sexta-feira, 28 de abril de 2017

Mel - doçura tradicional

             Pasmei. Era uma multidão! Nunca assim vira o nosso pitosporo. Bem cheiroso sabíamos que era; em plena floração, um encanto de ver; mas… com dezenas de formosas abelhas, a saltar de flor para flor e a sugarem-lhe o pólen disso nunca nos apercebêramos! Dezenas! Numa azáfama, como se o néctar lhes pudesse vir a escapar de um momento para o outro!...
            E fiquei contente por esse aconchegado recanto do jardim proporcionar tão apreciado acepipe a abelhas vindas sei lá donde, porque o nosso vizinho que era apicultor já não é e, nas redondezas neste bairro urbano da periferia de Cascais, não dou notícia de haver cortiços ou colmeias. «De quilómetros podem vir», explicou-me o meu vizinho. E ainda bem que mantemos bonito o pitosporo e elas o descobriram!
            A minha atenção virou-se, de modo especial, para lá, não só porque a janela da sala de jantar está mesmo em frente, mas porque, ao pequeno-almoço, me estou a deliciar com dois méis trazidos da mais recente ida a S. Brás: um mel de alfarrobeira e um mel de rosmaninho, ambos de apicultores são-brasenses credenciados. Um gosto!
            E o pensamento não podia deixar de voar para a minha infância, quando, moço pequeno, fazia questão em ir com o Ti Zé Romão, creio que a Santa Catarina, protegido dos pés à cabeça, tirar os favos de mel aos cortiços que ele lá tinha (a cresta)!
            Mel – uma das nossas típicas riquezas a potenciar!
            Parabéns, pois, aos que insistem em não deixar perder a tradição!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 245, 20-04-2017, p. 11.

domingo, 23 de abril de 2017

Sentados, ao pôr-do-sol, no areal do Guincho

        É, sem dúvida, uma visão diferente sobre a praia do Guincho ou, se se preferir, sobre a vertente ocidental da Serra de Sintra a mergulhar no mar.
         Não, não são apenas as cores variegadas que podemos imaginar, sentados no areal, ao saborear a visão do mar e da serra – «onde a terra se acaba e o mar começa», para usarmos o verso de Camões n’Os Lusíadas. Ou melhor, é capaz de serem mesmo todas essas cores, numa amálgama policromada, onde só de quando em quando se lobriga, além, a serra e o Cabo da Roca. Aliás, eu acho que Diogo Navarro não se preocupou em retratar nem a serra, nem o mar, nem o areal, nem pessoas que porventura, a determinada hora, se passeassem pela praia. O seu foi – em todas as telas – um sentir tão denso, tão policromadamente forte que originou esse esbanjar de cores sobre superfícies grandes, como que a querer abarcar o largo horizonte que dali se enxerga.
         Quiçá, a lição fundamental seja essa: sentados, ao pôr-do-sol, no areal do Guincho, contemplando a Serra da Lua – já os Romanos sentiam que por ali tinha de existir um génio, algo que nos levasse consigo para multicoloridos longes (sim, que a imaginação é multicolor, tem de ser!...) – somos inundados pelas mais variadas sensações anímicas, reconfortantes como aquela pequenina mancha vermelha que, solitária, acena numa dessas telas enormes.
         Mas… houve um mas: é que Diogo Navarro ousou enquadrar algumas dessas telas em mui barrocas molduras doiradas. Foi provocação – confessou-nos, quando o convidámos a tirá-las. É que, segundo ele, nem todas as paisagens se querem livres e ilimitadas. O pintor decidiu que algumas tinham de ser enclausuradas para melhor servirem os seus intentos: obrigar-nos a prescindir das riquezas exteriores para melhor se captar a beleza do interior.
         Pode não se gostar deste tipo de pintura que poderíamos quase classificar de ‘abstracta’, embora com ponto de partida concreto: «The Mountain by the sea», «a montanha junto ao mar»; mas eu quase ousaria afirmar que é imperioso dar uma saltada à galeria do Casino, até ao dia 16 de Maio, para ter, bem nítida, a sensação do que é deixar-se… seduzir!
 
                                                                                José d’Encarnação

sexta-feira, 21 de abril de 2017

A raia na Ericeira ou o raio da Ericeira

            Divulguei ontem uma iniciativa que se me afigurou curiosa e inovadora: a Mostra Gastronómica de Raia, que vai decorrer no próximo fim-de-semana, amanhã e depois, 22 e 23 de Abril, na Ericeira.
            Acho bem. Primeiro, porque houve um tempinho em que se não ligava muita importância à raia e que é excelente frita ou na caldeirada, mormente porque a gente não carece de se preocupar com as espinhas (para isso, basta-nos o ‘estapor’ do safio…); depois, porque é um peixinho bem simpático (admiráveis e elegantíssimas as que se pavoneiam no Oceanário); e, em terceiro lugar, porque, como reza a «informação à imprensa» que recebi:
            «A raia é um peixe abundante na Ericeira e continua a fazer parte dos saberes e sabores da vila. Depois de seca, amanhada e bem lavada, a raia é passada por salmoura. Em dias de sol, é colocada à porta das casas para ir secando, pendurada nos estendais, como se fosse roupa lavada. Uma forma económica de alimentar a família em tempos difíceis».
            Claro, volto ao assunto para incitar as gentes a irem até à Ericeira, que vale a pena. Sobretudo por um pormenor para que o amigo arquitecto Alves Bicho me chamou a atenção: é que tudo vai passar-se «a partir das 16 horas na nova arena de show cooking instalada no Mercado Municipal da Ericeira». Topas? Uma «nova arena de show cooking»!... (Eu cá ponho em itálico, porque é coisa de anglicismo).
            Pois é. Proibiram (dizem), as touradas, para que eram precisas as arenas. Também já não lutas de gladiadores como nos tempos da antiga Roma, onde tudo se passava nas arenas. Venha, pois, daí a arena de show cooking! Abençoada Ericeira!
            E vamos lá pensar nos actores. A «informação à imprensa» é bem clara:
            «Vão também haver demonstrações culinárias, nos sábados e domingos programados».
            «Vão haver»?!...
            Se a competência dos demonstradores for tão grande como a de quem faz a promoção, que ignora algo que gramaticalmente é básico, que o verbo haver, com o significado de existir, só se usa na 3ª pessoa do singular... estamos conversados! Mas não. Os demonstradores serão, de certeza, os velhos pescadores da Ericeira, que sabem preservar a tradição. E, se calhar, até preferiam cozinhar numa vulgar tasca, bem à portuguesa, do que numa arena de show cooking, para turista ver!...

                                                                                  José d’Encarnação

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Sentimentos desencontrados, na perturbação incontida


A propósito de Splendid’s pelo TEC
 
            Publicou a Editorial Verbo, em 1980, nº 34 da Colecção Boutique, o livro Obrigada, Simone!, de Sandra Marini, que tive o privilégio de traduzir do italiano.
            Terá sido como que pedrada no charco, pois relatou a serenidade com que Simone, uma educadora de infância, lograra manter sem pânico as crianças da escola onde se enclausurara um bandido armado, que recusava render-se às autoridades e ameaçava chacinar os reféns. Um assunto insuspeitável e, de certo modo, premonitório, se pensarmos que, de então para cá, cenas dessas acontecem, a vários níveis, com frequência. Sandra Marini analisou o trabalho da professora, a par e passo com as reacções psicológicas do assaltante, com que ela necessitava de constantemente ‘negociar’.
            Recordei-me desse enredo, em que semanas a fio me embrenhei, ao assistir agora à peça, de Jean Genet, Splendid’s (1948), em cena pelo Teatro Experimental de Cascais. Jean Genet (Paris, 1910-1986) tem, nos seus escritos, esse condão de pôr a nu atitudes e pensamentos chocantes para a mentalidade «estabelecida», dita «normal». Não admira, aliás, que assim seja, porque, filho de prostituta, viria a ser adoptado por uma família rural, no seio da qual não conseguiu manter-se, pelo que foi, jovem rebelde, atirado amiúde para reformatórios e prisões, que determinaram, de certo modo, a sua tendência homossexual, também essa uma forma de se rebelar contra o status quo.
            Assumiu, desde sempre, Carlos Avilez o carácter experimental da sua companhia e, por isso, Jean Genet constitui um dos seus autores preferidos (é a sexta produção que faz de uma obra sua). E não foi casual para os dias de hoje a escolha de um texto que mostra o lento desenrolar dos sentimentos e das atitudes de um grupo de sete ‘bandidos’ que mantêm como refém a filha de um milionário americano e, descobertos, se vêem forçados a entrincheirar-se no hotel Splendid’s, onde tudo se passa.
            Qual jornalista, Teresa Côrte-Real aparece, de vez em quando, a dar conta do que se passa lá fora; no entanto, ao espectador o que interessa mesmo é o que se passa ali dentro, num espaço limitado, onde as paredes são espelhos, para que – como nos lares da terceira idade – os personagens se vejam, mesmo sem o quererem, e assim se consciencializem melhor da sua figura e da situação em que se encontram. Nós estamos, de certo modo, do lado da jornalista, a pensar como é que tudo vai acabar; é ilusão, porém, porque não há parede do nosso lado, não há biombos, os bandidos estão mesmo ali, ao pé de nós, à mão de semear e corremos o risco de uma bala perdida nos vir bater na cabeça. Não comungamos dos sentimentos, temos de os repelir, porque, afinal, estamos de fora, mas com um pé lá dentro. Somos cúmplices, porque não saltamos da cadeira e desatamos aos tiros; mas somos pusilânimes, sabemos que isso de nada adiantaria e qualquer movimento equivaleria a ser cadáver.
            Não é, pois, fácil transmitir aos actores a densidade dramática que a cena impõe. Não é fácil para os actores demonstrarem esse turbilhão de ideias desencontradas que a todo o momento os assaltam, na certeza que têm de que, queiram ou não, o mais certo é estarem a viver ali os últimos momentos das suas vidas, pois a rendição proposta por um ou por outro equivaleria a morte certa, armados como estão e há, amiúde, o cano duma metralhadora quase metido na boca de alguém no jeito de «vou estoirar-te os miolos!». Trata-se, sem dúvida, de um desafio enorme, incomum, em que o actor tem de demonstrar que domina, na verdade, a arte de representar. Claro, chalaceia-se, ensaiam-se carícias a rondar o obsceno (nesses últimos instantes de vida, naquelas mentalidades, tudo poderá ser permitido…), tenta-se disfarçar o nervosismo… mas os espelhos lá estão a reflectir uma realidade nua e crua: a rendição ou a morte! E, no final, há morte e há rendição, porque nem todas as fidelidades são eternas e há as que são apenas aparentes, prontas a atanchar o venenoso ferrão na primeira boa oportunidade.
            Dir-se-á: vamos ao teatro para nele vermos reproduzidas as cenas com que os telejornais diariamente nos massacram? A resposta poderá estar na diferença, ou melhor, na indiferença: se o caso se passa ali à nossa frente porventura será mais fácil consciencializarmos os horrores cada vez mais frequentes neste dealbar do 2º milénio depois de Cristo!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 183, 19-04-2017, p. 6.
Fotos de Ricardo Rodrigues [retiradas, com a devida vénia, da página do TEC]

Um banco vazio e… um banco ocupado

            Há dias, no passeio com os netos pelo bairro, deu-me na veneta de seguir rumo diferente e passei por um recanto bem sossegado. Jardim cuidado, dois bancos, caixote para o lixo, distribuidor de sacos para os detritos caninos. Um melro saltitava pela relva e, na varanda de um rés-do-chão, o canito ladrou-nos compulsivamente, como que a dizer que não era aquele um território por onde humanos devessem passar.
Bancos vazios, na saudade imensa de uma conversa de anciãos...
            Lembrei-me de ver pelo meu concelho inúmeros recantos ajardinados assim, com bancos vazios, na saudade imensa de uma conversa de anciãos ou de algazarra infantil.
            E recordei também uma outra história verdadeira, não sei em que país, onde um ancião deixou parte da herança ao município para que mantivesse em bom estado o banco onde ele passara muitas tardes, junto ao curso de água que atravessava a povoação e onde suavemente se entretinham os patos e suas crias e iam bebericar os pardais – e ele entretinha-se a vê-los.
            Ano de eleições, este; ano de obras por toda a parte e o automobilista vê-se e deseja-se para seguir as placas DESVIO, sempre na dúvida, porém, se estarão actualizadas ou meramente esquecidas após o termo dos trabalhos, que o empreiteiro partiu para outra e a placa ali ficou. Soube, porém, que dessa vaquinha que dá pelo nome de Europa havia jorrado leitinho fresco para vilas e cidades que dessem prioridade à construção de ciclovias. E hoje não há aglomerado urbano que se preze que não tenha a sua ciclovia ou uma via pedonal, para o cidadão correr, mesmo que se situe em movimentada rua, mais poluída que charco ao pé de fábrica de químicos. Até Lisboa deixou de ser a cidade das sete colinas para se enfeitar de ciclovias, daquelas que são óptimas numa planíssima Holanda ou nas férteis planícies da nossa Gândara, onde as mulheres desde tempos imemoriais que vão de bicicleta para a amanha do campo, enquanto o homem vai pró mar.
            Lisboa, porém, foi mais longe, porque, como se sabe, está deserta de portugueses e prenhe de turistas. Uma imagem «chata», não há dúvida – que o estrangeiro vem e até gosta de ver gente e ouvir falar uma língua que é a quinta mais falada no mundo… E, vai daí, segundo consta, não esteve a autarquia com meias-medidas: contratou figurantes para se passearem nas ruas habitualmente vazias e se sentarem nos bancos plantados em meio da urbana poluição. Não é genial? Pois a informação vem numa reportagem que João Aragão pôs no youtubehttps://youtu.be/6frHVhxBoE0 – no passado dia 20 de Março. Foi maldade!
                                                                                  José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 706, 15 de Abril de 2017, p. 11.
 

terça-feira, 11 de abril de 2017

E uma pessoa sente-se abalroada!...

            Acedi de muito bom grado ao gentil convite que, por intermédio do seu dinamizador, Jorge de Castro, me foi endereçado pela equipa responsável, ao longo dos anos, pela manutenção destes regulares encontros, para prefaciar o livro que reúne, em jeito de balanço, o que foram cem sessões de Noites com Poemas.
            Acompanhara de perto a programação, ainda que não me haja sido possível dela beneficiar, senão mui raramente, mas… cri não ser complexo alinhavar considerações acerca, por exemplo, do papel da poesia na vida das pessoas e da comunidade, a poesia como deleite, a poesia como evasão e refúgio, pausa retemperadora, lugar ao sonho, arma, consciencialização, poesia-vida, vida em poesia!…
            «País de poetas» diz-se que é o nosso, pela facilidade com que, mesmo quase «virgens de letras» (mui sugestiva classificação do Prof. Ernesto Guerra da Cal a Isolina Salves Santos), pessoas ditas do ‘nosso Povo’ põem «o seu talento em cena» (Natael Rianço) e vão por aí adiante alinhando rimas e zurzindo, como quem não quer a coisa, na sociedade ímpia que os tortura.
            Imaginei-me, pois, a dissertar, em breves linhas, sobre esse papel catártico e subversivo da Poesia (aqui com letra maiúscula).
            Eis senão quando Jorge de Castro me atira para o computador, a 1 de Abril (e não era mentira!), o rascunho do alinhamento dos textos. 259 páginas! Arregalei uns grandes olhos de admiração e fui digitalmente folheando o volume. Daí o título destas minhas linhas: uma pessoa sente-se abalroada!...
            É que essas cem noites não foram aquele mero encontro, tertúlia de amigos e de curiosos que se deliciavam a dizer versos alheios e próprios, acompanhados, por vezes, de um toque musical para espairecer. Duas horas até à meia-noite, em jeito de eficaz pretexto para um suave adormecer em braços de fagueiras musas, na feliz expectativa de um ainda mais fagueiro amanhecer! Não! «Aquilo» – um mundo! – assumiu pouco a pouco tais dimensões que imaginamos contratorpedeiro gigante e somos abalroados mesmo, sem tir-te nem guar-te! Submersos, esmagados por tão fecundo caminhar, por tão variadas temáticas, portentoso manancial de ideias, personalidades, poemas, qual enorme biblioteca de estantes bem recheadas de preciosos livros, lombadas d’oiro, ricos pergaminhos … Mancheia de Cultura!
            Conta Jorge de Castro, em «alguma história», o que foi essa caminhada. Nada mais haveria, pois, a referir e, ao concluir a leitura dessa apresentação, olhei-me e perguntei-me que mais se poderia acrescentar, inclusive atendendo à forma sempre esbelta como sabe burilar as frases e as recheia de mui delicioso conteúdo. Estive para pegar no telefone e assinar desistência. Contudo, o cursor foi descendo, descendo e sempre a mostrar um crescendo de novidades e de temas permanentemente vestidos, no título, de mui sugestiva roupagem. E fui-me deixando ficar, na expectativa…
            Uma expectativa que não resultou gorada. Longe disso! O volume que ora temos nas mãos é muito mais do que esse repositório de afectos, cumplicidades e fraternidade. Relatos concisos, mas pormenorizados, de cada sessão, palavras elegantemente manuseadas, frases brandidas como floretes em rigorosa aula de esgrima… Que expressões culturais não foram aí abordadas? Mui difícil será dizê-lo! Que a poesia, afinal, constituiu pretexto para muitas viagens outras pelos mais variegados ramos do saber!
            Podia cá fora sentir-se aquela morrinha que nos entra, incómoda, ossos adentro; podia a jornada ter sido arduamente condimentada de fel e vinagre; podiam os noticiários ter-nos mimoseado mais uma vez, como é seu timbre, com os horrores de um mundo de marionetas manobradas por mãos esquivas e gigantes… Ali, porém, como que reunidos em torno de mui acolhedora lareira, os poetas deixaram tudo isso lá fora e a Cultura docemente os envolveu.
            Uma centena de vezes, aqui miudamente ora se conta.
            Relembrando os serões, reconfortamo-nos também.
            E brota-nos, espontâneo, inevitável, deliciado, ciciado e caloroso: bem hajam!

                                                                      José d'Encarnação
                                                   
Prefácio ao livro 100 Noites com Poemas, coordenado por Jorge de Castro. Edição de Apenas Livros, Lisboa, Abril de 2017, p. 12-13. ISBN: 978-989-618-547-3. Apresentado na Feira Medieval de S. Domingos de Rana, a 9 de Abril de 2017.

Da poesia dita popular

            Estava-se no pino do Verão de 1988. Chegara-me à redacção uma mancheia de versos. Considerei-os fora do comum, despretensiosos, mas acutilantes e eivados de comovente simplicidade. Dediquei-lhes uma página inteira – e tive o privilégio de receber, dias depois, uma carta do Prof. Ernesto Guerra da Cal, a aplaudir e a explicar o fundo significado daqueles ‘poemas’.
            Depois de Isolina Alves Santos, essa poeta ‘pastora virgem de letras’, vieram Celestino Costa, Natael Rianço, o alentejano «Carola»… e uma atenção especial, portanto, por parte da Associação Cultural de Cascais, em estreita colaboração com as juntas de freguesia do concelho de Cascais, a esses lídimos representantes do Povo, porque veiculam, ainda que em linguagem ingénua e em versos ‘de pé quebrado’, o sentir de todos nós – quais novos Aleixos dos nossos dias.
            Disso se falou. E do papel fundamental que, para o seu incentivo e divulgação, através de publicações condignas, detêm as associações de defesa do património – porque de património cultural imaterial se trata –, as juntas de freguesias, as câmaras municipais. E, claro, a imprensa local e regional, como repositório primeiro desses dolorosos gritos d’alma, desses confortantes regozijos, anátemas severos ou justificados encómios!
                                                                                  José d’Encarnação

É a síntese da intervenção feita nessa tertúlia a 16 de Janeiro de 2008, publicada no livro 100 Noites com Poemas, p. 94.  Na p. 95, «Nota biográfica».


 

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Os 50 anos do União Recreativa da Charneca

             Foram quase 250 as pessoas – sobretudo sócios e seus familiares e amigos – que participaram, no domingo, 2, na festa do 50º aniversário do União Recreativa da Charneca.
            Um entusiasmo transbordante, um indescritível espírito de equipa, uma… família! Charneca é, na verdade, uma aldeia de características únicas na freguesia de Cascais. Mas... vamos ao relato do que aconteceu e já se volta assunto.
            Passava pouco do meio-dia quando o salão de festas se abriu para que se pudesse observar a excelentemente documentada exposição, obra levada a cabo pela dedicação de Henrique Miranda da Costa e Filomena Lousada. Primeiro, numa sucessão de fotografias, os momentos mais significativos do que foram as actividades do União neste meio século: as festas tradicionais, as iniciativas teatrais e desportivas, as fases por que foi passando a sede. Na sala ao lado, o património histórico, ou seja, aquilo que os habitantes muito prezam como valores seus: os edifícios antigos, a fonte velha, o lavadouro público, a placa toponímica do Automóvel Clube de Portugal… Enfim, instantâneos de uma história local que – de jeito nenhum! – se quer obliterar!
            O almoço (saborosíssima massa de tamboril, com peixinho ido buscar directamente a Peniche, as cozinheiras foram longamente aplaudidas…) foi cá fora sob enorme toldo. Até o maroto do Sol não quis deixar de se associar à festa, bafejando-nos com os seus raios, pela zona transparente do toldo, obrigando a artimanhas para lhe neutralizarmos o bem caloroso entusiasmo.
            Esteve presente o Sr. Presidente da Junta, Pedro Morais Soares, que teve palavras de muito apreço pela colectividade, que bem conhece, mas que só esteve até pouco mais de meio, porque outra colectividade o esperava no Estoril (bem proclamamos nós que, nisso da Junta, tem de haver um Estorilexit!...). Ofereceu o livro dos teatros, lançado no dia 27, cujos autores, Manuel Eugénio e José Fialho estavam presentes e, no livro, se não haviam esquecido do que também no domínio do teatro o União tem sabido fazer. Foram galardoados com emblemas de prata e ouro, os sócios com 25 e 50 anos de associados, respectivamente. Felizmente, do núcleo inicial, ainda pudemos aplaudir, entre outros, José Augusto Pedroso (sócio nº 1, cujo filho dirige agora a colectividade), Lourenço Almeida e Sousa (sócio nº 2), António do Nascimento Dinis…
            Fechou a série de intervenções, o vereador Nuno Piteira Lopes, que assinalou o bom entendimento que tem havido entre a Câmara e a colectividade, aspecto que, aliás, como não podia deixar de se esperar das gentes da Charneca, também fora salientado pelo Presidente da Junta.

 Charneca, o verde donde se ouve o mar!
            Para prólogo da exposição, tive ensejo de escrever umas palavras, de que não resisto a transcrever início, até para servir de incentivo a que os leitores vão até à Charneca durante este mês de Abril, para a verem com os seus próprios olhos.
            «Anichadas por entre os pinheiros, as modestas casinhas foram surgindo desde tempos muito antigos, que o local, mui verdejante e com o incessante marulhar do oceano bem lá ao fundo, propício era à fixação.
            Charneca se chamou, porque de uma charneca se tratava mesmo. Terras para cultivo poucas, é certo; mas sempre algo se poderia colher e o mais importante era, de facto, viver o dia-a-dia na serenidade da boa vizinhança.
            O antigo fontanário dava a água precisa; no vale corria, aliás, uma ribeira e pelas encostas, surpreendentemente cobertas por flora mediterrânica (ali nas «barbas» do Atlântico…), poderiam retoiçar os rebanhos…
            A sensação que dá é de vizinhança desde sempre. E não terá sido outra a razão por que todos se conheciam e entreajudavam e, há 50 anos, debatendo-se o nome da colectividade a criar, uma palavra surgiu de imediato: União! Que essa era, afinal, a tradição! Aliás, que melhor exemplo se poderá apresentar do que foi a pronta interligação que se estabeleceu entre os moradores do núcleo histórico e as gentes novas que, das mais desvairadas partes, vieram para o novo Bairro das Chetainhas? Depressa houve assimilação e o que corria sério risco de vir a ser «duas Charnecas» nunca chegou a acontecer. Pela vontade de todos.»
            Uma terra única, de facto, onde apetece viver! E a festa dos 50 anos foi disso prova bem retumbante! Parabéns!
                                                              José d’Encarnação

            Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 181, 05-04-2017, p. 6.
            Fotos de Guilherme Cardoso.
                                                                
Descerramento da lápide comemorativa pelos sócios nº 1 e nº 2
Aspecto da exposição documental

Panorama do almoço de aniversário

Instantâneo do discurso do presidente da Assembleia Geral
Saudação da representante da Federação das Colectividades de Cultura e Recreio
 
Mensagem do Sr. Presidente da Junta

 
 

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Atamancar

             Deu-me para tentar descobrir a etimologia da palavra «atamancar». Não encontrei. Porventura virá de tamanco, aquele calçado mal enjorcado a que se lança mão, digo, o pé, para andar por casa, sem cerimónias, se não se estiver a falar dos tamancos das varinas com sola de pau, hoje visíveis apenas nos trajos dos ranchos folclóricos.
            Soava-me a palavra colhida nalgum daqueles dialectos orientais, com que os Portugueses entraram em contacto aquando dos Descobrimentos, embora (confesso a maldade!) me apetecesse contar uma anedota:
            - Olha, mãe, o pai tá manco!
            Coxeava o senhor, de tamancos calçados, e o pegulho não esteve com meias medidas e saiu-lhe o chiste de pronto: «Tá manco!».
            Pois, afinal, não é chiste, acabei por descobrir: existe em castelhano «tamango» (em Trás-os-Montes, é chamanco) e designa calçado próprio dos gaúchos, feito sobretudo com peles de animais, usado para mais comodamente andar pelas montanhas e pelos campos. Nós preferimo-los em casa, claro, sem requintes… Suspeita-se, porém, que foram os Portugueses quem assim os baptizou. Aliás, na 1ª edição (1954) do seu Diccionario Crítico Etimológico de la Lengua Castellana (na 3ª, de 1982, já não inclui a palavra), Joan Corominas aponta-lhe origem argentina e chilena, mas acrescenta que foi tomado do português ou do leonês, «tamanco», acrescentando tratar-se de vocábulo «de origen incierto, probablemente emparentado con el mozárabe «amínq», ‘especie de zapato’, y quizá con el mozárabe «amánka», […] que pueden ser de origen prerromano». Ora toma!
            E porque me deu agora para atamancar? Já o meu amigo o suspeitou: porque, hoje, atamancam-se as leis, atamancam-se as obras, atamancam-se as mensagens no correio electrónico sobre um assunto atamancado… E quem vier atrás que… descalce o tamanco, pois então!... Vivemos num país atamancado!
                                                                       José d’Encarnação
 
 Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 219, Abril de 2017, p. 10.

Elementos do Rancho Coral e Coreográfico da Sociedade Musical
de Cascais, em desfile na Feira do Artesanato. Não podiam faltar,
claro, os tamancos típicos das nossas varinas!
 

 

Rendibilização ou… estupidez?

             1. Recebi a informação de que a ‘consulta – 30 m’ estava marcada para o dia Y. Achei piada: eu iria ter direito a uma consulta de 30 minutos e isso vinha especificado na informação. Trinta minutos! Pasmei, porque o meu médico demora comigo habitualmente um quarto de hora, se tanto; e, quando precisa de mais, porque algo de estranho aconteceu, ninguém fica ali pespegado a olhar para o relógio.

            2. Muitos de nós terão recebido o vídeo em que a menina responde à professora que o que gostava mesmo de ser era um smartphone, porque os pais gostam muito do smartphone; jogam muito no smartphone e nunca brincam com ela; porque a mãe nunca se esquece de carregar o smartphone, mas, às vezes, esquece-se de lhe dar comida a ela; porque o pai dorme com o smartphone na almofada e nunca dormiu abraçado a ela…

            3. Muitos de nós terão também recebido o vídeo de um casal à mesa. Pode aceder-se a ele no youtube: «A última vez que acabou a bateria». A cena começa quando, chateado de todo, o marido se apercebe de que a bateria do smartphone acabou e, para matar o tempo e não ficar ali feito bacoco, atira de vez em quando uma pergunta: «Você pintou o cabelo?». «Sim», responde a mulher, «há quatro semanas». E, pergunta lenta atrás de pergunta lenta, verifica-se que o homem não sabe que a mulher há muito mudou de patrão; que morrera a amiga íntima dela (a cujo velório ele próprio assistira, mas nem se lembrava). E o clímax atinge-se quando um catraio aí de uns quatro anos vem pedir à mãe para continuar a brincar mais um bocadinho e o senhor, franzindo o sobrolho, pergunta a medo: «É meu?... E quando foi?». «Da última vez que acabou a bateria!», responde a mulher.

            4. Entro na pastelaria aonde vou buscar o almoço. E pasmo: um senhor, de auscultadores de alta-fidelidade, come a ver um filme no tablet e diante dele estacionam, bem à vista, dois smartphones…

O senhor, a comida, o fiklme e os dois telemóveis...
            5. O António esteve meses a fio num ambiente asséptico, após implante da medula. Entre a vida e a morte. Tive, enfim, ocasião de o abraçar, após, ao longo de meses ter contactado com a família e os amigos a saber dele e, finalmente, já o ter conseguido apanhar pelo telefone. Pois também em relação a ele, foi o abraço «tás com excelente aspecto, homem, folgo muito em ver-te, que bom!» – e desapareceu pouco depois, porque outra tarefa urgente o esperava.

            E fico a pensar se isto é rendibilizar o tempo, aproveitar todos os minutos ou, ao invés, a mais pura estupidez. Será que já nos esquecemos de… viver?

                                                        José d’Encarnação

Renascimento (Mangualde), 1 de Abril de 2017, p. 11.