a falar alto consigo própria, não em
lamechice saudosa, mas num discorrer suave em que a cronologia não conta, as
ideias prendem-se umas às outras, as recordações brotam» (Jornal da Costa do Sol, 25-04-1985, p. 19).
Esta
característica, de prosa escorreita, despretensiosa e singela pode igualmente
apontar-se neste segundo livro: No Palco
da Memória (Sextante Editora, Lisboa, Fevereiro de 2013, ISBN:
978-989-676-163-9).
Trata-se,
como o próprio título indica, de livro de memórias, bem ilustrado com mui
adequadas e sugestivas fotografias; sem datas; sem gralhas. Dedicado ao marido
(«Ao Victor, companheiro exemplar, que não sei como mereci»), consagra-se como o
resultado daquele impulso inevitável, no Outono da vida, que assalta quem muito
viveu e sente a obrigação de
partilhar a experiência longamente adquirida: C. Dolores nasceu a 22 de Abril
de 1924, estreou-se na rádio aos 14 anos e decidiu terminar a sua carreira no
teatro em 2005!
Há,
pois, no livro a arrumação do
passado na 1ª pessoa: o que fiz, como fiz, o que senti, o que aprendi, o que
ficou. Disso versam os capítulos «De mim», «Encontros e desencontros», «Da observação », «Da imaginação »,
«Da profissão», com especial realce para este último, onde Carmen Dolores se…
confessa!
Uma
confissão a ser meditada, ainda que a autora se interrogue a dado passo: «Não estarei
a repetir-me demasiado? Não serão banalidades o que acabo de escrever?» (p.
151). E explique: «Mas nada do que escrevo pretende ser didáctico ou pretensioso.
São considerações minhas, baseadas em momentos vividos, contadas com sinceridade
e escritas ao correr da pena» (p. 165).
Depoimento
importante, porém, para melhor se compreender não apenas a grande actriz mas
tudo o que a envolveu ao longo dos muitos anos da sua actividade. Uma lição , de resto, para todos, nomeadamente os que almejam
seguir a via artística como profissão e missão; e o repositório histórico do
Teatro no decorrer do século XX que daqui se desprende revela-se bem oportuno,
elucidativo e útil.
Carmen
Dolores observa argutamente a realidade. Deixa cair, aqui e além, como quem não
quer a coisa, um apontamento sintomático, como, por exemplo, quando refere quem
vai à inauguração de exposições:
«Outros, que passavam para comer umas coisas, que àquela hora já apeteciam, fazendo
dispensar a refeição da noite» (p.
44-45). Alude aos «beijinhos distraídos das mulheres apressadas» (p. 75); e ao
«jornalista entrevistador, quando na televisão arma malcriadamente em juiz do político
entrevistado, ali à sua mercê» (p. 91). Explica que, «no fundo, as pessoas vão
ao teatro para se verem retratadas, para se encontrarem consigo mesmas, para
aprenderem a conhecer-se melhor e a melhor entenderem os outros» (p. 99). Argumenta
que «o actor tem de saber ouvir o público no seu silêncio» (p. 104); que
estamos «nuns tempos em que já ninguém escuta ninguém» (p. 150). E recomenda
que, «quando comentamos as atitudes dos outros, não esqueçamos nunca o espelho
que nos reflecte a nós mesmos» (p. 150). E frisa, mais do que uma vez, o poder
do louvor, a magia contagiante dos aplausos! Por vezes, até parece que se
distrai e entra em diálogo com as pessoas de quem está a falar: «Nunca falámos
nisso, nem ninguém o soube, mas eu jamais o esqueci, Ribeirinho!» (p. 48).
Solta-se-lhe,
de vez em quando, no seio dessa acutilante observação
das gentes, a vontade de esmiuçar melhor o que vê. Assim, a magnífica e
comovente história da mulher que sai da prisão (p. 70-73), um conto, diria eu,
de antologia, que termina assim: «Atravessou o mundo sem conhecimento de ninguém,
como se tivesse vindo do além e tivesse de novo partido, a caminho desse além…»
(p. 73). Uma história pungente que, sem dúvida, amiúde se há-de repetir, sem
que ninguém disso se aperceba! E morreu o Sr. Pires, porteiro do prédio; Carmen
passou pela igreja de Fátima: «Àquela hora era ele o único morto e eu a única pessoa
viva» (p. 51).
A sabedoria que a experiência dita
E se em «Encontros
e desencontros» temos desfile de personalidades com quem Carmen Dolores se cruz ou e sobre quem, sem rebuço, dá a sua opinião, é
em «De mim», «Da observação » e «Da
imaginação » que mais sentimos o
pulsar humano dessa experiência vivida. E daí será difícil não coligir algumas
frases, para meditação maior, frases
que no livro também eu sublinhei, como era hábito da artista: «Esta minha mania
de sublinhar os períodos que me dizem mais!» (p. 40).
«Não
deixem o sonho fugir. Tranquem todas as portas» (p. 57).
«Hoje
já não há meninas à janela. Hoje, as meninas ou estão a comunicar com desconhecidos,
através da Internet, em jogos, por vezes, perigosos de sedução ou a dançar freneticamente na night ensurdecedora» (p. 57-58).
«Não
parecia ter nome a filha da Senhora Duquesa. Talvez na intimidade… teria intimidade?
[…] E a Rosa, que é pobre, mas todos no bairro sabem que se chama Rosa, virá,
feliz, corada, dar a mão à mãe, que também todos sabem ser Maria da Silva,
costureira de alfaiate» (p. 68).
«Em
resumo: o Teatro deveria ser uma disciplina obrigatória, até como complemento
da língua portuguesa» (p. 98).
A
última parte do livro constitui um registo: as personagens que interpretou (p.
119-170); o relacionamento com o cinema, a televisão, a rádio, «os admira dores e a Casa do Artista» (p. 171-198); «O que
disseram de mim», colectânea de recortes (p. 199-243), de que destaca alguns
depoimentos especiais (p. 245-254). Termina com uma pequena biografia.
Se
o primeiro livro foi Retrato Inacabado,
este pode, na verdade, ser tido na conta de um complemento, a dar mais umas
pinceladas de esboço no que foi (e ainda é!) uma vida rica, com muito para ensinar.
E este No Palco da Memória (bonito o
título, deveras!) compendia bastos ensinamentos!
Publicado em Cyberjornal, 07-10-2013:
Joaquim Isqueiro Que belo texto, amigo. Que sensível e bonita apreciação, com tanta suavidade relatada, que nos mete de imediato no livro e nos aguça a vontade de o ler. Gostei muito, amigo, dessa forma tão humana de falar das coisas e das pessoas, que conheço há muito tempo, da leveza da descrição que prende e cativa. Ainda por cima sobre essa grande Mulher, que sempre admirei. Obrigado, amigo, um grande abraço.
ResponderEliminarBem hajas, Isqueiro! Fico contente por teres gostado. Vamos tentando semear serenidades quando à nossa volta reina a amargura! Um abraço!
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