domingo, 31 de dezembro de 2023

Acutilante olhar

           Só quem não conhece o Corotelo é que pode admirar-se de ali brotarem poetas, como dali saíram canteiros irmanados com as lajes dos Funchais. Só quem não conhecer o Barrocal pode achar estranho o estro repentista do Aleixo a deambular entre Loulé, S. Brás e Bordeira.

            Há por ali toda uma poesia que se evola do alvorecer ao sol-pôr. Levanta-se além o astro-rei, por detrás da serra e há moinhos a saudá-lo; vai descer ao fim da tarde, dolentemente sereno, por detrás dos moinhos da Fonta Murta, vigias solenes, imperturbáveis. «Do alto do Corotelo / A vista ninguém ma tira / Daqui se aprecia o que é belo / Até ao mar de Tavira»…

            Já não temos agora o cheiro bom da terra lavrada de fresco, mas ainda nos acicata, forte, o acre das flores de alfarrobeira, beijadas por sequiosas abelhas, e «há cortiça, figo e mel», ainda rescendem os figos no almeixar. Acariciam-nos os olhos as amendoeiras em flor – que manto, senhores, que alvacento o manto delas!

É de admirar, pois, que seu pai de tenha sido «meio poeta e canteiro», a deixar o nome «gravado no trabalho realizado».

É de admirar que também Josélia se tenha deixado enfeitiçar? Que pegue amiúde no rolo da cozinha e aí, num repente, escreva o que está a sentir? «Poetisa eu não sou / Escrever alivia a mente / E sempre me fascinou / Salta tudo de repente». Que poetar lhe dê prazer e sinta «É herança que vou deixar, / um dia, quando morrer»?

Não!

Admirável seria se o contrário acontecesse!

Pelos seus versos está a pausa reflexiva sobre a transitoriedade da vida: «Perde-se tudo com os anos / Que vão passando e fugindo. Perde-se o amor com enganos / E sofre-se mesmo sorrindo».

Está a frecha argutamente saborosa: «Belas unhas, são de gel / Pinta-se o rosto a pincel».

Está um enorme grito de alerta: «As árvores não são podadas / nelas ficam penduradas / As frutas do ano anterior» – para, em mui pertinente e sagaz e implícita pergunta, sublinhar: «Hoje há terras de cultivo / desprezadas sem motivo / com gente desempregada».

 

Josélia Viegas, a voz que brada e acarinha. Acutilante olhar passado a escrito sobre a realidade envolvente, a terra, as suas gentes – para que outros também depressa acordem e tudo vejam melhor! Com ela, Corotelo sente-se honrado!



Mensagem no livro S. Brás é a Minha Terra, de Josélia Viegas. S. Brás de Alportel, 2023, p. 16-17.

 

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Bloqueado!

            A toda a hora, em todo o sítio, a pergunta, agora, sacrossanta:
Já tem a nossa AP? Dá-lhe a vantagem…
Caso a todas as sugestões acedêssemos, teríamos o telemóvel pejado de… vantagens (!), a usar de vez em quando, e sobrecarregado até mais não, diminuindo a sua capacidade de resposta. Enfim, cada qual sabe de si.
Eu sei o que passei quando, para instalar uma AP considerada imprescindível, não consegui aceder, à 3ª tentativa, a uma palavra-passe que não chegou: o telemóvel bloqueou.
Fui à loja da marca.
– Nada posso fazer. Tem de ir a…
E foi-me dado o contacto duma empresa privada e privativa da marca, a uns 25 km de casa.
Quando chegou a minha vez:
– O recibo da compra, por favor!
Não tinha. Na loja não me haviam dito que era preciso e, na verdade, comprado há mais de 6 anos, do recibo eu já não tinha a menor ideia se o guardara.
– Nada feito, então.
– Perdão. Que quer dizer?
– Isso mesmo: nada feito.
– Ou seja, vou deitar fora o aparelho!
– Não lhe disse isso, só que sem recibo não há nada a fazer.
– Mas… não me poderá sugerir uma solução?
De poucas palavras, a senhora manteve-se hermética, a política de protecção de dados tinha de respeitar-se, uma questão de ética, nada a fazer…
Ia já levantar-me, vencido, quando o senhor a ser atendido ao lado pediu desculpa por intervir:
– Vá ao centro comercial X e tem lá quem o consegue desenrascar.

Fui.

Todo um corredor de lojas de indianos me abriu os braços. Fiquei sem dados, mas salvei o telemóvel. E passei a detestar ainda mais essa história de palavra-passe para tudo e mais alguma coisa. Sobretudo aplicações.

                                                                                   José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 857, 15/12/2023, p. 10.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Pavana por um mosteiro perdido

           

            A teu lado, o cipreste altaneiro queria eu não fosse, também aqui, árvore de cemitério, mas, antes, forte grito de alerta:

– Não vêem, senhores, a tristeza do campanário que eu guardo?

            É verdade, cipreste. Deixa-me que eu prefira a beleza dos telhados recém-restaurados a espreitar e eu a imaginar cantares de vésperas a perder-se, ao sol-pôr, pelas franças da vegetação da cerca envolvente.

Sabes, cipreste, assim aninhado e visto de longe, o teu mosteiro faz-me bem compreender os sonhos dos proprietários. Também eles gostavam mais que as trepadeiras vorazes o não estivessem a cobrir; que nas janelas houvesse vidraças em seus caixilhos; que, no remansoso ambiente místico da capela se ouvisse, de quando em quando, um concerto, a ressuscitar, porventura, o canto gregoriano d’outrora.

            Gostavam.

            Tiveram, um dia, a ideia ingénua de que, se fosse classificado, o seu mosteiro ganharia e esses seus sonhos mais facilmente seriam realidade. Não foram. Não são. As intrincadas malhas pérfidas de ignóbil legislação, gizada, em dia não, por cérebros recatados em asséptica torre de marfim, não no facilitam.

            Por isso, mosteiro, eu te prefiro ver de longe.

Romântico, triste, saudoso…

Ao perto, eu descobriria as chagas; eu regurgitaria revolta contra as teias que burocrática aranha teceu. E, bem no sabes, mosteiro, eu gostava de ter força para acordar Lisboa ou Coimbra ou Castelo Branco.

Gostaria de pensar que também a minha voz – e não apenas a tua e a do teu cipreste – teríamos força para destruir as teias e que, perante a realidade concreta, palpável, na serenidade que tu, mosteiro, de alto campanário qual sentinela, inspiras, se lograssem entabular conversações.

Era bom.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 856, 1/12/2023, p. 10.