quarta-feira, 11 de março de 2015

Os nossos artistas

             A morte recente do cascalense Victor Belém (1938-25.02.2015) fez-me ir à prateleira das memórias. Deveria fazer investigação a fim de dar conta do que o Victor concretizou ao longo de uma vida irrequieta. Encontrei, porém, de imediato, por exemplo, na página da Galeria Fonseca Macedo, um texto em que se caracteriza a obra do Victor – http://www.fonsecamacedo.com/ver_textos.php?id_expo=25&ling=pt – com aqueles termos técnicos comuns em crítica de arte e naturalmente pertença do saber de quem pelas águas da criação artística mui sabiamente navega e, por isso, quer por ser elucidativo, quer por eu não saber escrever assim, partilho de bom grado.
            O Victor integrava aquele grupo de artistas totalmente irreverentes que, na 2ª metade da década de 60, abalou Cascais, numa altura em que os senhores agentes da PIDE minuciosamente perscrutavam os artistas e as suas obras. Sabiam – e tinham razão! – que era a Arte uma arma poderosa. Sempre o vi naquele perfil franzino, quase desconjuntado, empenhado em fazer ‘instalações’ quando ainda a maior parte de nós não sabia bem o que isso era. E de cada objecto ali plantado, daquela maneira e não podia ser doutra, dimanava uma mensagem. Filosofias!...
            Estava o Victor como funcionário ou em comissão de serviço artístico na Secretaria de Estado da Cultura quando, por sugestão do Engº Luís Casanovas, que superintendia ao Palácio da Cidadela (sob tutela do IPPC), o Guilherme Cardoso e eu nos lançámos na tarefa de apresentar, em Agosto de 1986, a exposição «Cascais no Tempo dos Romanos». Mostrámos o que de mais significativo já nessa altura havia do espólio romano do concelho, porquanto as escavações em Freiria haviam começado no ano anterior com surpreendentes e inesperadas descobertas. E quem é que pensou connosco na melhor forma de tudo expor e de tornar bonitos e agradáveis os baixos abobadados do palácio? Victor Belém! A exposição foi um êxito, nomeadamente porque o Victor pôs aí todo o seu talento e saber. E se não conseguimos (haja fé que um dia se conseguirá!...) convencer o Executivo liderado por Georges Dargent de que a vila carecia urgentemente de um equipamento em que ao Povo e aos Turistas se mostrassem as riquezas arqueológicas (de que os espécimes expostos eram magro testemunho), o certo é que se acabou por definir assim o destino dessas salas, onde hoje o Museu da República instala as suas exposições temporárias. Ao gosto de Victor Belém tal se fica a dever!
            Gostava dele, como se gosta de um amigo que sabe respeitar as nossas ideias e gerir cumplicidades, carreando uma vaga de fundo capaz de mover montanhas. Não nos encontrávamos amiúde; mas era sempre aquele abraço fraterno que tínhamos quando adregava estarmos juntos. E como poderia esquecer – eu, epigrafista confesso! – o auto-epitáfio que ele desencantou na Biblioteca Nacional e que lhe inspirou um diaporama em 1983? Dizia a folha, que guardo: D. M. / EU.SOU. IRMAM / DE MIM.MESMA / S. M. T. L. / 1783. Comentámos, com gosto, esse jeito, bem à latina, de invocar os deuses Manes e, no final, de se desejar a si mesma «que a terra me seja leve» – S(it) M(ihi) T(erra) L(evis)… Que a terra te seja leve, Victor!

Os azulejos do Artur José
            Que o leitor me perdoe estas evocações. Bem sei que era muito mais interessante – e, quiçá, sadio! – escolher outro tema. Ler, por exemplo, se as tivesse à mão, as actas das reuniões camarárias. Calhou-me sob os olhos uma, outro dia. E achei que os nossos vereadores se preparam arduamente para o hemiciclo de S. Bento, onde também a verve que os eleitos ostentam é de mui alto gabarito e de elevado sentido de humor, no esgrimir das palavras e no derrubar, sem dó nem piedade, opiniões contrárias.
            Fico-me por outros artistas – que ao Belo despreocupadamente nos convocam. Têm também ideologias subjacentes. Obedecem a cânones estéticos que longamente hauriram no convívio com outros artistas, na sua escola, aqueles a quem respeitosamente se referem nos currículos constantes dos catálogos: estudou com Fulano, estagiou em Paris com Sicrano. Mestres! De quem sequiosamente aprenderam e lhes ensinaram como poderiam, depois, singrar sozinhos.
            Recordo Artur José. Muito direito, esguio na sua magreza, como que a pedir licença para vestir um casaco que lhe pudesse dar mais algum volume. A figura de um asceta, de mui poucas palavras. Passava o ano em Lisboa, a trabalhar arduamente, ele que tratava o azulejo por tu (encantava-nos também a originalidade das formas) e sabia exactamente como se fazia aquele azul, como é que aquele verde não escorreria, como é que o painel ou o vaso cerâmico ou a jarra poderia engalanar-se de cores novas, numa paleta infinita.
                                        E pela Primavera ou no Verão, lá vinha ele, de armas e bagagens, para expor no Casino:
            «O ceramista Artur José tem patente desde 30 de Abril a sua 19ª exposição individual, de pintura e cerâmica, na Galeria de Arte do Casino Estoril, comemorando 40 anos de exposições naquele espaço do Casino» – lê-se numa informação à imprensa de 2005.
            Faleceu com 78 anos, a 19 de Fevereiro de 2010. Que descanse em paz!

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 83, 11-03-2015, p. 6.

 

  
 

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