A
peça envolve-nos logo de início, com todos os actores em cena, na cativante dança
do Zorba. Compreende-se a opção: Nikos Kazantzaki (1883-1957) também escreveu
«Alexis Zorbas» (1946), esse mesmo, «Zorba, o Grego», que, no filme de
Michael Cacoyannis, Anthony Quinn, ao lado de Irene Papas,
superiormente imortalizou. «Cristo Recrucificado» viria logo a seguir, em 1948.
Outros falarão melhor das
dificuldades da encenação, bem superadas, como sempre, por Carlos Avilez, com o
imprescindível apoio habitual de Fernando Alvarez, na concretização cenográfica
e nos figurinos, e da coreógrafa Natasha Tchitcherova. Note-se que se
trata da «Prova de Aptidão Profissional» dos finalistas da Escola Profissional
de Teatro de Cascais, que júri de reconhecido mérito, por isso, devidamente
apreciará. É, na verdade, a mais importante prova dos estudantes, que, ao longo
do curso, tiveram outras oportunidades de pisar o palco e mostrar quanto
valiam. Neste caso, porém, é a prova-mãe, ao lado dos actores da companhia e –
honra maior! – contracenando também com Ruy de Carvalho, visivelmente satisfeito
também com esta sempre enriquecedora experiência, como teve ocasião de me
dizer.
Pôr
em palco quase uma centena de participantes não constitui tarefa fácil e só a
maestria dos elementos do TEC é que logra obter eficazmente esse milagre.
O
espectáculo estará em cena até dia 29.
Um conflito actual
Confidenciava-me
Carlos Avilez:
‒
Parece escrita agora!
E
tem razão.
Ninguém
diria, à primeira vista, que esta recusa, por parte de uma aldeia, em receber refugiados
se prende com o drama vivido pelos Gregos quando, por força do tratado de
Lausanne (1923), se viram obrigados a exilar-se e a regressarem a Atenas e a
Tessalonica, expulsos do território agora reconhecidamente turco, com a
República da Turquia a alcandorar-se a sucessora legítimo do extinto Império
Otomano. Nikos Kazantzaki sentiu-o bem, porque, em missão no Cáucaso, já em 1919
tivera de lutar com todo o empenho contra o extermínio das populações gregas.
Aliás, mais perto da publicação do livro, em 1946, acabaria por também rebentar
na Grécia a guerra civil, em que, naturalmente, a luta pela posse das terras foi
sangrenta e crucial.
Preparava
o sacerdote as cerimónias pascais e ia escolhendo entre o seu ‘rebanho’ quem
faria de Judas, de João, de Cristo… à semelhança dos autos medievais. Com a diferença
de que, a partir do momento em que lhes é atribuído o papel, os personagens
começam a agir como se realmente o tivessem incarnado. A preparação é, todavia,
interrompida pela chegada de outro «rebanho», que foge ao extermínio turco e
pede asilo, até porque cristãos são também. O conflito, os jogos de interesses,
a religião de mistura com o dinheiro envolvem-se, pois, sem que haja mediador
aceite, sem que a crueldade deixe de falar mais alto do que a clemência ou a
hospitalidade impossível.
Perante
tamanhos desmandos, há quem, à boca de cena, como que num desabafo, acuse:
‒
Feras!
Ao
que outrem replica de imediato:
‒
Não, não são feras, são humanos!
Essa
ferocidade vive, atroz, ali à nossa frente. Dói-nos. Punge-nos, de facto.
Esse,
de resto, o papel do Teatro: mostrar-nos de perto aquilo que, por vezes, apenas
imaginamos e com tintas suaves, porque se passa longe e, se calhar, imagina-se,
não serão feras assim!... São. Mais do que imaginamos.
Arrepia-nos
o punhal friamente empunhado que corta, sem dó nem piedade, os órgãos genitais
do inimigo. Arrepia. Contudo, vão nesse mesmo sentido os relatos diários de
centenas e milhares de refugiados, voz embargada, porque foi a mãe violentada,
o pai assassinado, o filho menor, a mulher amada…
O
auto termina como tem de terminar: há o caminho para o Calvário, os açoites, a
coroa de espinhos, a Verónica que limpa o rosto de Cristo, o pendurar na cruz e
a punhalada mortal pelas costas…
Incomoda-nos.
Os
actores mostraram-nos cruamente como, afinal, também neste momento em que eu
escrevo e tu me lês, há humanos que nem o nome de feras merecem, porque estas –
e são milhentos os exemplos! – sabem comportar-se em comunidade, têm
instintivamente valores que defendem. E, no género humano, os valores humanos… perderam-se!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, 11-07-2018: