Na dedicatória manuscrita que teve a
gentileza de lavrar na página de rosto, formulou Manuel Ponciano o voto de que «a liberdade seja uma
marca dos nossos dias!». Na verdade, este seu livro de 261 páginas é – e vou
exprimi-lo, perdoar-me-ão, em frases singelas – apelo à liberdade, tendo como
pano de fundo o ambiente vivido em Portugal nos primeiros anos da década de 70,
em plena «guerra colonial», onde liberdade não era, de facto, palavra permanente
no vocabulário quotidiano.
A história de um
mancebo
O ponto de partida? A experiência
pessoal do autor que, se bem interpreto a frase da pág. 246, José Luís Peixoto
o terá incitado a partilhar, qual «acto psicanalítico», para que não continuasse
no sótão «encerrada a se5te chaves»: «faz-se a catarse emocional» (p. 177),
também com o objectivo expresso de contribuir para que, doravante, «não mais se
pronunciasse a célebre frase homo homini
lupus», é ‘o homem lobo do homem’ (p. 172).
O enredo, o normal nesse tempo: saído de
uma congregação religiosa, onde fizera os estudos, o mancebo vai para Mafra; aí
se prepara para a guerra; tem grave acidente no decorrer de um exercício; é colocado
como escriturário no RI 2 de Abrantes. Começa a pensar em organizar a vida,
quando inesperadamente o mobilizam para Angola, em regime de substituição.
Casamento aprazado é, porém, para se concretizar, apesar de tudo, antes de
embarcar no Boeing 707 que o levará a Luanda, donde seguirá, num Nord-Atlas,
para Santa Eulália, onde chefiará a secretaria de um Comando de Agrupamento.
Considerações
acerca do desgoverno
Descreve Manuel Ponciano com alguma
minúcia a vida em Mafra. A vida concreta e, sobretudo, a vida psíquica, os
pensamentos que então o terão assaltado.
Esperar-se-ia – nomeadamente atendendo
ao título – o relato da experiência militar africana, ainda que, como
responsável por uma secretaria, Manuel Ponciano estivesse embrenhado mais em
tarefas burocrático-administrativas que bélicas. Preferiu, no entanto, ou parece
ter preferido anotar três ou quatro episódios para privilegiar a atmosfera emocional
da presença da guerra no dia-a-dia dos Portugueses e da revolta latente prenunciadora
do 25 de Abril, demorando-se em longas considerações acerca do desgoverno e da
tirania e optando por verberar, pontualmente, as senhoras das altas patentes
militares que (dizia-se!) viriam quinzenalmente a Lisboa à cabeleireira, a
frase «um cavalo vale mais do que mil homens», os caixões que chegavam com pedras
dentro em vez de corpos...
Perpassa, pois, pelo livro o clima de angústia
perante uma guerra absurda, implacável ceifeira de vidas e de esperanças, em
obediência a uma política cega. Uma evocação desagradada e, até, de incontida
revolta. Uma visão quase apocalíptica, dir-se-ia, patente, por exemplo, nestas
frases:
«Este povo voltou à estaca zero» (p.
183);
«Os terrenos estão secos, a lama
desapareceu, mas os pedregulhos continuam a rolar por entre as silvas que se
opõem à fertilização para que novo fruto brote e venha satisfazer as necessidades
de quem luta por um simples prato de lentilhas» (p. 206).
E,
nesse aspecto, a obra revela-se mui significativa, ainda que o autor de certo
modo reconheça que poderia ter sido mais sóbrio: na pág. 245, pede perdão ao
leitor pela «maçada que teve Ao ler estas páginas» e, na pág. 249, dialoga
mesmo com ele: «Caro leitor, só espero que não te tenha enfastiado».
Convirá referir, todavia, a opinião de
Ana Umbelino, que escreve no final do prefácio:
«Longe de se reduzir a um mero exercício
de catarse, consubstanciado numa narração espúria ou magoada de episódios
longínquos, suspensos no tempo, longe de se afundar no patético, ou na
desesperança, a presente obra abre um clarão para o futuro, corporizando um
gesto de compromisso» (p. 7-8).
A falta de
revisão, pecha dos nossos dias
Não posso concluir sem, mais uma vez, me
insurgir contra uma pecha cada vez mais frequente: a falta de revisão, que não
honra os autores nem os editores.
No exemplar que tenho, além de gralhas,
de pontuação inadequada, de palavras amiúde repetidas (caso do advérbio ‘bem’,
que é recorrente), de lapsos de concordância e de frases sem sentido, caso
sejam analisadas à lupa (e um bom revisor o faria), há inclusive páginas com numeração
trocada. De frases sem sentido (em meu entender, claro!), respigo só ipsis verbis duas passagens, para
justificar a afirmação:
«Mas Mafra, como assistiria a estas
desventuras? Como recebia todos estes militares aos quais gostaria de lhes dar
um bom acolhimento?
Por agora, antes que um novo carro de
quatro rodas, sem que olhasse para trás e cortasse com o fio da meada que a
ligava a gerações desfeitas, viesse a retomar um reconhecimento dos seus
antepassados, novo paradeiro militar se me oferecia» (p. 183-184).
«Chegando ao final é que havia algum
final a esperar-me, não seria mais quem cadáver ambulante comandado por forças
alheias à minha própria vontade» (p. 241).
Porventura, se me é permitido, esta
última frase terá sido pensada assim:
«Chegando ao final, se é que havia algum
final a esperar-me, não seria mais que um cadáver ambulante comandado por
forças alheias à minha própria vontade.»
O
Ar Cheirava a Pólvora
foi publicado pela Chiado Editora (Novembro 2014), com o apoio da Câmara
Municipal de Torres Vedras, cidade onde o autor reside. Teve apresentação pública,
a 19 de Fevereiro de 2015, na Biblioteca Municipal. ISBN: 978-989-51-1679-9.
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 30-04-2015: http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=featured&Itemid=67
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