Se,
dia afora, a serra de Sintra se apresentar coroada de nuvens, é certo e sabido
que haverá vento pela tarde. As baixas pressões sobre a baía em tempo de calor
provocam a vinda do ar lá da serra, a fim de tudo ficar mais equilibrado. Normalmente,
é já noite adentro que o equilíbrio se restabelece. Sabemos disso os que há
muito habitamos Cascais e o barrão funciona como excelente indicativo meteorológico.
Proclama-se,
agora, num dos painéis políticos que o clima vai constituir um dos temas fundamentais
a debater nos próximos tempos; e os partidos ensaiam já estratégias para que,
nesse aspecto, se logrem melhorias sensíveis e ainda maiores do que as que o
vírus conseguiu alcançar. O clima e a política!
Curiosamente,
o clima de Cascais foi, ao longo dos tempos, chamado a intervir – julgo que
eficazmente – na política.
Uma
das primeiras vezes foi no período em que estávamos sob o domínio espanhol. Cientes
de que essa união ibérica nos seria muito mais proveitosa se a capital dos dois
reinos fosse Lisboa e não Sevilha e, muito menos, Madrid, gerou-se todo um
movimento para mostrar as excelências da cidade e seus arredores, com vista a seduzir
o rei a ter aqui a sua Corte. Não se conseguir; mas é justamente no «Livro das
Grandezas de Lisboa» (Lisboa, 1620), de Frei Nicolau de Oliveira, que vem um
dos mais rasgados elogios ao clima cascalense, aliás tão conhecido é que a
Sociedade Propaganda de Cascais agarrou numa das frases e a teve durante largos
anos no cólofon das suas cartas: «Cascais é a mais sadia terra que se conhece
em Portugal».
Escreve
Frei Nicolau acerca da «notável vila de Cascais»:
«[…]
Na qual parece que quis a natureza ajuntar tudo o bom, que há do Oriente té a
mesma vila, dando-lhe puríssimos e temperadíssimos ares, de modo que não há Verão
tão caloroso que nela faça sentir grande calma, pela vizinhança do mar Oceano Atlântico,
que quase a cerca, e da fresquíssima Serra de Sintra, que, com frescos e brandos
ventos, ficando-lhe da parte da terra, lhe está refrescando o ar, que o Sol com
seus raios aquenta. Nem há inverno tão rigoroso, que nela faça sentir grande frio,
por respeito dos ventos sul e noroeste que, de ordinário, naquele tempo ventam
e de si são mais brandos que o norte e nordeste do verão. E assim é a mais
sadia terra que se sabe em Portugal e em que os homens mais vivem e mais sãos e
donde de todo está desterrado um mal que a tantos consume a vida, que é a
malenconia» (fol. 78 verso).
Pelos
finais do século XIX, com a vinda dos reis a banhos, Cascais arvora-se em estância
balnear. Havia, portanto, que voltar a tecer encómios às excepcionais qualidades
do seu clima. Nisso se aprimoram as instâncias locais, sensibilizando os
cientistas a estudarem as suas características ímpares.
Conhece-se
o duelo travado, nos primórdios do século XX, entre Cascais vila e as suas duas
rivais: o Estoril e o Monte Estoril. O Estoril acabaria por ganhar em
prestígio, o que, no entanto, não desmereceu Cascais. Em todo o caso, foi o
clima do Estoril aquele que mais concitou as atenções, tendo no cientista goês Daniel
Gelanio Dalgado um dos mais acérrimos propagandistas. Logo em 1906, por ocasião
do XV Congresso Internacional de Medicina, reunido em Lisboa, apresentou a
comunicação «The Climate of Lisbon,
Mont’Estoril and Cintra», publicada em Londres nesse mesmo ano. O objectivo
era mostrar como toda a zona constituía mui excelente estância de inverno, de
longe superior às zonas de vilegiatura então na moda, como Biarritz, Cannes,
Nice!... Entusiasmado, o Dr. Dalgado chega a garantir que, nesta Riviera portuguesa,
«os sapatos nunca ganham bolor, as ruas não estão húmidas de manhã, os telhados
não se cobrem de musgo e o ferro nunca cria ferrugem» («The Termal Springs and the Climate of Estoril»¸ Paris, 1910, p.
36).
Não
admira que, perante tão interessantes pesquisas, se haja instalado, em fins de
1912, no Monte Estoril, uma estação meteorológica, que funcionou de Março de 1913 a Março de 1915. E, em 1930, a Comissão de Iniciativa
e Turismo do Concelho de Cascais instalaria, também no Monte Estoril, uma nova estação
meteorológica, que chegou a publicar dois boletins mensais, em português e em
inglês. |
Jardim Carlos Anjos, Monte Estoril. Nesta foto, de César Cardoso, vê-se à esquerda, parte de um dos aparelhos da estação metereológica |
Reuniu-se
em Lisboa (Outubro de 1930) o XIII Congresso Internacional de Hidrologia,
Climatologia e Geologia. Não quiseram os Drs. Armando Narciso e Marques da Mata
deixar de aí apresentar uma comunicação sobre «Clima da Costa do Sol», que a
Sociedade Propaganda da Costa do Sol viria a editar em opúsculo.
Tendo
nós, nesta 2ª metade do ano de 2020,
a perspectiva de que – apesar dos benefícios do vírus –
possivelmente daqui por diante não lograremos diferençar bem as estações do
ano, não deixa de ser curioso ler o que ambos os cientistas então declararam:
«É
esta uma região sem inverno. Aqui, a seguir a um verão suave e prolongado e a
um outono curto, sucede-se uma prematura e longa primavera que abrange quase
dois terços do ano. Passadas as leves borrascas outonais, a atmosfera limpa, as
brisas acalmam-se e o sol brilha, num céu transparente, de manhã à noite» (p.
8). Ainda recordo de ler, a propósito, na publicidade da Junta de Turismo da
Costa do Sol: «Dias sem sol: 0»!...
Conhece-se
a preferência que houve, durante a II Grande Guerra, por Cascais como «lugar de
exílio». Havia, pois, que aproveitar a vinda de refugiados para realçar os
trunfos naturais de que se dispunha. Não será, então, por mera coincidência que
o Professor Herculano Amorim Ferreira, o primeiro director do Serviço
Meteorológico Nacional, escreveu, em 1941, para a Junta de Turismo de Cascais,
o opúsculo «Elementos para o conhecimento do clima do Estoril», texto da
comunicação que apresentara, a 4 de Julho de 1940, numa sessão da Academia das
Ciências de Lisboa, de que era académico correspondente. Recorto uma passagem:
«Como
o Estoril tem fama de ventoso, sobretudo no verão, pode mencionar-se que os valores
já apurados da velocidade média diurna do vento no Estoril são sempre
inferiores aos valores correspondentes em Lisboa»: 13,5 km/h (no mês de
Julho, «que é o mais ventoso»), contra 19,1 km/h em Lisboa.
Para
onde o barrão da serra hoje nos levou!...
Se,
agora, os ares não são exactamente como dantes, resta-nos a possibilidade de –
através dos nossos ecológicos comportamentos – contribuirmos cada vez mais para
a amenidade do clima de que ainda nos é dado usufruir!
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, a 25 de Julho de 2020: : https://duaslinhas.pt/?p=2421