Na
verdade, sob pretexto de contar histórias em que o humor desempenha primordial
papel, Jorge Varanda acaba por evocar toda uma vivência dos anos 50 do século
passado, que não é apenas a de Soure, mas, em muitos aspectos, a de todo um
País, como, aliás, o próprio autor não hesita em consagrar. E esse é um aspecto
deveras interessante, pois que existe sempre, por parte dos historiadores,
algum pejo em fazerem história de tempos ainda recentes. Não é que Jorge Varanda
tenha manifestado intenção de ser
historiador, apenas um «contador de histórias»; certo é, porém, que essas histórias
retratam uma sociedade, um modo de viver, um ambiente físico, edificado, geográfico,
que, hoje, sem esse testemunho passado a escrito, acabaria por correr sério risco
de se perder.
Os
jogos das crianças desse tempo em Soure eram os das crianças de Portugal. A
evolução dos meios de transporte foi
essa em toda a parte: «tracção
animal, bicicleta, motorizada e automóvel»; «também meu pai seguiu essa lógica evolutiva:
da bicicleta passou ao Cucciolo, do Cucciolo a uma Sachs e desta a um automóvel
Fiat» (p. 57). Todos jogámos com bola de trapos («uma meia desirmanada, enchida
com trapos ou uma quantidade apropriada de papel de jornal amassado e tornado
consistente à custa de cordel de
muitas voltas» – p. 112) ou «com a bexiga do animal [o porco] no cimentado da
eira» (p. 80); alguns de nós comemos cobra por enguia ou lampreia e tivemos
ânsias quando nos disseram da maldade (p. 118); todos falámos das «janelas tipo
fenêtre» (p. 105) e chamámos à GNR «Grande Ninhada de Ratos» (p. 113); toda a
gente nascia em casa, com a ajuda de uma ‘curiosa’ que já fizera os partos das mulheres
da aldeia (p. 80-81); rimo-nos dos erros do pessoal dos registos que prantavam
às crianças nomes estranhos, porque não percebiam a pronúncia; ser gordo era,
por toda a parte, «uma raridade» (p. 110); as orelhas de burro e as palmatoadas
constituíam os expedientes mais usados para castigar menino traquina ou
preguiçoso; as botijas eram aquelas garrafas de grés acastanhado, do anis da
Holanda (p. 93); as tabernas (p. 123), por toda a parte, os locais privilegiados
de convívio (e hoje, felizmente, estão a ser recuperadas); todos seríamos
capazes de, por desconhecermos como funcionava a luz eléctrica, pegar da naifa
e cortar o cordão, arriscando-nos a apanhar um choque (p. 21); nos bailes,
«damas ao bufete» (p. 100) era certeiro estratagema pelo País de norte a sul…
Diríamos
que estamos perante autênticos quadros de revista, prontos a ser encenados no
teatro local ou em centro de convívio da chamada «terceira idade». De facto,
este é livro que estará a fazer, não tenho dúvidas, as delícias dos que andam agora
na casa dos 60 anos, até porque o autor sabiamente enquadra cada narrativa com
um breve e assaz oportuno excurso histórico.
Bem
fez, pois, o município local em dar o seu apoio a esta publicação . Aliás, frisa-o bem a senhora vereadora, Ana Maria
Treno, na abertura: «a magia das histórias que ouvimos na nossa infância», «com
pessoas e acções vivenciadas em Soure». Outros municípios e freguesias estão,
felizmente, a enveredar pelo mesmo caminho, cientes de que essas memórias –
património imaterial! – contribuem eficazmente para cimentar comunidade e
enraizar a população .
Publicado em Cyberjornal, edição de 9-10-2013:
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