quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Caixa Solidária

       Aconteceu com outros bairros do concelho de Cascais. A oportuna iniciativa de colocar uma Caixa Solidária. A intenção era ter um espaço onde, discretamente, os moradores pudessem colocar géneros alimentícios disponibilizáveis para os mais carenciados, que à Caixa também discretamente acederiam

      Trata-se de ajudar a ‘classe’ (digamos assim) que, neste momento, está a passar por dificuldades. A classe remediada, média, aquela que dependia dos seus salários para viver o dia-a-dia. Muitos dos empregos, sabe-se, sumiram como que por encanto e quem tinha despesas mensais normalmente suportadas pelo ordenado de um dos cônjuges ou dos dois vê-se agora em palpos de aranha para sobreviver.

      A dificuldade repercute-se, de modo especial, ao nível da alimentação. Se não tenho carne, como pão; se a sopa não está tão suculenta como deveria ser, acrescenta-se-lhe uma côdea…. Enfim, vamos vivendo…

      A Caixa Solidária do meu bairro foi roubada. Não porque dela se tenham retirado os víveres que, diariamente, como tutor, eu lá colocava, provenientes das doações de várias empresas de Cascais através da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal; mas não é que o estupor da Caixa era, de facto, bonita, jeitosa, bem confeccionada?!... Enfim, mesmo a calhar lá para a minha despensa: pões aqui os enlatados, ali as bebidas; ao lado, as mercearias ou os produtos de higiene ou para o canito e o gato . Tudo mesmo a condizer para uma despensa. Aliás, no próprio dia em que a Caixa foi colocada no sítio, dizia-me alguém do próprio executivo camarário: «Realmente, um modelo a usar na nossa despensa!». E era verdade!

      Por isso, depois de algum tempo de serviço público, a Caixa acabou por se escapulir para um serviço… privado! Penso eu que, neste momento, estará bem resguardada, sem ter sol nem chuva, na casa de alguém. Espero que lhe sirva, lhe faça bom proveito e lhe relembre a possibilidade de colocar ao dispor dos outros algo que tenha a mais e que possa suprir dificuldades alheias.

      A Caixa Solidária foi agora reposta, presa, para que não seja tão facilmente removida.

      Não acredito no acaso. O facto de ter ficado com alguns mantimentos, que não pude colocar à disposição de todos, fez com que tentasse procurar quem poderia estar em dificuldades. E a surpresa veio donde menos esperava. Conversa puxa conversa e as lágrimas a custo contidas e a emoção a embargar a voz foram mais do que eloquentes. Uma destas situações envergonhadas de quem toda a vida nunca teve de pedir. E, neste momento, essa é a dificuldade maior, para além de dificuldade concreta: a acrescida dificuldade psicológica!

      Fiquei a saber, portanto – e quantos mais casos não haverá! –, para onde poderia também encaminhar parte do que me era entregue. E fiquei a pensar que, na realidade, talvez possamos todos, ao final do dia, pôr a mão na consciência: «E se eu passasse pela Caixa de Solidariedade a deixar lá uma embalagem de batatas, um pacote de leite?...».

      Está bem, sabemos que pode haver aproveitadores, pode haver quem não necessite e se esteja a locupletar com aquilo que devia ser entregue ao vizinho que, de facto, necessitava. Um risco, porém, que vale a pena correr! Digo eu

                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 325, 2020-08-26, p. 24.

 


 

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Santo António nos cantares da Beira Baixa

       Prossegue António Salvado na sua mui louvável saga de publicar em livro o que despretensiosamente intitulou de «Leituras». Ecos, na verdade, de leituras feitas, mas que vale a pena partilhar, por serem reflexões oportunas.

            Desta vez, o nº XII da série, traz a chancela da Universidade Sénior albicastrense, por ter sido aproveitado já em Julho deste ano de 2020 para uma palestra no seio dessa instituição, evocando, em 30 páginas, Santo António, aqui considerado não apenas como homem, orador e santo, mas também como «personagem» na poesia popular da Beira Baixa.

            Traça-se, por conseguinte, mui brevemente, a biografia de Fernando Martim de Bulhões, nascido em Lisboa pelo ano de 1190, que viria a falecer em Pádua em 1231.

            Num segundo apartado, revela-se a sua cultura, os dotes oratórios que pôs ao serviço da comunidade, destacando o autor «o combate aceso às injustiças sociais, o elogio da humildade, a veemência posta na expressão da paixão apostólica; o calor humano, enorme, continuamente enriquecido no testemunho do amor por todos aqueles que mais sofrem na sua miséria quotidiana» (p. 10).

            Merece referência especial o quadro do século XVI que retrata o santo e que se mostra no Museu Tavares Proença, atribuído a Grão Vasco ou a Francisco Henriques.

            Ao santo milagreiro de todos bem conhecido – mormente activo em questões amorosas, que chegou a ser elevado ao posto de coronel, pelo incontestável apoio dado às tropas portuguesas, nomeadamente ao Regimento XIX de Cascais, na batalha do Buçaco, e como tal recebia tença – dedica António Salvado maior atenção, por não estar ausente na poesia popular da Beira Baixa.

            Desde logo, num bem curioso “romance” recolhido na Sertã, em que o Santo contribuiu para mostrar a inocência de um presumível assassino já condenado. Depois, o responso, dito por todo o país, quando algo se perdeu e quer achar. António Salvado transcreve a versão de Vila Velha de Ródão e a de Proença-a-Nova. Finalmente, algumas das muitas quadras dedicadas a Santo António em voga por Idanha-a-Nova.

            Apresenta o autor, a terminar, um conjunto de 80 frases retiradas das OIbras Completas editadas pela Lello e Irmão, do Porto, em 1987, na tradução de Henrique Pinto Rema. Uma selecção naturalmente «muito difícil», devido à «inexcedível, singular e diversificada riqueza dos conteúdos dos textos».

            Óbvio é, no entanto, que por elas perpassa também o pensar do seleccionador, a sua alma de poeta, de filósofo, de interventor. Quando lemos «O adulador serpenteia, o detractor injecta veneno» ou «A rapina respeita às pessoas altamente colocadas; o furto, às de baixa condição», frases lapidares até a lembrar a escalpelizadora poesia de um António Aleixo, não estaremos longe da verdade se ali escutarmos também o cúmplice enleio de um outro António (e vão três!), o Salvado!

            Desde muito jovem que me habituei a recrutar das leituras as frases para mim mais significativas e sinto-me contente por, já então, a minha noção histórica (digamos assim) estar alerta. É que dos livros indiquei sempre a data e local de edição, assim como a página donde retirei a passagem. E porque é que falo nisto? Porque – devido a, na Internet por exemplo, encontrarmos sentenças célebres dos mais variados autores – nada se explicita do livro ou circunstância em que a sentença foi escrita ou proferida.

            Dou um exemplo: ainda não consegui saber qual o autor da conhecida máxima do homem, da árvore, do filho e do livro. Lê-se num dos diálogos entre Jacinto e Zé Fernandes, em A Cidade e as Serras, romance publicado em 1901:

                « – É curioso… Nunca plantei uma árvore!

                – Pois é um dos três grandes actos sem os quais, segundo diz não sei que filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem… Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem».

                Por conseguinte, ou porque desconhecia mesmo ou porque não lhe apeteceu investigar, Eça preferiu escudar-se num vago «não sei que filósofo». Uma coisa fica certa, porém: antes de 1901 já o dito era comum e, por isso, não pode ser atribuído a personalidades do século XX!...

            Não vou ao extremo de solicitar, neste caso de «Leituras XII», que de cada frase se tivesse indicado a página, porque se menciona a edição. Foi mero aparte meu, embora não estejamos livres de, mais dois menos dia, «O adulador serpenteia, o detractor injecta veneno» venha a ser considerado ‘dito popular’ sem autoria atribuída! Sinal de que o Povo o adoptou – e é um bom sinal; sinal de que a sua autoria se perdeu ‘na noite dos tempos’ – e, do ponto de vista histórico, esse não é um bom sinal. Lá teve o Eça de se escudar num vago «não sei que filósofo»!... Aqui, sabemos que foi Santo António!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado no jornal Reconquista (Castelo Branco), 20 de Agosto de 2020, p. 27. 

 

Palmas para as palmas!

           Passeava-me, há anos, pelo pinhal junto a casa de meus pais. A zona, quase nas faldas da Serra de Sintra e perto do Atlântico, usufrui, porém, de mavioso microclima mediterrânico. Meu compadre tem excelente olival, onde íamos apanhar azeitonas para retalhar e comer de conserva, e o pinhal – que um incêndio já reduziu a cinzas – abrigava aqui e além moitas de palmas. Deixei-me enlevar pelas recordações – recordo.

            E vi as mãos, já encarquilhadas mas ligeiras, de minha avó a entrançar as palmas. Ficava, então pelos meus cinco-seis aninhos, de olhos esbugalhados a ver como tudo aquilo ganhava forma. E depois eram os capachos, as esteiras… Pediam meças, estas, pelo variado das cores, aos tapetes de Arraiolos, pois então! E havia os abanos, com cabo de pau ou mesmo de cana, para atiçar o lume das sardinhitas ou das febras. E as seiras, as alcofas e os chapéus também.

            Escusado será, pois, esclarecer que fiquei deveras contente com a longa e bem merecida reportagem, de Maria Simiris, na edição de Julho do nosso jornal, «’Palmas douradas’ levam São Brás de Alportel e a serra algarvia à alta-costura». Abençoadas mãos, abençoadas gentes, abençoada Maria Cerqueira Gomes! E teve honras de visita da Ministra da Cultura, que também esteve no Centro de Artes e Ofícios, uma instituição que nunca me cansarei de aplaudir.

            Senti-me reconfortado com a minha terra a sair de si e a mostrar-se ao País! Já não é apenas a cortiça na alta-costura – que bom!

            E mais deliciado fiquei, outro dia, quando, em mui apreciado concurso da RTP 1, uma das perguntas foi: «Qual o artesanato típico do Sítio do Desbarato?».

            Esparto, palma, cortiça – uma trilogia a aplaudir. E a acarinhar!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 285, 20-08-2020, p. 13.

Post-scriptum: Teve Emanuel Sancho a gentileza de me informar - para que conste e eu acho muito bem! - que é «no nosso Museu do Traje que a Maria João Gomes / Palmas Douradas tem o seu atelier permanente de trabalho e exposição». Mais uma importante 'valência', por conseguinte, em que o Museu se afirma ao serviço da comunidade, na sua singular óptica de museologia social.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Ele deu uns açoites ao Rei!...

              Em Setembro de 1987, num dos momentos de pausa do IX Congresso Internacional de Epigrafia Grega e Latina, em Sófia, na Bulgária, a minha colega Zlatozara Gočeva entregou-me uma carta de mãe para a rainha Joana de Sabóia, que vivia exilada no Estoril. A mãe colaborara intensamente com a Rainha na Cruz Vermelha e o pai fora um dos braços direitos do Rei. Regressado a Portugal, tive ocasião de encontrar a Rainha e de lhe entregar a missiva.

            Muitos de nós terão histórias para contar acerca destas presenças reais exiladas em Cascais e nos Estoris. Recordo o Rei Umberto II de Itália, que era uma simpatia e se dava com toda a gente; recordo como a população vibrou, em 1955, com a pompa do casamento, no Estoril, de sua filha, a princesa Maria Pia de Sabóia.

            Não foi por causa da II Grande Guerra e das revoluções subsequentes que os Condes de Barcelona vieram para Portugal, como se sabe, mas em consequência da guerra civil espanhola. Fixaram-se numa vivenda no Alto do Estoril, a Vila Giralda, que tive o privilégio de visitar, em companhia de José Antonio Gurriarán, quando este andava a preparar o livro «Um Rei no Estoril», que viria a ser publicado, em 2001, pela Câmara de Cascais e pela D. Quixote.

            Antes de contar dois casos, um que vem no livro e outro não, devo acrescentar que das minhas recordações uma das imagens mais fortes é a de toda a família dos Condes a assistir, nos primeiros anos da década de 60, a todas as cerimónias da Semana Santa, na igreja de Santo António do Estoril. Aliás, lembro-me que colegas meus que frequentaram a Escola Salesiana (então Asilo de Santo António) me dizerem que tinham jogado à bola com o Juanito, no oratório salesiano. Toni Muchaxo fala sempre do Juanito; e o Conde achava sempre muita piada quando – muitos anos mais tarde – ainda o tratavam assim, porque o nome lhe fazia recordar belos tempos.

            Manteve-se em Portugal, após o regresso da realeza a Espanha, a irmã de Juan Carlos, Margarida de Espanha, Duquesa de Sória, cega de nascença, que era até há uns anos (agora não sei) presença habitual na piscina do Tamariz.

            Vamos então às histórias.

            Primeiro, a duma reacção à publicação do livro de Gurriarán. Um dos leitores do Jornal da Região, o médico veterinário Rui de Jesus Ribeiro achou por bem repor a verdade: é que, antes de a Família real, vinda da Suíça, se ter instalado no Alto Estoril, viveu na «Casa da Rocha», que Rui de Jesus Ribeiro – em carta à redacção do jornal, publicada a 22 de Maio de 2002 – informa ser «uma casa com fama por ter sido construída por Tertuliano Lacerda Marques para o Prof. Augusto de Vasconcelos e dada por concluída em 1924». E o que é que sucedeu? A senhora Condessa tinha um caniche castanho fulvo, o Rusti, que foi tratado durante algum tempo na clínica do Dr. Ribeiro; mais tarde, o Rusti desapareceu e foi o pranto que se imagina! Mas, recordando quão bem fora tratado, tendo sido eventualmente atropelado e com uma pata partida, o Rusti foi ter ao portão do quintal da clínica e, quando o Dr. Ribeiro, reconhecendo-o, lhe abriu o portão, ele logo correu, de pata no ar, para o local dos tratamentos!

            Fica a história do Rusti, a completar o que Gurriarán conta, nas p. 267-269, acerca da estada da família na «Casa da Rocha», junto ao mar.

            O livro de José Antonio Gurriarán foi elaborado à base de muita conversa com pessoas que haviam privado com o Rei. Uma delas foi António de Sousa Lara, cuja casa de família fica perto de Vila Giralda. Contou-lhe seu avô que os meninos jogavam à bola na rua e amiúde a bola lhe ia para o jardim e lhe estragava as roseiras. Tendo-se queixado ao Conde, este autorizou-o a dar-lhes uns bons açoites se tal voltasse a acontecer. Aconteceu! E os açoites fizeram-se sentir! E o mais curioso é que, reencontrando-se num restaurante em Madrid, já o avô de Sousa Lara tinha mais de 80 anos, el-rei assim o apresentou aos amigos:

            «Sabem quem está aqui? O único homem vivo que pode orgulhar-se de ter dado uns açoites ao Rei de Espanha!» (p. 59-60).

            E mais se não comenta agora, está bem de ver!...

                                                                                   José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, a 10-08-2020: https://duaslinhas.pt/2020/08/ele-deu-uns-acoites-ao-rei/

 

Sons de Cascais pelos anos 50...

            Mais atentos nos sentimos agora, com as restrições pandémicas, a quanto nos rodeia, até porque, para muitos de nós, ‘confinamento’ significou ficar-se preso entre quatro paredes. Tudo ganhou maior dimensão. Estranhámos a ausência de tráfego; já não há riscos brancos de aviões desenhados no azul; acabámos por perceber melhor que havia, todas as manhãs, um casal de rolas em mui dengoso despique; até o esvoaçar das moscas se ouvia…

            Interroguei-me pelos sons de Cascais. Desta sua zona ocidental, sobretudo. Já a 28 de Maio de 2017, aquando do Concerto Acústico que o grupo cascalense «Cantares da Terra» levou a efeito no auditório da Casa das Histórias Paula Rego, fui desafiado a falar dos «Sons de Cascais». E aceitei, por me haver proporcionado mui salutar retorno à minha infância, passada onde ainda hoje eu vivo. A pandemia trouxe tudo de novo à tona.

 

            Pelas noites de Verão, havia sempre um grilo ou dois a despique com o ralo da esquina na terra em restolho. Um desafio para, no dia seguinte, tentarmos, mui sorrateiramente, descobrir onde é que o grilinho se escondia e, caso a paciência nos houvesse proporcionado a descoberta, armados de uma palhinha, esgaravatávamos na toca e fazíamo-lo sair para o mantermos depois em cativeiro, com a gaiola no prego da parede ao pé da porta, com folhinhas de alface para o alimentar. Grigri, grigri… Deliciávamo-nos.

            Também ouvíamos o mocho. Ou dois. Geralmente, dois. Um, no alto do pinheiro bravo meio despido; o outro, não se sabia onde estava, só se ouvia além. Um piar triste, de mau agoiro – dizia-se, certamente por só se ouvir de noite, nesse tom de lamento.

            Personagens a que se ligasse o som: três. As peixeiras, a Carolina ou «a menina Sara»: peche fresco! – era o pregão diário. Ou o mais comum, em todo o Portugal: Vivinha da costa, ó freguesa! O azeiteiro, de carroça armadilhada com toda a espécie de trastes para o azeite, o vinagre, o petróleo, o álcool desnaturado… Fazia-se anunciar, semanal ou quinzenalmente, por uma corneta, que eu admirava, toda luzidia no seu amarelo. Nunca fui capaz de lhe pedir para soprar nela. A terceira personagem vinha de vez em quando e eu tinha por ele uma ‘atracção’ especial (se calhar, por isso é que fui para Arqueologia!): era o Mariguta! Ferrevelhe!– apregoava ele, numa voz quase de falsete…

            Então e motores não havia? Na quinta ao lado, o guincho compassado de um aeromotor a tirar água do poço. De vez em quando, um cocciolo. Já não me lembro do nome do dono, mas esse primeiro modelo das motorizadas era a admiração da pequenada! Chamava-se assim porque era a marca dele.

            De carros lembro-me do Volkswagen da Quinta da Bicuda. Nem sempre queria pegar e lá ia o Sr. Joaquim dar duas ou três voltas à manivela à frente para o motor de arranque dar de si!

            No ar só a “avioneta do Champalimaud”, que levantava voo da pista da Marinha. Por vezes, alguém se aventurava a fazer com ela o que hoje sei que se chamam loopings e ficava com um medo danado que aquilo caísse. Mas também sonhava como seria aventura guiar uma geringonça daquelas.

            Não, errei, não era só a avioneta familiar, eram também os caças da Base Aérea de Sintra, que vinham roncar para os céus de Cascais em exercício.

            E, por falar em exercício, ocorre-me sempre aqueles dois dias, creio que foram dois, em que tivemos fogos reais da artilharia antiaérea e de costa. Todas as baterias apontadas ao Guincho! As bombas zuniam pelo ar, que medo! Tinham dito que precisávamos de ter as janelas abertas, como na altura em que o canhão de Alcabideche fazia fogo e era um tiro a ribombar pelas quebradas! E os caças também desciam a pique sobre a zona da gurita ao pé do Guincho e largavam bombas. Um cenário de guerra, com os fios das comunicações estendidos ao longo das vias…

O canhão de Alcabideche
O canhão de Alcabideche...

            Guincho faz-me lembrar noites negras de Inverno. O vento soprava forte da serra, o aguaceiro tentava entrar pelas telhas vãs, roncava o farol do Cabo da Roca e ouvíamos o fragor da rebentação. «Que Nossa Senhora proteja os marítimos!» – balbuciava minha mãe. Ouvia-se bem em Birre, na Barraca de Pau e até no Cobre, porque a ausência do casario e a limpidez da atmosfera traziam-nos de mais perto o rugido das vagas, o angustiante clangor da «roca» da Roca… Nevoeiro no mar! Deus queira que não haja naufrágio, se não lá teremos a sirene a chamar os bombeiros.

            A sirene ainda hoje nos acompanha. Dia em que não toque o meio-dia – em Cascais, nos bombeiros dos Estoris e nos de Alcabideche – mais ou menos em uníssono, é dia em que nos perguntamos porquê, que terá acontecido? O toque do meio-dia é sagrado, quase a lembrar o canhão que, ao meio-dia solar em ponto, disparava no Palácio Real da Pena. Há todo um código de toques: dois, acidente de viação; três, incêndio; quatro, desastre no mar.

ooo

            A pandemia e o seu cortejo de reclusões a transportarem-nos, portanto, para… um outro mundo, em que os sons da Natureza bem se sobrepunham a um raro matraquear mecânico e os velhotes ainda longamente mantinham ouvidos ‘de tísico’, capazes de descobrir onde é que rato andava a fazer das dele!...

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, a 08-08-2020: https://duaslinhas.pt/2020/08/sons-de-cascais-pelos-anos-50/

 

sábado, 8 de agosto de 2020

Hoje há barrão na serra!

                 Se, dia afora, a serra de Sintra se apresentar coroada de nuvens, é certo e sabido que haverá vento pela tarde. As baixas pressões sobre a baía em tempo de calor provocam a vinda do ar lá da serra, a fim de tudo ficar mais equilibrado. Normalmente, é já noite adentro que o equilíbrio se restabelece. Sabemos disso os que há muito habitamos Cascais e o barrão funciona como excelente indicativo meteorológico.

            Proclama-se, agora, num dos painéis políticos que o clima vai constituir um dos temas fundamentais a debater nos próximos tempos; e os partidos ensaiam já estratégias para que, nesse aspecto, se logrem melhorias sensíveis e ainda maiores do que as que o vírus conseguiu alcançar. O clima e a política!

            Curiosamente, o clima de Cascais foi, ao longo dos tempos, chamado a intervir – julgo que eficazmente – na política.

            Uma das primeiras vezes foi no período em que estávamos sob o domínio espanhol. Cientes de que essa união ibérica nos seria muito mais proveitosa se a capital dos dois reinos fosse Lisboa e não Sevilha e, muito menos, Madrid, gerou-se todo um movimento para mostrar as excelências da cidade e seus arredores, com vista a seduzir o rei a ter aqui a sua Corte. Não se conseguir; mas é justamente no «Livro das Grandezas de Lisboa» (Lisboa, 1620), de Frei Nicolau de Oliveira, que vem um dos mais rasgados elogios ao clima cascalense, aliás tão conhecido é que a Sociedade Propaganda de Cascais agarrou numa das frases e a teve durante largos anos no cólofon das suas cartas: «Cascais é a mais sadia terra que se conhece em Portugal».

            Escreve Frei Nicolau acerca da «notável vila de Cascais»:

            «[…] Na qual parece que quis a natureza ajuntar tudo o bom, que há do Oriente té a mesma vila, dando-lhe puríssimos e temperadíssimos ares, de modo que não há Verão tão caloroso que nela faça sentir grande calma, pela vizinhança do mar Oceano Atlântico, que quase a cerca, e da fresquíssima Serra de Sintra, que, com frescos e brandos ventos, ficando-lhe da parte da terra, lhe está refrescando o ar, que o Sol com seus raios aquenta. Nem há inverno tão rigoroso, que nela faça sentir grande frio, por respeito dos ventos sul e noroeste que, de ordinário, naquele tempo ventam e de si são mais brandos que o norte e nordeste do verão. E assim é a mais sadia terra que se sabe em Portugal e em que os homens mais vivem e mais sãos e donde de todo está desterrado um mal que a tantos consume a vida, que é a malenconia» (fol. 78 verso).
 

            Pelos finais do século XIX, com a vinda dos reis a banhos, Cascais arvora-se em estância balnear. Havia, portanto, que voltar a tecer encómios às excepcionais qualidades do seu clima. Nisso se aprimoram as instâncias locais, sensibilizando os cientistas a estudarem as suas características ímpares.

            Conhece-se o duelo travado, nos primórdios do século XX, entre Cascais vila e as suas duas rivais: o Estoril e o Monte Estoril. O Estoril acabaria por ganhar em prestígio, o que, no entanto, não desmereceu Cascais. Em todo o caso, foi o clima do Estoril aquele que mais concitou as atenções, tendo no cientista goês Daniel Gelanio Dalgado um dos mais acérrimos propagandistas. Logo em 1906, por ocasião do XV Congresso Internacional de Medicina, reunido em Lisboa, apresentou a comunicação «The Climate of Lisbon, Mont’Estoril and Cintra», publicada em Londres nesse mesmo ano. O objectivo era mostrar como toda a zona constituía mui excelente estância de inverno, de longe superior às zonas de vilegiatura então na moda, como Biarritz, Cannes, Nice!... Entusiasmado, o Dr. Dalgado chega a garantir que, nesta Riviera portuguesa, «os sapatos nunca ganham bolor, as ruas não estão húmidas de manhã, os telhados não se cobrem de musgo e o ferro nunca cria ferrugem» («The Termal Springs and the Climate of Estoril»¸ Paris, 1910, p. 36).

            Não admira que, perante tão interessantes pesquisas, se haja instalado, em fins de 1912, no Monte Estoril, uma estação meteorológica, que funcionou de Março de 1913 a Março de 1915. E, em 1930, a Comissão de Iniciativa e Turismo do Concelho de Cascais instalaria, também no Monte Estoril, uma nova estação meteorológica, que chegou a publicar dois boletins mensais, em português e em inglês.

Jardim Carlos Anjos, Monte Estoril. Nesta foto, de César Cardoso, vê-se parte de um dos aparelhos da estação metereológica
Jardim Carlos Anjos, Monte Estoril. Nesta foto, de César Cardoso, vê-se à esquerda, parte de um dos aparelhos da estação metereológica

            Reuniu-se em Lisboa (Outubro de 1930) o XIII Congresso Internacional de Hidrologia, Climatologia e Geologia. Não quiseram os Drs. Armando Narciso e Marques da Mata deixar de aí apresentar uma comunicação sobre «Clima da Costa do Sol», que a Sociedade Propaganda da Costa do Sol viria a editar em opúsculo.

            Tendo nós, nesta 2ª metade do ano de 2020, a perspectiva de que – apesar dos benefícios do vírus – possivelmente daqui por diante não lograremos diferençar bem as estações do ano, não deixa de ser curioso ler o que ambos os cientistas então declararam:

            «É esta uma região sem inverno. Aqui, a seguir a um verão suave e prolongado e a um outono curto, sucede-se uma prematura e longa primavera que abrange quase dois terços do ano. Passadas as leves borrascas outonais, a atmosfera limpa, as brisas acalmam-se e o sol brilha, num céu transparente, de manhã à noite» (p. 8). Ainda recordo de ler, a propósito, na publicidade da Junta de Turismo da Costa do Sol: «Dias sem sol: 0»!...

            Conhece-se a preferência que houve, durante a II Grande Guerra, por Cascais como «lugar de exílio». Havia, pois, que aproveitar a vinda de refugiados para realçar os trunfos naturais de que se dispunha. Não será, então, por mera coincidência que o Professor Herculano Amorim Ferreira, o primeiro director do Serviço Meteorológico Nacional, escreveu, em 1941, para a Junta de Turismo de Cascais, o opúsculo «Elementos para o conhecimento do clima do Estoril», texto da comunicação que apresentara, a 4 de Julho de 1940, numa sessão da Academia das Ciências de Lisboa, de que era académico correspondente. Recorto uma passagem:

            «Como o Estoril tem fama de ventoso, sobretudo no verão, pode mencionar-se que os valores já apurados da velocidade média diurna do vento no Estoril são sempre inferiores aos valores correspondentes em Lisboa»: 13,5 km/h (no mês de Julho, «que é o mais ventoso»), contra 19,1 km/h em Lisboa.

            Para onde o barrão da serra hoje nos levou!...

            Se, agora, os ares não são exactamente como dantes, resta-nos a possibilidade de – através dos nossos ecológicos comportamentos – contribuirmos cada vez mais para a amenidade do clima de que ainda nos é dado usufruir!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, a 25 de Julho de 2020: : https://duaslinhas.pt/?p=2421

 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Na cauda, veneno!

               Era pelos anos 50.

            À beira dos caminhos: silvados, carrascais, moitas de zimbros, trovisco, estrepes, murtinhos, valados de pedra solta a delimitar toscamente os terrenos…

            Nenhuma preocupação pela conservação das espécies, porque lagartixas, osgas, lagartos, cobras por aí se multiplicavam e a passarada tinha alimento bastante para chilrear de contente.

            Lembro-me como se fora ontem.

         A caminho da pedreira, depois do almoço em casa comigo, meu pai apanhara uma cobra de invulgar tamanho. Levou-o e foi, entre os trabalhadores, uma algazarra. Se bem pensaram, melhor o fizeram. Sob o alpendre, após a largada do trabalho, às 5. Corta-se um palmo do rabo, outro palmo da cabeça, esfola-se, esquarteja-se…

          Acompanhado por um garrafanito de 5 litros ido da taberna do Torretas, o pitéu deliciou. «É como enguia frita!» – comentava-se. Eu também comi um pedaço – que criança não podia ficar a augar. Soube-me bem e, vida afora, de vez em quando, perante o espanto dos demais, ainda sou capaz de me ufanar:

           – Eu já comi cobra!

         «Corta-se um palmo do rabo»… A ideia era comum: na cauda estava o veneno. Como a dos temíveis al

acraus, «dói muito, mãezinha, dói!»….

          Como, anos mais tarde, descobri que essa história do veneno na cauda tinha outra conotação, mais sofisticada. Como a de ires passando suavemente a mão pelo pêlo, que bom, o adversário tem experiente treinador, técnica apurada… E, no final, zás! A ferroada! Qual abelha a sentir-se em perigo.

           Creio ser por isso que os gatos inevitavelmente empertigam o rabo quando a mão acariciadora se aproxima de trás:

           – Cuidado, aqui acaba gato!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 781, 01-08-2020, p. 11.

O lacrau a guardar a casa de Dalila Garrido!