sábado, 30 de dezembro de 2017

Vamos ganhar outro tempo!

Nota acerca do livro «Para além do Mar Vermelho», de Carlos Carranca
 
1. Testemunho
            «Testemunho», a primeira palavra que me ocorre, depois de ler este livrinho de poemas de Carlos Carranca.
            Testemunho, porque demonstra não implicar a doença um abandono da vida. Carlos continuou a fazer projectos, a escrever, enriquecido por esta experiência que não deixa de ser ímpar quando nos toca a nós.

2. Afirmação de si como pessoa
            Afirmação de si como pessoa: a segunda ideia que de imediato me sobreveio. Afirmação patente na apresentação do título, escrito pelo seu próprio punho.
            Sou, como se sabe, epigrafista. Essa, a minha especialidade académica. Estou, portanto, habituado a lidar diariamente com a escrita, não só no conteúdo, mas, de modo especial, na forma. Não é que haja enveredado pela grafologia; reconheço, porém, que – ainda que inconscientemente – a maneira de escrever que adoptámos foi paulatinamente moldada pela nossa personalidade, pela imagem que desejamos transmitir.
            Pode Carlos Carranca nem ter pensado nisso. Ele o dirá, se assim o entender. E nem uma palavra troquei com ele a este propósito. O certo é que ter optado por ser a sua escrita a figurar na capa, o branco sobre um fundo verde-esperança e, sobretudo, no sentido vertical ascendente, com aquela acentuada haste do p e a evidência do acento agudo, com o nome – esse, sim, em letra de imprensa – mui discretamente acachapado ao fundo, tudo isso constitui reflexo evidente da sua vontade de vencer os obstáculos, de ir «para além do Mar Vermelho».

3. Religiosidade
            O terceiro ponto que gostava de focar prende-se com a escolha do título, inspirado em extremamente simbólico texto bíblico (Êxodo, 14, 5-31): a passagem do Mar Vermelho, hoje arqueologicamente confirmada pelos achados no fundo deste mar, e até cientificamente explicada.
            Viam os Judeus na travessia para o Egipto uma tábua de salvação, após 40 anos (sempre a magia do número 40!...) de arrastada e mui penosa peregrinação pela aridez do deserto. Verificarão depois que haviam caído num logro e que a condição de escravos os esperava, de facto. Conseguirão, alfim, voltar à Terra Prometida.
            Portanto, que há para além do Mar Vermelho? Esperança, incerteza e, de novo, esperança, ainda que dolorosa!
            Nas sete linhas que Carlos Carranca nos disponibilizou em jeito de prefácio é, seguramente, essa a mensagem. O «desconforto de viver», se não houver «um sentido para além da morte»: desconforto, sim, com fome no corpo e sede na alma, quando corremos no dia-a-dia, e não pensamos na bonança e não paramos para reflectir sobre esse sentido último. Quando, porém, o repouso é forçado, acabamos por atribuir ao tempo uma outra dimensão, tomamos consciência de que é ele a nossa maior riqueza a sabiamente rendibilizar: «E desse tempo de repouso, talvez ganhes outro tempo – o que te falta agora», conclui o autor. E tem razão.

4. Um apontamento
            Outros saberão, muito melhor do que eu, escalpelizar o sentido último dos curtos poemas de Carlos Carranca.
            Mais reflexões do que poemas serão. Ou, se se quiser, reflexões em jeito de poemas, que a mim me recordam os Pensamentos do imperador romano Marco Aurélio:
            «O tempo é como um rio que os acontecimentos formassem, um rio torrentoso... Mal uma coisa se anuncia, ei-la que já lá vai: no seu lugar já está outra em jeito de abalada» (IV 43).
            Ou os aforismos do livro Caminho, de Monsenhor Escrivá:
            «Que a tua vida não seja uma vida estéril. Sê útil. Deixa rasto».
            Ou, ainda, um dos meus livros de cabeceira, de Michel Quoist, Réussir, a que, em português, se deu o título de Construir:
            «À mesa, quando enches os copos, enches um de cada vez. Na vida, é necessário encher de cada vez um minuto, se não certos instantes transbordarão, ao passo que outros ficarão vazios».
            E – queiramos ou não – é muito no âmbito religioso, da relação do Homem com uma entidade superior (chame-se-lhe como se quiser), que se situa a palavra, dita ou escrita. Essa consciencialização da enorme importância do «verbo» – In principio erat Verbum, lê-se nas primeiras linhas do Evangelho de João (1, 1) – está bem patente no poema da pág. 19:
 
                                   Por uma palavra serei salvo.
                                   Por uma palavra
                                   terei por detrás
                                   toda a arquitectura do mundo.

            Assim é, de facto. E nem vale a pena citar casos históricos e muito haverá da nossa vida pessoal, quotidiana, em que foi uma palavra que nos ergueu!...
            Não creio ser preciso dizer mais para sublinhar quanto este livrinho detém a vocação de ser livro de cabeceira, a reler uma e outra vez, no crepúsculo do adormecer, para, na manhã seguinte, escancararmos a janela, olharmos o movimento apressado da rua e proclamarmos para nós mesmos:
            «Por uma palavra serei salvo».
            Hoje, direi palavras salvíficas!
            Bem hajas, Carlos Carranca, pela eloquente lição!

                                                                                  José d’Encarnação

Nota: É o texto da apresentação do livro, que me foi dada a oportunidade de dizer, a 16 de Novembro de 2017, no palco do Teatro Mirita Casimiro, ao Monte Estoril. O livro foi editado por Talentilicious, Figueira da Foz, 2017.

Instantâneo da apresentação, no Teatro Mirita Casimiro.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

As ceiras da Beselga

Excelente pretexto para uma exposição

             O Dr. Alberto Correia, que se formou em História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, não quis dedicar-se exclusivamente à sua vocação de docente. Desde muito cedo se tornou fundamentalmente um homem de cultura onde passou a viver, em Viseu, e a Etnografia foi, sem dúvida, um dos campos a que mais se dedicou. Daí que tenha sido também convidado para dirigir museus, para ser o comissário de exposições…
            Nunca descurou, porém, a escrita, que poderia, de certo modo, chamar-se «de pura intervenção cultural». Deliciam-nos as suas crónicas, sempre colhendo inspiração nos costumes das gentes e seu dia-a-dia. Publicadas depois, em livros, de assinalável êxito, permanecem como retratos de um viver prenhe de tradição. Recordo, a título de exemplo, Arcas da Memória (Imagens&Letras, Leiria, 2006), uma selecção dessas «melhores crónicas», 60 ao todo, vindas a lume no Jornal O Centro, de Viseu, e de que tive oportunidade de fazer recensão no Jornal da Beira de 13/09/2007.
            Desta feita, Alberto Correia virou a sua atenção para uma actividade que corria (ou corre) o risco de desaparecer: a arte de fazer ceiras de junça. Ceiras e outros artefactos de uso quotidiano em Beselga, Penedono.
            E para que a tradição não morresse, a ele se juntou o pároco de Santa Cruz da Beselga, com o objectivo de, numa exposição, se mostrar o Memorial da Devoção Ceireira. Cumpre, pois, não apenas incitar a uma visita, mas também importa, desde já, traçar uma panorâmica do que é o excelente Roteiro dessa exposição, magnificamente ilustrado, «a concretização de um sonho que há muitos anos vínhamos acalentando!...», confessa o Padre Carlos Manuel Rodrigues de Carvalho.
            Permita-se-me aqui um parêntesis para dar conta de iniciativa análoga, um livro que tive o privilégio de prefaciar e apresentar, cujo objectivo era precisamente o mesmo, em relação a uma fibra vegetal que, se não é a mesma, é deveras semelhante: o bracejo, stipa gigantea, de seu nome científico. O caso passa-se em Pombal, mais propriamente na chamada Ilha dos Cestos, onde uma cooperativa de mulheres pugna para que a «arte em bracejo» não morra. Chama-se o livro «A Arte em Bracejo na Ilha dos Cestos», é da autoria de Cidália Botas e foi editado, em 2004, pela Câmara Municipal de Pombal. Lá, como aqui, idêntico desejo: que não se perca a tradição!
            Numa escrita fluente e límpida, o Roteiro começa por uma explicação acerca do conceito de «museu»; demora-se sobre as características do território e da sua população; faz a história da «odisseia ceireira» e mostra depois, com a ficha de cada uma das peças da colecção, o que é, no fundo, uma espécie de pequeno, mas valioso, museu de arte sacra, que ora se encontra patente no primeiro piso da Casa da Paz. Aliás, explica o Padre Carlos que era justamente essa uma das ideias que presidiu à compra, pela paróquia, no Adro, da «casa ora designada Casa da Paz». Entre outras serventias, «reservou-se o justo espaço que um dia poderia constituir-se como “núcleo museológico” que preservasse as suas naturais e seculares memórias».
            E, assim, acabam por constituir espólio do museu objectos ligados ao culto, à liturgia e à religiosidade popular, sendo também intenção representar ali «o espaço habitado, a rua, o caminho, o carreiro, a ponte, a água, a fonte e o moinho, os cruzeiros, um nicho, a capela» - que tudo isso, escreve o Padre Carlos Carvalho, lembra «o homem sempre em viagem, viagem que só acaba no abraço de Deus».
            Vêm depois os vários núcleos em que a exposição se desenvolve, objectos que «têm mais um significado de afeição do que estatuto de riqueza». Notáveis, porém, as alfaias litúrgicas antigas: bonitas sacras, um missal de 1867, píxides, um vaso de comunhão de estanho (séculos XVII-XVIII), uma cruz processional do século XVIII, uma imagem de Nossa Senhora da Encarnação de pedra de Ançã (séculos XV-XVI); finalmente, a devoção e festa de Nosso Senhor dos Passos, com a reprodução de várias tábuas de milagres, bem significativas pela sua ingenuidade…
            Enfim, preciosa é a exposição e mui precioso o catálogo que dela dá conta. Edição, deste ano, da Paróquia de Santa Cruz de Beselga, com o patrocínio do Município de Penedono e da Junta de Freguesia de Beselga. Houve, além disso, o cuidado de se editar um desdobrável para acompanhar a exposição.
            Parabéns a todos os que intervieram na edição, saudando-se, de modo especial, o incansável dinamismo do Dr. Alberto Correia.
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Voz de Lamego, 19-12-2017, p. 18.

 

sábado, 23 de dezembro de 2017

Pilha ou lanterna? – Um apontamento sobre a interculturalidade

            ‒ Olá! Queria uma pilha!
            ‒ Uma pilha ou uma lanterna? – retorquiu a minha vizinha chinesa, que há bastante tempo se encontra em Portugal.
            Claro: dei-lhe os parabéns e agradeci a lição; de facto, eu queria era uma lanterna.
            De regresso a casa, pensei como tinha sido agradável essa correcção, pelo que significava, de facto: a integração plena, ou quase, de alguém que vem do Extremo Oriente e que não hesita em aprofundar os seus conhecimentos linguísticos, para melhor se sentir no ambiente que a recebeu.
            Foi no passado dia 15 de Novembro que o Agrupamento de Escolas a cujo Conselho Geral pertenço fez a cerimónia de distribuição dos prémios para os melhores alunos e dos diplomas de mérito. Comentei, a dado momento, para um dos professores:
            ‒ Que nome estranho!
             É russa, está cá há três anos e é uma das melhores alunas, trabalha imenso!
           E os nomes ‘estranhos’ foram-se sucedendo na sessão, sempre muito aplaudidos pelos companheiros, a denunciar um relacionamento invejável.
            Dois dos meus netos frequentam, este ano, uma escola dos arredores de Londres. Logo na segunda semana, a professora pediu ao Marco que ensinasse aos colegas (na escola há-os de 40 nacionalidades e professores de 17!...) como se dizia em português isto e aquilo, objectos em uso na sala de aula. E ainda não tinha passado um mês de actividades escolares e já se programava o dia internacional, em que cada família preparava um prato típico do seu país e o disponibilizava à comunidade escolar, em total confraternização.
            Fui docente na Universidade Lusófona e tive ocasião de preparar com um colega, a 20-01-2012, o Seminário «Ambiente e Património… Ao Encontro de Culturas». E foi mui agradável de ver estudantes das mais diversas origens partilharem costumes, gastronomia e até o património paisagístico da sua terra. Fez-me lembrar os anos em que estive como coordenador do Programa ERASMUS / SOCRATES, onde a comunhão de culturas e de línguas constituía elo primordial.
            No contacto com o Outro, acabamos por nos enriquecer, no sentir pleno de que a Cultura se faz da amálgama de muitas culturas, cuja identidade, não obstante, se mantém – qual manta de retalhos, onde cada pedacinho de pano, com o seu colorido e o seu desenho, contribui para a real beleza do conjunto!
                                                                                              José d’Encarnação

Publicado na revista Ponto & Vírgula, da Escola Calazans Duarte (Marinha Grande), Dezembro de 2017, p. 19, acessível em http://gic.age-mgpoente.pt/. Integrou a ediçção nº 2785 do Jornal da Marinha Grande, de 14.12.2017. A revista teve como tema fundamental «Construir a Interculturalidade».

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O que foi o Espigão das Ruivas na Antiguidade?

             É o Espigão das Ruivas um esporão natural litoral, sito na falésia do lado poente da Praia de Porto Touro ou Guincho Velho. Desde finais do século XIX, que se sabia existirem nele alicerces de edifícios, pequenos amontoados de fragmentos de telhas, tijolos, cerâmica… tudo dando a entender que algo ali houvera nos finais da Pré-História e princípios da ocupação romana.
O Espigão das Ruivas
            Por insistência de Guilherme Cardoso junto do Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Cascais, na altura chefiado pelo Dr. João Cabral, já falecido, no Espigão se levaram a efeito, em 1991, sondagens arqueológicas.
            Foram os resultados obtidos publicados por nós, agora, nas actas do II Congresso de Arqueologia da Associação dos Arqueólogos, onde apresentáramos, a 24 de Novembro, uma comunicação sobre o tema.: «O sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Cascais) in: ARNAUD (José Morais) e MARTINS (Andrea), Arqueologia em Portugal. 2017 – Estado da Questão. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2017, p. 955-966 (acessível em: http://hdl.handle.net/10316/44758).
            Na sequência desses trabalhos arqueológicos, foi possível identificar vestígios de uma presença humana que perdurou intermitentemente entre a Idade do Ferro e o período medieval. Os materiais mais antigos mostram uma ocupação inicial da Idade do Ferro, enquanto os mais modernos são já do período islâmico.
            Ignora-se, porém, a funcionalidade deste pequeno esporão sobranceiro ao mar e de difícil acesso. Algumas hipóteses têm sido avançadas: local de culto, posto de vigia ou, até mesmo, um farol de apoio à navegação, sem que alguma delas seja verificável até ao momento.
            A ideia de farol é aceitável, a fim de sinalizar o local aos navegantes que procurassem, ao cair do dia ou à noite, aquele porto de abrigo, em tudo semelhante ao que devia existir em Porto Brandão – «brandão» significa precisamente círio ou vela de grandes dimensões –, ou, como no caso do porto de Cascais, onde, até há poucos anos, um pequeno farolim guiava os mareantes durante a noite, de modo a melhor localizarem a Praia da Ribeira.
            O porto poderá ter servido também de apoio às actividades de pirataria. Ali se poderão acoitar os piratas à espera das presas e para abastecimento de água e outros víveres.
            Nos finais do século XIX e até inícios do século XX, estiveram aboletados no Porto Touro pescadores que faziam parte da campanha da armação da Roca, para a pesca da sardinha, de que forneciam as fábricas de conservas da vila de Cascais. Dessa época é a muralha que se vê na praia, onde existia um guincho que, com os anos, enferrujou, ficando inoperacional – daí o antigo nome de «porto do guincho», como era conhecido também o Porto Touro, passando posteriormente a ser identificado por Porto do Guincho Velho. Já estava desactivado nos anos 70, quando se visitou o local. Teria sido usado para puxar as barcas da armação da Roca para terra. Desse período ficaram, um pouco mais acima da praia, ao lado do caminho da Biscaia, as ruínas das instalações da companha da Roca, onde, nos meados do século passado, ainda existia uma taberna gerida por um casal, para abastecimento dos pescadores que ali aportavam durante o Verão.
Pescadores na Praia de Porto Touro
            O sítio arqueológico do Espigão das Ruivas assume, por consequência, características próprias e que nos remetem para um mundo ligado ao mar, que terá servido esporadicamente de apoio a actividades marítimas durante a Idade do Ferro e o Período Romano. Na Antiguidade Tardia, o sítio terá sido habitado durante longos períodos até aos inícios da influência islâmica, altura em que foi abandonado definitivamente.
            Tudo leva a crer que o sítio também teria sido usado esporadicamente como porto de embarque ou desembarque de pessoas e mercadorias.
            As fogueiras de que encontrámos vestígios poderão ter servido de sinalização para os pescadores, que, surpreendidos pelo cair da noite no mar, precisavam de encontrar, com segurança, o seu caminho de regresso ao porto de abrigo.
            Solene, altaneiro, silencioso acabou por se manter quando o quisemos interrogar acerca do seu passado e do mistério que o envolve. Parece arrogante e indiferente às vagas que, em dias de tormenta, impiedosas lhe mordem os pés; mas há nele também um ar simpático de númen protector para os escassos pescadores que ainda acorrem a Porto Touro, na esperança de, vencendo as correntes, lograrem alcançar uma pescaria que lhes mate a fome e lhes permita, também, arrecadar algumas moedas…
                                                              Guilherme Cardoso
                                                               José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 18-12-2017:

sábado, 16 de dezembro de 2017

Quero colo!

            Os animais. E a atenção que requerem. Assim as pessoas. Recordo, mais uma vez, o meu filho Pedro, que me confidenciou, já adulto, que amiúde lhe vinham à lembrança os momentos em que eu lhe pegava ao colo, em pequenino. E os meus netos também se deliciam com essa atenção.
            O Spike, esse, fica contente se jogarmos à bola com ele, nem que seja por escassos minutos. E é um prazer quando, a determinado momento do passeio – de manhã ou ao final da tarde – lhe digo: «Spike, pára, que o dono vai soltar-te!». E lá vai ele em alegre correria pelo descampado.
Senhora com gato.
Terracotade inspiração popular.
Obra de Foundarte (Mafra)
            Admirei-me, hoje de manhã. O Clyde batia-me na perna, a pedir colo! A irmã, a Bonnie, é que tem o colo permanente da dona ao pequeno-almoço; agora, o Clyde, amputado de uma pata traseira, por via de um cancro, nunca pedira colo e, naquele momento, com a mãozinha: «Quero colo!». Dei-lho – e pôs-se a ronronar, deliciado.
            Privilegiado é o Maio, que se senta na secretária quando estou ao computador e me dá turras de vez em quando e, à noite, adormece ao colo da dona, ao som da televisão…
            Não será, porventura, impunemente, que Nossa Senhora aparece representada habitualmente com o Menino ao colo e Santo António O tem sobre o livro da sua sabedoria…
            Creio que se terá tornado «viral» (como hoje se diz) o vídeo a mostrar todos os membros da família fidelíssimos ao lema de que o telemóvel é o instrumento para tornar perto os que estão longe e atirar para longe os que estão por perto. Contactavam todos com um Além que era deles e o pobre do chefe de família, à cabeceira da mesa, cabeceava com sono, porque ninguém lhe ligava importância. A determinado instante, porém, há um que grita, esbaforido:
            – Tenho a bateria no fim! Tenho a bateria no fim! Um carregador, por favor! Um carregador!
            Serenamente, o chefe de família pegou no carregador que estava atrás de si e entregou-lho. A cena prosseguiu nos contactos para o Além. E o chefe de família, na ceia de Natal, voltou a passar pelas brasas.
            Não queremos um Natal assim. Não queremos os nossos dias assim. Não queremos que a ficção ensombre a nossa quotidiana realidade e tolha a atenção a quantos nos são queridos e connosco compartilham, real e não virtualmente, os altos e baixos em que se nos vai o dia-a-dia! Não queremos.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 721, 15 de Dezembro de 2017, p. 16.

 

Morrer, sim, mas em glória!

            Reza a História que Tchaikovsky compôs a sinfonia nº 6 em Si menor Op. 74, dirigiu-a e poucos dias depois faleceu (6-11-1893). Retratará essa sinfonia, chamada «Patética», aspectos da sua biografia, dizem. O certo é que, se tal é o retrato, bem turbulenta terá sido a sua vida, rica de emoções incontidas, de fúrias desregradas, dos doces murmúrios da aragem a ciciar por entre os ramos sobre o rio e da desmedida algazarra do trovão.
            Não admira que, no final, o maestro se sentisse prostrado, tamanha foi a necessidade de guiar este e aquele naipe, obrigando-se a um bailado de sortilégio, em que todo o seu corpo, que não apenas os braços, se deixou inebriar.
            Esta, a segunda parte do Concerto de Inverno com que a Orquestra Sinfónica de Cascais nos brindou na noite do dia 9, no Auditório da Senhora da Boa Nova. O simples enumerar dos andamentos dá para se compreender a extrema variedade dos ritmos com que nos deixámos deslumbrar: adagio, allegro non troppo, andante, moderato mosso, allegro vivo, andante come prima, allegro con grazia, allegro molto vivace, todos eles a precederem o final, que não foi apoteótico mas adagio lamentoso, qual prece a envolver-nos no último Outono da vida… Um presságio? Quiçá, sim. Os biógrafos o dirão, certamente.
            Alternaram-se, pois, o moderado movimento, com os alegres, ricos de cambiantes – o ‘vivo’, o ‘com graça’ e o «muito animado»… – para esse quase fúnebre lamento final. Entretanto, até António Machado, Fátima Juvandes e Pedro Tavares – da percussão – foram activamente chamados a intervir, eles que, habitualmente, se limitam a sublinhar, a espaços, uma que outra passagem mais solene. No sábado, não! Intervieram e bem, a emprestar inusitado calor a uma atmosfera (o maestro que o diga!) em que para o frio não houve mesmo lugar!
            Foi a primeira vez – contou Nikolay Lalov – que a Sinfónica se abalançou a interpretar esta sinfonia. E, no rigor milimétrico dos tempos, nos silêncios e nos fortes, nas campestres melodias em que as flautas se impuseram a solo, no grito estridente dos metais… todos os 61 músicos se esmeraram, num contentamento bem visível nos abraços finais que se trocaram.
            A primeira parte estivera diferente: o Triplo Concerto em dó maior (op. 56) de Ludwig van Beethoven. Escrito entre 1803 e 1805, só foi publicado em 1807 e estreado no ano seguinte, tinha o músico 38 anos. A designação de «triplo» deriva do facto de estar previsto que a orquestra acompanhará três solistas: ao piano, ao violino e ao violoncelo. Não terei errado ao escrever que, neste concerto, a missão da orquestra é «acompanhar». Na verdade, essa é a sensação que temos, no constante entretecer do diálogo entre os três instrumentos. Lalov convidou o famoso violinista Christian Altenburger (Heidelberg, 7-9-1957), que, tendo aprendido violino com o pai, deu, aos 7 anos, o seu 1º concerto público. Alto, solene, virtuoso, compenetrado, exímio… contrastava, no tamanho que não no virtuosismo, com o jovem violoncelista russo, que vive em Lisboa, Pavel Gomziakov (Tchaikovsky, 1975). Ao piano, esteve a norte-americana Elizabeth Allen, que se define como «uma apaixonada por Portugal» e que reside há 30 anos no Estoril.
            E foram estes três conceituados músicos que, muito aplaudidos, fizeram as honras da 1ª parte do Concerto de Inverno.


Christian Altenburger

Pavel Gomziakov

Elizabeth Allen
           Permitam-se-me dois apontamentos. Prende-se o primeiro com o sempre extenso currículo de cada um dos artistas e, também, de Nikolay Lalov, que já conhecemos de cor. Não foram feitos para este concerto; são retirados ipsis verbis da wikipédia. Será esse um costume, não sei; mas confesso que fiquei um tudo-nada perplexo, ao verificar que estava perante textos rigorosamente iguais aos que podiam consultar-se na Internet e, inclusive, as fotos são as que vêm lá.
            A segunda observação: o nenhum cuidado que se teve na elaboração dos bilhetes. Neles aparece três vezes a expressão «Centro Paroquial do Estoril» (uma delas em siglas) e três vezes se lê auditório, numa delas assim: Auditório Senhora da Boa Nova CPE (Auditório). A palavra ‘convite’ está em duplicado e o concerto vem designado como «Concerto de Inve». Não há aí ninguém que perceba um bocadinho só que seja das regras da escrita?...

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 215, 13-12-2017, p. 8.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Regressar, dançando, à época medieval

             Multiplicam-se as iniciativas que visam reconstituir a vida na época medieval.
            Ainda me lembro do que foi o pioneirismo da 1ª feira medieval que – por iniciativa das Doutoras Maria Helena da Cruz Coelho e Maria José Azevedo Santos, docentes de História da Idade Média na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – foi levada a efeito, no Largo da Sé Velha, com todo o rigor de pormenores, em Junho de 1992. O ineditismo da proeza e o êxito imediato que arrecadou fez com que, no ano seguinte, houvesse repetição; celebrou-se, este ano, o seu 25º aniversário.
            Depressa a ideia alastrou – por Montemor-o-Velho, por Vila da Feira… E, hoje, praticamente não haverá concelho algum em que se não faça uma Feira Medieval, até porque se criaram grupos, amiúde nascidos de antigos estudantes de História, que se especializaram nessas organizações.
            Em Cascais, conheceu S. Domingos de Rana, este ano, a 2ª edição de uma Feira Medieval, seguida de ceia. E José Fernando Lousada criou, em 2014, um grupo de dança, o Pé de Dança, que tem como objectivo divulgar esse património cultural, que foi sendo bebido em livros doutras eras.
            Festejou, pois, o Pé de Dança o seu 3º aniversário, no passado dia 6, na sede da Associação Recreativa Juventude Carrascalense, de Carrascal de Alvide (Alcabideche – Cascais.
            Antes da ceia, também ela à maneira antiga (com bom panito, azeitonitas a condizer, arroz de miúdos, migas, tudo regado com sangria e vinho tinto no canjirão…), os pares deram um arzinho da sua graça, brindando-nos com vários dos passes de dança ensaiados e que o amigo Lousada ia explicando o que eram: danças de amor, danças de cerimónia, danças de festa… Eu sei lá! O que nos deliciava era não apenas o ar compenetrado dos dançarinos – que têm também neste passatempo a sua forma de realização pessoal e de mui sadia ocupação dos tempos livres – mas a suavidade com que eles evoluíam, a lembrar-nos uma época em que a pressa não era pão quotidiano e o lazer se impunha como forma de condimento às tarefas em que cada um se tinha de afadigar.
            Presentes na ceia cerca de 40 convivas: além dos 20 alunos do Pé de Dança e seus responsáveis, membros da direcção da colectividade, o representante dos Templários de Sintra, Paulo Pimenta (de O Correio da Linha). Coube-me a honra de ser nomeado «padrinho», que mui gostosamente aceitei.                                                                            
 
                                                        José d’Encarnação
O representante dos Templários de Sintra e sua Dama.





Uma das danças. Foto de Paulo Pimenta.


José Fernando Lousada e irmã Filomena

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Viriato Dias Bernardo, jornalista de largos horizontes

             De ascendência alentejana – seus pais vieram de Arronches para Cascais – Viriato Dias Bernardo nasceu nesta vila a 26 de Janeiro de 1929. Por aqui sempre viveu até à morte, que ocorreu no passado dia 2.
            Depois de ter sido funcionário da Câmara Municipal de Cascais e já escrevia na imprensa local, Viriato Dias foi convidado para seguir a carreira jornalística. Ficou com a carteira profissional nº 87 e foi para a delegação de Lisboa do jornal portuense Primeiro de Janeiro, que viria a chefiar.
            Daí seguiu para a informação da RTP, onde exerceu durante muitos anos as funções de responsável pela agenda do Telejornal, tendo desempenhado esse cargo com a grande competência que ele exigia, nomeadamente antes do 25 de Abril, em que importava ter enorme diplomacia perante a Censura.
            A nível local, integrou a equipa do jornal A Nossa Terra e quando a quase totalidade dos redactores saiu, por incompatibilidade com a direcção do Grupo Dramático e Sportivo de Cascais (proprietário do jornal), manteve-se fiel ao grupo liderado por João Martinho de Freitas, que viria a fundar, a 25 de Abril de 1964, o Jornal da Costa do Sol.
            Após a aposentação, regressou às lides da imprensa regional, tendo assumido, a 7 de Março de 1996, a direcção do Jornal da Costa do Sol, cargo que manteve até 1 de Março de 2007. Na mensagem de despedida, a que deu o título de «Até sempre», recordou que pertencera ao «grupo de cascalenses que dotou Cascais com um órgão de comunicação, livre de quaisquer tutelas, pela defesa dos interesses desta região».
Viriato Dias e Carlos Avilez (gentileza de Pepita Tristão, do Cyberjornal)
            Na sua direcção é de registar, durante o mandato de José Luís Judas, o espírito de colaboração que manteve com o Executivo camarário e que o presidente bem aceitou, não se coibindo Viriato Dias, como é natural, de criticar a acção camarária, quando considerava que o devia fazer, por ser essa a missão da imprensa local, nem sempre compreendida pelos autarcas. Um clima de serena compreensão e informação, para que os munícipes se apercebessem com maior evidência dos motivos por que determinadas decisões se tomavam e a razão de ser de outras que estavam programadas para se tomar.
            Foi irmão da Santa Casa da Misericórdia de Cascais e sócio, desde 1954, da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais.
            Recordo o que escreveu, a 17 de Setembro de 1966, a propósito do incêndio da Serra de Sintra em que viriam a morrer 25 soldados do regimento de Queluz:
            «Não poderá haver outro fogo de tão terríveis consequências em matas nacionais, porque irão ser tomadas medidas drásticas. Não se falará mais em falta de dotações ou verbas, porque tal não se pode pôr em equação, quando estão em causa o património nacional, a economia do País e vidas que são a base da Nação».
            O drama por que passámos no Verão mostra que os planos que apontava como urgentes e necessários acabaram por nunca se concretizar. E já lá vão 51 anos!...
            A 22 de Março de 1969 viria a escrever um outro artigo, que deu brado na altura, pelo seu carácter inovador, sobre o aproveitamento turístico da Cidadela de Cascais, uma vez que, já nesses anos, o interesse militar do quartel era escasso. Viriato Dias ousou, pois, propor o seguinte:
            «Um museu oceanográfico, um aquário, um Instituto de Biologia e, paralelamente, uma exposição de assuntos cartográficos no Instituo Hidrográfico [sugerira que tanto esse Instituto como o Aquário Vasco da Gama para ali fossem transferidos] poderiam ser um pólo de atracção para a sede do concelho, que foi berço do turismo em Portugal e à qual estão ligadas longínquas e vultosas tradições marítimas».
            E concluía:
            «A vetusta cidadela, onde, com o rodar dos tempos, se criaria um museu natural de oceanografia – grande, enorme e imperdoável lacuna existente no País – continuaria, assim, a sua função junto ao mar».
            Estava-se em… 1969!
            Um sonho, esse, que as vicissitudes dos tempos nunca ousaram tornar realidade!
            Do homem e do jornalista fica-nos, por isso, a imagem de um cidadão empenhado, que preza acima de tudo a nobreza de carácter, de «antes quebrar que torcer», que privilegia o rigor da informação e manifesta plena disponibilidade para estar activo em prol do bem comum.

                                                                                  José d’Encarnação

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Uma lição de sabedoria política

            Não andarei longe da verdade se referir ter sido uma autêntica lição de sabedoria política o que nos foi dado ouvir por ocasião da apresentação, no Grémio Literário, no passado dia 29, do livro, de Licínio Cunha, Turismo e Desenvolvimento.
Licínio Cunha, Pinto Marques, Vítor Neto, Assis Ferreira e Frederico Annes
            António Teixeira Pinto Marques, o Presidente do Conselho Director do Grémio, deu as boas vindas a quantos enchiam por completo a sala da biblioteca da instituição e manifestou o seu regozijo por, mais uma vez, a sua casa ser palco de tão luzida cerimónia.
Silva Peneda, no uso da palavra
            Foi Silva Peneda o primeiro apresentador. Após ter sublinhado que «resiliência» e «sustentabilidade» são duas palavras que estão na moda, declarou preferir falar de «harmonia na sustentabilidade» e da necessidade de se estabelecerem compromissos com as soluções preconizadas para os problemas que surgem, na medida em que «a essência de qualquer estratégia política é a convergência de interesses». Desconfia sempre de alguém que lhe apresenta «soluções miríficas». Observações a propósito da obra ora vinda a lume e na sequência da temática nela sabiamente desenvolvida. Terminou realçando a elevada «qualidade humana do seu autor».
            Vitor Neto que, tal como Licínio Cunha, exerceu funções de secretário de Estado do Turismo tomou a palavra em seguida, começando por afirmar que «este livro não é um simples livro, é um tratado, um compêndio. Eu já o li, agora vou estudá-lo». O seu autor tem uma visão global do turismo, faz a história do fenómeno turístico não apenas em Portugal, fenómeno que «não é uma soma de prémios do tipo ‘os melhores do mundo’». «Desenvolvimento económico sustentável» é, em seu entender, um dos capítulos mais sugestivos, embora também não seja de menor valia a sua análise de «como é que o Estado tem encarado o turismo» e da avaliação que os governos fazem da importância económica do turismo. «Importa dar consistência àquilo que se conquistou», frisou, a terminar, acentuando a forma simples, a seriedade e a honestidade com que o autor aborda estes assuntos.
            «Um livro que, de facto, marca o turismo», começou por afirmar Mário Assis Ferreira, administrador da Estoril-Sol. Relatou os contactos que teve com Licínio Cunha, então secretário de Estado, quando foi para o Casino e lhe apresentou as novas ideias que tinha intenção de incrementar, designadamente a de tornar o Casino muito mais do que mero local de jogo, mas potenciador de iniciativas culturais nos mais diversos domínios, mas, de modo especial, na Música, no Espectáculo, na Arte, na Gastronomia. «Qual enciclopédia sobre a actividade turística», «trabalho de fôlego» em que não falta o apontar de mudanças e perspectivas, de leitura mui acessível, que apresenta, em anexo, uma série de documentação do maior interesse, desde a Declaração de Manila (1982) à Declaração de Ecoturismo de Quebec (2002). Uma obra de 338 páginas, onde falta, no entanto, uma palavra sobre a grande receita fiscal que advém da actividade dos casinos, mormente se se tiver em conta «a drástica reviravolta conceptual» do seu papel, que ele próprio, Assis Ferreira, «ousou implantar - e com êxito! - nos casinos da Estoril-Sol. Licínio Cunha terá duvidado da possibilidade de tal vir a concretizar-se; o certo é que se concretizou. E concluiu: «Diz Óscar Wilde que se resiste a tudo menos à tentação; que seja a publicação dum próximo livro a próxima tentação de Licínio Cunha».
            O autor agradeceu a generosidade dos apreciadores e se «ninguém é tão velho como aquela pessoa que desistiu de ter objectivos», o certo é que, depois de ter redigido mais de duas centenas de textos, considera que «as novas ideias escasseiam» e que termina aqui o seu «ciclo académico» (recorde-se que Licínio Cunha exerceu, até 2014, as funções de director da Licenciatura em Turismo na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, de Lisboa). Afirmou não ver com bons olhos que o turismo seja encarado como uma moda, efémero como ela é; que a «pegada turística» seja… «uma praga»! O turismo há-de ter em conta «o visitante e a pessoa, o território mais o ambiente», numa estratégia de desenvolvimento sustentável, que considera ser o objectivo principal que o livro prossegue, apelando para que «a ênfase do crescimento seja substituída pela do desenvolvimento».
            A editora da obra é a Lidel, cujo representante, Frederico Annes, aproveitou o ensejo, a finalizar a sessão, para dar conta da actividade desta empresa familiar, que em Março completou 50 anos (vai na 3ª geração), já acolheu 3000 autores de livros por onde muita gente tem aprendido, como é o caso dos livros de Medicina ou do ensino de português para estrangeiros.

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 4-12-2017:

À margem de um jantar

             Quando um estudante no final do curso se abeirava de mim para me questionar acerca do que iria fazer, costumava perguntar-lhe o que é que gostaria de fazer. Perante a resposta, havia sempre uma série de «receitas» hauridas da experiência…
            Uma das tónicas mais frequentes era: aparece! Queres trabalhar em Arte? – Frequenta inaugurações de exposições e observa como tudo se processou e não deixes de entabular diálogo com o artista, com o promotor da iniciativa. Gostarias de ser relações públicas de uma entidade cultural? Vê com atenção a agenda cultural do município em que vives e aparece e vê como se faz.
            Ainda hoje é meu princípio procurar aproveitar as oportunidades que me surgem para culturalmente me enriquecer. Com os erros nossos e alheios se vai aprendendo. Custa-me ouvir, na manhã da Antena 1, «O Fio da Meada» monocordicamente ‘lido’ por Susana Moreira Marques, quando deveria ser ‘dito’ e ter alma dentro. Custa-me que não se compreenda que a rádio tem exigências vocais e não se pode dizer aaãã… a todo o momento, antes de se começar uma frase. Aprende-se com a prática.
            A 11 de Novembro, tive o privilégio de partilhar a mesa, no jantar comemorativo dos 30 anos da AMI, com pessoas que, nesse breve tempo de uma refeição, acabaram por me ensinar muito. Com Fernanda Freitas, a jornalista que, durante quase sete anos, teve na RTP 2 o programa diário «Sociedade Civil» (veja-se o texto de Isabel Canha em: https://executiva.pt/fernanda-freitas-empresaria-improvavel/), mas que abraçou de mãos cheias a causa do voluntariado, falei precisamente desse ‘saber ler e contar’, porque ora uma das suas actividades é ler histórias para crianças hospitalizadas. Com o capitão-de-fragata, Maurício Camilo, comandante do navio-escola Sagres, soube que, no regresso do Cabo da Boa Esperança, se navega à vista de costa e é precisa uma atenção redobrada e disse-me do que era esperar por vento de feição na zona das calmarias... Com Maria do Céu Garcia, mãe de Diana Gomes da Silva, que é piloto de aviões comerciais e faz acrobacia aérea, fiquei a saber que, por iniciativa da filha, todas as companhias aéreas incluem agora módulos de acrobacia no curso de pilotos, porque aí aprendem a navegar numa emergência sem aparelhos; e contou-me que o desastre do avião da Air France, que caiu no Atlântico, no meio de uma tempestade, em 31 de Maio de 2009, poderia ter sido evitado se o piloto tivesse essas noções de acrobacia, que permitem aperceber-se melhor se o aparelho está a descer ou a subir… Quem diria? Realmente, vendo a Diana a fazer mui arriscados ‘loopings’ no seu avião vermelho, para além do aplauso, só nos apetece exclamar: «Esta menina é louca!». Mas não é.

                                                                                  José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 720, 1 de Dezembro de 2017, p. 11.
Diana Gomes da Silva e o seu avião vermelho, de acrobacias!
 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Faleceu o Padre Amador dos Anjos

             Com a provecta idade de 98 anos (completaria 99 a 25 de Janeiro) foi hoje a sepultar, no cemitério de Alcabideche (Cascais), o Padre Amador dos Anjos, que viveu, durante os últimos dez anos, na residência sénior dos Salesianos de Manique.
O Padre Amador dos Anjos, ladeado pela Doutora Manuela Mendonça,
presidente da APH, e pelo Doutor Armando Martins, proponente da homenagem
            Realcei, em Julho passado, a homenagem que então lhe foi prestada pela Academia Portuguesa da História, ao nomeá-lo académico honorário, a galardoar assim o seu meticuloso labor de escrever a história da Congregação Salesiana (hoje, Fundação Salesianos) em Portugal, Cabo Verde, Moçambique e Timor. Uma obra notável no âmbito da educação da juventude, nomeadamente a mais carenciada, que hoje se revê nos seus antigos alunos e nos milhares de estudantes que frequentam as suas escolas – no Porto, em Mogofores (Anadia), em Vendas Novas, em Évora, nas Oficinas de S. José de Lisboa (relevante marco no ensino das artes gráficas em Portugal) e, também, no concelho de Cascais, onde detém a Escola Salesiana do Estoril e a Escola Salesiana de Manique.
            Particularmente vocacionados para o ensino técnico-profissional – que, por via das absurdas reformas levadas a cabo por sucessivos governos que o liquidaram e hoje se quer recuperar – os Salesianos, como o Padre Amador dos Anjos consignou em livro, continuam a deixar obra válida, no campo da educação juvenil, pondo em prática o chamado Sistema Preventivo, que preconiza a presença assídua dos educadores junto dos educandos e onde, para além da leccionação oficialmente obrigatória, se dá lugar ao teatro, à música e à prática desportiva, no intuito de uma formação completa. Disso é reflexo, por exemplo, a Juventude Salesiana que, no Estoril, deu cartas e formou campeões no hóquei em patins nacional.
            Como já assinalei em Julho, tive a honra de ser aluno do Padre Amador dos Anjos, em Manique, na disciplina de Literatura Portuguesa no ano lectivo de 1962-1963, no meu 6º ano dos Liceus. Ainda guardo religiosamente as folhas dactilografadas com os exercícios de análise literária que ele, na sua letra miudinha, me corrigiu e anotou, a vermelho. Com ele aprendi, de facto, muito do que hoje sei na arte da escrita e da interpretação textual.
            Com a presença de cerca de uma quarentena de amigos, antigos alunos, confrades e Filhas de Maria Auxiliadora, concelebraram a missa cantada, de corpo presente, dezoito sacerdotes salesianos, sob a presidência do provincial, Pe. José Aníbal Mendonça. À homilia, o provincial salientou os momentos mais significativos da biografia do ilustre defunto e leu depoimentos de seus amigos e companheiros da sua longa e luminosa caminhada. No final, usou da palavra o Padre David Bernardo, que deu conta da serenidade com que o Padre Amador se preparara para a partida, salientando um dos aspectos que mais o cativou: a perene atitude de agradecimento que tinha para com todos os que nestes últimos tempos lhe dispensaram cuidados.
            Que descanse em paz quem, tão diligentemente, soube espalhar o pensamento pedagógico e sacerdotal de D. Bosco, o insigne fundador, em finais do século XIX, da Obra Salesiana. Tempo é não de tristeza por quem parte, mas de conforto e reconhecimento pelo exemplar testemunho que nos legou.

            Cascais, 4 de Dezembro de 2017

                                                                                  José d’Encarnação
P. S.: O corpo do ilustre sacerdote será oportunamente trasladado para o cemitério da Galiza (Estoril), onde repousam os restos mortais dos membros da Família Salesiana falecidos no concelho de Cascais.