domingo, 24 de maio de 2015

A singularidade do Salão de Primavera

            Poderá parecer, à primeira vista, mais um «salão», mais um pretexto para expor trabalhos pictóricos de uns quantos entusiastas pelas Belas Artes. Nada mais errado!
            Na verdade, esta 28ª edição do Salão de Primavera, inaugurada no sábado, 23, na Galeria de Arte do Casino Estoril é muito mais do que isso.
            Para já, é de se atentar no número, a significar que este projecto, iniciado em 1981, teve seguimento. Por ele já passaram, pois, como Nuno Lima de Carvalho explicita na bem oportuna abertura do catálogo a que deu o sugestivo título de «Nobreza no ensino da Arte», 916 jovens artistas, «muitos dos quais», acrescenta, «são hoje pintores de referência ou profissionais qualificados no mundo artístico, como é o caso dos mestres que escolheram os participantes da exposição do corrente ano», Hugo Ferrão (de Lisboa) e Domingos Loureiro (do Porto). De muito louvar, portanto, essa continuidade, num mundo em que iniciativas do género surgem aqui e além e mui rapidamente se dissipam….
            Depois, aqui se expõem, agora, obras de 24 finalistas das Faculdades de Belas Artes de Lisboa e do Porto. Para muitos deles, será essa a primeira linha a figurar no seu currículo, o pontapé de saída para uma carreira que se antoja promissora e estou bem ciente de que o facto de terem aqui sido acolhidos será memória boa a acompanhá-los vida afora.
            Finalmente, é exposição com catálogo a preceito, em bom papel couché, que traz a reprodução, a cores, de uma das duas obras expostas de cada um. Um investimento apoiado, mui naturalmente por Estoril Sol III, mas que deve realçar-se, porque é, sem dúvida, o que fica como documento-memória.
            Apresentou Filipa Tojal (a artista a quem foi atribuído o Prémio Rainha Isabel de Bragança) dois óleos sobre tela a que deu o nome de «Jardim em Azul», ao amanhecer e ao entardecer. Foi o do amanhecer que conquistou o júri, que certamente apreciou a maestria com que soube levar-nos a penetrar numa floresta – mais do que jardim, eu diria – onde a serenidade impera e, diante dela, interrogamo-nos como é que nos cativa assim tanto este aparente emaranhado de verdes e de azuis, e a nesga de céu por cima, verde-acinzentado…

Dei uma volta pelo salão
            Pedro Cunha, densos rostos enclausurados;
            Elisa de Sousa, a serenidade, quiçá desalentada, de um cordeiro;
            Mónica Medeiros, cromático geometrismo;
            Sérgio Almeida (menção honrosa), retratos tristes, castanhos;
            Rita Alfaiate (menção honrosa), uma «narcoléptica prostrada» e um nu prostrado também, de bem visíveis costelas;
            António Bahia (menção honrosa), arranha-céus, na geometria dos telhados creme;
            Rita Sá Lima (menção honrosa), explosão de cor nos seus vasos floridos;
            Carolina Machado (menção honrosa), de roupas espalhadas a dizerem que assim está bem;
            Benedita Santos (menção honrosa): que bem atormentados são esses rituais eróticos, menina!...
            Teresa Pessoa, «memórias» salpicadas;
            Carolina Sales (menção honrosa), «positivo opaco» e «negativo transparente» (mero jogo de palavras, será?);
Eva, de Karyna Igesias
            Karyna Iglesias (menção honrosa), também gostei da sua Eva expectante ou sonhadora, assim como das duas meninas com o coelho de peluche por companhia (bonito aquele fundo de um branco intenso!);
            Eduarda Alves, negrura trágica;
            Juliana Lopes, da originalidade de bem sofredora superposição, como de duas personalidades que teimam em não se encontrar, sangrentos são os rostos;
            Marisa Nóbrega, a comprazer-se no verde duma imaginária floresta;
De João Maria Ferreira
            João Maria Ferreira, o quarto antigo e a velhota a surpreender-se, que é como quem pergunta ‘o que é isso de «7 ou como tornar alguém neutro para que o comprem»’?, que é o título do quadro;
            João Miguel Ramos, «bêbedo» e «Telémaco», retratos em ambiente surreal;
             David Lopes, a obsessão de uma bisnaga de tinta azul;
            Digo Branco, névoa?
            Jorge Charrua: os putos;
            Pedro Poscha : uma visão de anjos bem estranhos, um tem leveza (garante o pintor), o outro… vai-se embora!
            David Simões (menção honrosa), lúgubres são as figuras, amigo!
            Margarida Lopes (menção honrosa), tersas pinceladas de paisagens!...

                                                         José d’Encarnação

 Publicado em Cyberjornal, 2015-05-24:
 
Filipa Tojal com representantes da Estoril Sol
                                                               Os finalistas concorrentes
 




 



 

 


Os livros ficam!

            Conta-se que um senador romano terá dito perante os seus colegas, numa solene sessão: verba volant scripta manent, «as palavras voam, os escritos permanecem».
            Por essa norma nos temos guiado ao longo dos séculos. Os monges medievais levaram-na bem a peito, pois muitos deles passaram a vida a copiar manuscritos antigos e é graças a esse árduo e meticuloso empenho que hoje podemos comungar desses verdadeiros tesouros do pensamento humano.
            O facto de, neste ainda dealbar do século XXI, a tendência ser, cada vez mais, preguiçosamente, para o «digital» e os livros já não são livros são ebooks, as cartas já não é o carteiro quem nas traz mas sim o nosso computador que tem uma caixa de correio onde caem a todo o momento dezenas e dezenas de emails, cujo destino é, amiúde, o caixote do lixo, o recyble bin (!)… quando alguém ou uma instituição se disponibiliza a propor a edição de um livro em papel, aqui d’el-rei, será que não pode fazer-se um ebook que, algures no etéreo, mui potente e bem vigiado servidor guardará?    Bem andou, pois, a autarquia são-brasense em incluir no programa das comemorações do centenário várias edições em papel. Aliás, já me regozijei – e muito! – por ter resistido à tendência para disponibilizar a agenda cultural apenas em formato digital; e agora cumpre-me referir três das edições programadas, duas das quais já disponíveis: as cem biografias, da autoria do nosso director; a história breve, de Angelina Pereira; e o IV volume das memórias de S. Brás, dedicado aos ‘monumenta’, ou seja, aos inúmeros documentos que o Padre Afonso Cunha recolheu.
            Não podemos senão… aplaudir! As festas e o fogo-de-artifício encantam, mas são momentâneos; os livros ficam, de facto!
                                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 221, 20-04-2015, p. 21.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

E até o elefante entrou!...

            Quando vi entrar pela porta lateral aquele elefante enorme, de brinquedo, quatro homens (creio) a segurarem-lhe a ossatura, não pude deixar de me lembrar de uma das produções do Casino dedicada à gesta dos Portugueses. Aí, sim, entrou a mãe elefante e o filhote, ele que fazia a alegria da pequenada quando adregava descer o parque e ir banhar-se ao Tamariz!...
            A cena é agora evocada no espectáculo que Filipe La Féria preparou para o Salão Preto e Prata. Chama-se «A Noite das Mil Estrelas» e visa recordar, como que em rápido filme, quem foram as «estrelas» que, nas últimas décadas, tiveram gala na que foi – e, de certo modo, ainda continua a ser! – a privilegiada sala de espectáculos internacionais da Grande Lisboa.
            Em meados do século passado – dos anos 60 a 80, grosso modo (que me seja perdoada a preguiça de não ir aos arquivos ver datas correctas…) – o espectáculo no Casino obedecia a um esquema mais ou menos fixo: havia um corpo de baile (quem há aí que se não lembre das Bluebell Girls?!...), um artista estrangeiro, o momento do fado (imprescindível, porque os turistas compravam amiúde a estada num hotel da zona com ida ao espectáculo do Casino incluída), um momento de artes circenses (malabarismo, ilusionismo, transformismo, acrobacia... Enfim, um espectáculo variado, em que se procurava satisfazer bem diversificado leque de interesses.
            O espectáculo era, aliás, pontualmente publicitado na imprensa local, porque se considerava não ser apenas para os forasteiros mas para os residentes também, até porque o Casino era sala de visitas, aonde se podia ir (por exemplo) com a pequenada numa tarde de domingo, o «jardim de Inverno» apresentava-se acolhedor, sítio óptimo para uma conversa de café e mui agradável convívio. Tenho presente o anúncio publicado a 23 de Julho de 1980: havia o wonder-bar com strip-show, as matinés dançantes com show (aos domingos e feriados) e o salão-restaurante, onde as estrelas eram «Les Girls» (da Grieg’s Revue), Natalina José e Claus Beckers and Partner. E, a 16 de Abril desse mesmo ano, anunciava-se, numa produção de José Montes, o High Society Ballet de Nelo Losada, Mahogany, as vedetas da TV inglesa The Dougal’s e Marina Rosa como artista portuguesa. Para a passagem de ano, a 3500$00 por pessoa (bebidas não incluídas), a escolha foi Amália, presença, aliás, assaz frequente no Casino e, de modo especial, no réveillon. E já agora, diga-se que, para essa mesma noite, Nicolau Breyner esteve no Hotel do Guincho e Rodrigo no Estoril-Sol, as duas unidades hoteleiras que faziam parte integrante da concessão do Jogo.
            Mário Assis Ferreira viria a introduzir espectáculos temáticos, em que Júlio César actuava em jeito de compère. Evocou-se a gesta marítima portuguesa (já o disse); celebraram-se Mozart, Picasso… e até as 1001 noites, sendo mil (como no espectáculo de La Féria) as muitas que por aquele salão haviam passado e a uma era a que então se concretizava.
            Usa Filipe La Féria de todos os ‘mecanismos’ de que então se dotou o palco do Salão Preto e Prata: as plataformas que inesperadamente sobem e descem; os equilibristas que vêm do tecto sobre a cabeça dos espectadores, as imensas potencialidades da luminotecnia…
            Não nego que me emocionou esta «Noite das Mil Estrelas» – como, de resto, emocionará a quantos tiveram a dita de, como eu, usufruírem, ao longo de anos (já lá vão alguns, de facto, inclusive desde os tempos do «casino velho»…), das belezas que ali nos foram proporcionadas. Recorde-se, a propósito de beleza, que era ali o palco do concurso de Miss Portugal, sob a batuta de Vera Lagoa. E não poderei esquecer um dos últimos anos, em que foi pedido aos jornalistas que escolhessem a Miss Imprensa e nos puseram bem lá para os fundos (então, o salão não tinha o que hoje chamamos de «patilhas»…). Insurgimo-nos, ainda me lembro bem das razões do José Manuel Fialho Gouveia (então no Rádio Clube Português) – e nessa noite não houve Miss Imprensa, perante o grande desgosto de Vera Lagoa.
            Discutir-se-á sempre – quando há tanto por onde escolher – se a selecção foi a melhor. Cada um faria a seu jeito. Mas está bem o enquadramento inicial do Casino na gesta de Teodoro dos Santos, a ligação ao facto de o Sud-Express ter no Estoril a sua estação terminal vindo de Paris, a recordação dos corsos carnavalescos (ah! A girafa de Dali de 1964!... E os artistas de cinema que eram os «reis»!...).
            No fundo, em pinceladas fugazes, mas bonitas e oportunas, servido por bons artistas e mui excelentes vozes, pode ser este o retrato da sala de espectáculos em que a Costa do Sol se revia e ora torna a rever-se, nessa evocação. Que, senhores, o Casino Estoril nunca foi, de facto, na concepção dos seus proprietários, mero local de jogo: a diversão qualificada e as manifestações culturais sempre estiveram aí presentes. E Filipe La Féria captou bem essa mensagem.
  
                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 93, 20-05-2015, p. 6.



         
José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 93, 20-05-2015, p. 6.

 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

A parábola do Bom Pastor

             À homilia, o sacerdote encetou diálogo com as crianças que iam fazer a 1ª comunhão. Perguntou-lhes o que é que o bom pastor faria pelas suas ovelhas, se seria capaz de morrer por elas e qual era, de um modo geral, a sua preocupação em relação ao rebanho e aos lobos.
            Ouvi-o atentamente. Apercebi-me do balbucio hesitante dos meninos, de uma que outra frase feita apreendida nas sessões da catequese e dei comigo a pensar:
            É deveras sugestiva essa parábola dos evangelhos, plasmada, inclusive, na designação de «pastor» que o ministro do culto tem em parte das confissões cristãs. Mas quem é que a compreende realmente agora, vivendo (como essas crianças vivem) num ambiente urbano, sem rebanhos nem ovelhas nem pastores de verdade? Um mundo que desapareceu, de facto, do nosso quotidiano habitual e que, por isso, procura ser revivido, por exemplo, nas chamadas «quintas pedagógicas» e até nos jardins zoológicos onde também estão a entrar os animais que eram outrora do nosso dia-a-dia e que, hoje, deixaram definitivamente de o ser.
            Recordo como meus netos se admiram quando o vizinho – que tem curral junto à ribeira próxima – adrega trazer as cabrinhas para pastarem naquele lote do bairro ainda sem construção. Recordo a admiração dos meus estudantes quando, pela villa romana de Freiria, no interior do concelho de Cascais, passava o último e resistente rebanho das redondezas e se deliciavam a ver os cordeirinhos.
            E quando ouvi cantar o salmo 22 – «O Senhor é o meu pastor, nada me falta. Em verdes prados me faz recostar. Conduz-me junto das águas refrescantes para repousar» – recordei, claro, essa frase pintada nos pára-choques dos camiões das grandes rodovias brasileiras, mas não pude deixar de me perguntar:
            – É a parábola do Evangelho que deve ser actualizada ou, ao invés, será preferível que regressemos já a essoutro modo de vida, muito mais sereno e saudável, mesmo que, a determinado momento, posso tocar o telemóvel e as ovelhas olhem, admiradas, para o pastor e ele lhes diga, todo contente e de olhos a sorrir: «É pra mim!...».
                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde). nº 662, 15-05-2015, p. 12.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

O Poeta morreu?…

            Se me não engano, é uma glosa a este verso de Zeca Afonso – «Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu» – do poema «A morte saiu à rua» que assinala o fim da peça Torga, ora em cena no Mirita Casimiro (até ao dia 30 deste mês de Maio), numa evocação da personalidade e da obra de Miguel Torga, no ano em que passam 20 anos da sua morte.
            Encenou Carlos Avilez o texto que Carlos Carranca e Miguel Graça prepararam. Passagens dos Diários, poemas, excertos de peças como Sinfonia, Mar, Terra Firme e Paraíso, revitalização de episódios vividos… Tudo envolvido em intenso halo poético, sereno, inserido em despojado cenário, povoado apenas de sugestões, onde a Palavra campeia, os bancos são paralelepípedos caiados de branco, a prisão uma grade apenas…
            Pelo caminho, aqui e além, as mensagens, as ideias; alguma raiva, até, contra um desconcerto real que ao Poeta, ao Homem e ao Cidadão não agradava nada.
            Escreveu Carlos Avilez que achou «importante iniciar as comemorações dos cinquenta anos do Teatro Experimental de Cascais com um texto deste grande poeta», acrescentando que se relembra aqui «a condição inequívoca da Poesia, povoada de poetas desajustados, marginais, que procuram a razão de ser da sua existência, seres que dão à luz e vão morrendo. Mas… um Poeta não morre».
            E, na parede dos fundos, vão aparecendo rostos, de vez em quando, a relembrar os que já passaram ou os que fizeram o TEC: «Com este espectáculo homenageamos […] alguns dos actores que […] me têm acompanhado nesta enorme aventura» – são, ainda, palavras do encenador.
            E Carlos Carranca comenta, por seu turno, no texto do programa, que Miguel Torga viu no homem civilizado «o símbolo da degradação existencial» e que, em farsa, o ‘bicho homem’ afirma «a sua liberdade, ganhando a vida a perdê-la».
            Vão bem os actores. Aprecia-se o monólogo de Domingos, o pescador que, na peça Mar (que o TEC levou à cena, no Gil Vicente, em 1966), conta como uma sereia lhe apareceu, um dia. Gosta-se de Teresa Côrte-Real, taberneira, uma interpretação ímpar, ao seu melhor jeito. Mas regista-se, acima de tudo, um verdadeiro achado: o saxofone de Eduardo Abreu, em palco, a acentuar, em escassos segundos (dir-se-ia), qual coro de tragédia grega, esta ou aquela fala, este ou aquele passo. É um calor bom, singelo mas bom, de mui excelente recorte. Parabéns!

                                                                    José d’Encarnação


 

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Freiria: a villa romana poderá vir a ser reabilitada

            No âmbito da preparação do Orçamento Participativo – iniciativa camarária que visa envolver a população na preparação de programas a concretizar no seu interesse – foi aprovada, na reunião havida, em S. Domingos de Rana, no passado dia 6, a proposta de se proceder à reabilitação da villa romana de Freiria.
Recorde-se que aí decorreu no Verão de 2002 a 18ª e última campanha de escavações, sob orientação dos arqueólogos da Associação Cultural de Cascais Guilherme Cardoso e José d’Encarnação. Desde esse ano que os trabalhos arqueológicos propriamente ditos estão suspensos, porque se aguarda a concretização do Plano de Pormenor (aprovado de acordo com o aviso nº 16 203/2010, da Câmara Municipal de Cascais, publicado no nº 157 da 2ª série do Diário da República, datado de 13 de Agosto de 2010) para se retomarem as diligências, com vista, inclusive, à melhor compreensão de como se articulam os vários elementos desta casa de campo romana e à sua musealização, prevista no plano para quando se iniciarem os trabalhos de urbanização aí contemplados.
Entretanto, torna-se necessário proceder a cuidada limpeza do sítio, por onde a vegetação tem crescido; à consolidação de algumas estruturas e da vedação. Eventualmente se poderá proceder também à edição de um desdobrável que dê conta da importância e do significado cultural da villa, que está superiormente classificada como imóvel de interesse público desde 1997.
A proposta ora aprovada vai seguir a tramitação habitual: depois de apreciada a sua viabilidade pelos serviços técnicos camarários, poderá vir a ser submetida à votação dos munícipes.
Registe-se que a villa está a merecer cada vez maior atenção por parte das várias entidades, tendo-se organizado recentemente visitas de estudo, de que as fotos anexas documentam dois instantâneos, que também mostram o estado em que se encontra.

                                                                       José d’Encarnação
 
Publicado em Cyberjornal, edição de 10-05-2015:

sexta-feira, 8 de maio de 2015

O altar a Triborunnis [Incursões (10)]

            Data de Dezembro de 2012 a minha anterior colaboração para o Ecos do Costa. Congratulo-me, pois, com o anunciado recomeço desta publicação, que eficazmente ajuda a congregar sócios e colaboradores em torno de um projecto comum.
            Sempre a temática cultural foi timbre desse projecto e a minha colaboração tem ido no sentido de dar a conhecer monumentos romanos do concelho que, pelas suas características, possam despertar interesse. É a Epigrafia a minha especialidade e, por isso, nesse domínio me situo. E, para recomeço, nos primórdios de um ano, em que se fazem votos de bem-estar, a primeira ideia que me ocorreu e que ora partilho é a de referir o achado, na villa romana de Freiria (S. Domingos de Rana), de um altar com a seguinte inscrição nele gravada:

TRIBORVNNI ·
T · CVRIATIVS ·
RVFINVS ·
L · A · D ·
 
            Trata-se do que chamamos um ex-voto, ou seja, em resultado de uma promessa ou fruto de uma pulsão íntima, alguém consagra a uma divindade um objecto, neste caso, a miniatura de um altar de sacrifício, fundamentalmente para obter a protecção divina.
            Como frequentemente acontece nas inscrições da actualidade, há palavras que vêm em siglas, não só para se poupar espaço (e consequente diminuição do custo da encomenda), mas também porque se trata de palavras facilmente compreensíveis no contexto. Assim, a primeira tarefa do epigrafista é fazer o desdobramento dessas siglas, para apresentar depois a respectiva tradução:

            TRIBORVNNI / T(itus) · CVRIATIVS · / RVFINVS · / L(íbens) · A(nimo) · D(edit) ·

            A Triborunis. Tito Curiácio Rufino ofereceu de livre vontade.

            Que estará, portanto, ‘por detrás’ destas singelas linhas?
            Reservando para outra oportunidade a reflexão sobre o nome da divindade e sobre a identidade do dedicante, direi que interpreto desta forma este monumento: aqui chegado, vindo mui provavelmente da Península Itálica, logo nos primórdios do século I da nossa era, Tito Curiácio Rufino verificou que este era um bom local para se estabelecer com os seus familiares. Não ousou, porém, mexer na terra sem pedir a prévia autorização à divindade que, em seu entender, a protegeria. Terá perguntado o nome aos indígenas que por aqui já viviam. Percebeu Triboruni, palavra que nunca ouvira, mas lá mandou gravá-la assim mesmo na miniatura de altar que desejava oferecer.
            Cumprido o ritual, estabeleceu-se em Freiria.

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Ecos do Costa (Boletim Informativo do Clube Desportivo da Costa do Estoril), nº 31, Abril 2015, p.11.

 

Tentar descobrir onde está!

            23 minutos após a hora marcada para a consulta, o médico vem cá fora e explica:
            Estão a tentar descobrir onde está! Eu pedi para hoje…
            Não era previsível que a prótese tivesse desaparecido no percurso entre a clínica e o laboratório. Em tempo normal e numa outra idade (Eugénio já tem70 feitos…), era capaz de vociferar, de clamar contra a incompetência reinante, contra a falta de civismo. Ocorrer-lhe-ia perguntar: «Num tempo em que as comunicações são tão fáceis, em que se assinar um ‘pacote’ a contemplar todos os telefonemas para todos os telefones fixos e móveis de todas as redes… não poderiam ter-me telefonado?». Não perguntou. Antes, quando o médico lhe veio trazer a novidade, apenas exclamou, com toda a sinceridade:
            Óptimo!
            Óptimo, não – retorquiu o médico.
            Óptimo, sim! Se a perderam, vou ter direito a outra!
            Esse era, no entanto, o dia de ser posta à prova toda a sua serenidade.
            De facto, esperou dez minutos na recepção para lhe ser marcada nova consulta. Preencheu, em termos curiais, o «inquérito de satisfação» (neste caso, de «insatisfação»: «Num serviço com tanto movimento e em que está previsto o atendimento por dois funcionários, não parece compreensível que, em horário de consulta para 4 dos 5 consultórios previstos, haja apenas uma funcionária». Aliás, nesse campo do atendimento, tentara antes o contacto com uma entidade que era suposto estar acessível. Não estava. Ou, pelo menos, o telefone tocou, tocou, tocou até que o sistema optou por desligar automaticamente.

Deixar o carro e ir de comboio
            Partia de seguida para Lisboa. Antes, porém, foi arrumar o carro num parque pago, que felizmente ficou com um lugar livre no momento; dispunha-se a estacionar num lugar vago, quando o guarda lhe veio dizer: «Estacionar aí pode, mas o código da estrada tanto é válido lá fora como aqui!». Os condutores haviam estacionado mal, comentou o senhor, e, por isso, esse espaço parecia livre, sem reserva para deficientes, mas não estava, era mesmo para deficientes. Resignou-se.
            Na bilheteira, tudo bem; esperou dois minutos, o tempo suficiente para dar uma olhadela ao mapa dos serviços mínimos previstos para a greve do dia seguinte, 16 de Abril. Recebeu, entretanto, uma chamada no telemóvel: a apresentação do livro prevista para a quinta-feira seguinte fora adiada sine die, por motivo de força maior; teria, pois, de alterar tudo o que agendara para essa semana.

Uma piscina cheia de… areia!
            O comboio partiu às 17.16 horas previstas. Estava um sol radioso e os termómetros marcavam 24 graus centígrados. Da janela, viu a Piscina Alberto Romano e pasmou: acumulara-se a areia lá dentro até à borda e havia dois catraios que a utilizavam como se fosse praia!... Compreende-se: ainda se não estava em época estival, as diligências balneares ainda poderiam esperar mês e meio.
            Consoladinho com a ideia de estar vivo e mantendo na boca o sabor tropical do pastel de coco que agarrara na bancada da cozinha, Eugénio usufruiu, em pleno, do quentinho da carruagem. O painel luminoso vermelho dela marcava 30/03/15 14:12 – e estava-se a 15-04-15 e eram 17:50!... Coisas!
            Rogou a S. Pedro que não deixasse chover, agora que ia sair. S. Pedro não o ouviu. No Cais do Sodré, a paragem dos táxis tinha fila e táxis não se vislumbravam por perto. Foi a pé até ao Museu do Carmo, entre uma pinga e outra, a chuva parecida com aquela que chamamos de “molha-tolos”. O certo é que, à noite, no noticiário, veio a saber que sobre Lisboa caíra uma tromba de água!...
            À hora da deita, pensou: fora simpática a cerimónia da entrega dos prémios a investigadores na Associação dos Arqueólogos Portugueses; e, apesar de todos os incidentes do dia e esse seu olhar clínico sobre uma realidade ‘desconcertada’, valera a pena vivê-lo!

                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 91, 06-05-2015, p. 6.

 

Meditação precisa-se!

             Não pôde incluir-se por completo, devido a serem tantos os depoimentos, o que, sob o título «Lutador até ao fim», escrevi em jeito de despedida terrena ao Carlos Saraiva. A primeira parte rezava assim:
            «Na última crónica, vinda a lume um dia antes do seu passamento, evocava Carlos Saraiva a figura do Padre António Vieira, sublinhando “o seu corajoso combate de púlpito contra a corrupção que minava e fragilizava a própria soberania portuguesa” e suspirava:
            “Oxalá Portugal ouvisse…
            E meditasse…”.
            Assim.
            Habituáramo-nos a meditar os seus Factos & Sinais – que motivo eram sempre para meditação, levados também por aquele seu gesto de acariciar o queixo e o leve sorriso irónico em jeito de “vou dizendo as verdades como quem não quer a coisa”.»
            Tive, sem dúvida, uma juventude privilegiada nas Casas Salesianas (ele também foi aluno salesiano), onde o espaço diário para a meditação assumia um papel preponderante a que só hoje – curioso! – reconheço o devido valor. No ginásio, os minutos passados na ‘bicicleta’ ou na ‘passadeira’ dão-me, agora, oportunidade de retomar esse espaço de reflexão, para a possível programação do dia e da semana.
            E, ao ouvir os políticos (ouvimo-los cada vez menos, é certo…), verifico, cada vez mais, que eles não são senhores, porque, no seu dia-a-dia, lhes falta tempo para meditação.
            Mesmo que essa tivesse sido a única lição de vida de Carlos Saraiva, já lhe valia a pena ter vivido!
                                                                          José d’Encarnação

Post-scriptum: Encontrei, ao ‘folhear’ as pastas do computador, esta nota que foi publicada, a 11 de Março de 2008, no Jornal de Cascais, nº 117, p. 4. Refere-se à morte repentina de Carlos Saraiva, que fora director daquele semanário. Peço desculpa pela ousadia de agora aqui a inserir; mas… pareceu-me que não terá perdido actualidade!...

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Evocação do Doutor Jorge Morais Barbosa

             Nascido em Lisboa no ano de 1937, o Doutor Jorge Manuel de Morais Gomes Barbosa faleceu anteontem, dia 2, tendo sido celebradas hoje, dia 4, as suas exéquias, na capital.
            Na wikipédia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Morais_Barbosa - poderão encontrar-se dados sobre a sua enorme actividade como investigador e como docente na área da Linguística. Era o decano dos linguistas portugueses e também por esse motivo integrou o grupo que prontamente se levantou contra o chamado Acordo Ortográfico. Assinala-se na wikipédia que a sua preocupação com a promoção da língua portuguesa o levou precisamente a essa intervenção pública contra a Terminologia Linguística dos Ensinos Básico e Secundário (TLEBS) e contra o Acordo Ortográfico de 1990, sendo mesmo o promotor de uma petição em linha contra a iniciativa, tendo sido recebido, por isso, «com outros signatários dessa petição, no Palácio de Belém pelo Presidente da República Portuguesa, em Junho de 2008, em audiência especial».
            Já eu estava como docente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra quando o Doutor Jorge Morais Barbosa veio da Universidade de Évora, e mantivemos sempre a maior Amizade um pelo outro.
            Tive oportunidade de acompanhar o seu labor e a ele me uniu grande amizade, nomeadamente porque eu fora, na Faculdade de Letras de Lisboa, colega de seu irmão Jorge, que enveredou pela Filosofia e que mui precocemente faleceu, quando ainda muito havia a esperar dele, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
            Jubilou-se em 2007 (uma lição memorável no Anfiteatro I da Faculdade, completamente lotado), mas continuou durante algum tempo a sua intensa actividade científica.
            Encontrava-o também de vez em quando por Cascais, onde tinha casa e passava parte do Verão e alguns fins-de-semana. Ainda recentemente eu telefonara à sua esposa, como fazia amiúde. Lembro-me de que me deu conta do agravamento do seu estado de saúde, no lar onde fora necessário recolhê-lo para poder ter melhor assistência.
            Recordarei para sempre o seu carácter afável, a sua intransigente defesa do que lhe parecia serem as posições mais correctas, nomeadamente para a vida da Faculdade.
            É um bom amigo que parte. Um docente empenhado, um investigador probo. Um cidadão atento!
            Que descanse em paz!
            À sua Esposa, Élia, apresento os meus mais sentidos pêsames.

                                                           José d’Encarnação
 

 

Erva-das-azeitonas

            Acabara de entregar o Sebastião para ser incinerado. Uma entrega dolorosa, porque, em quatro dias, ele – que era o mais saudável dos sete, orgulhoso do seu lindo pêlo preto, a fazer inveja aos persas da vizinhança… – fora mortalmente atingido por uma pneumonia e nem nos deu tempo a nos convencermos que o iríamos perder!...
            Para espairecer, passeei pelo mato anexo à Fundação S. Francisco de Assis, enquanto minha mulher tratava da burocracia. E apanhei uns raminhos de nêveda – que, lá em casa, azeitona sem nêveda nem sabe a azeitona! Perguntou-me a Maria João que era aquilo. Expliquei-lhe. E ela foi apanhar também, pois desconhecia por completo!...
            Constituiu para mim, por conseguinte, uma boa surpresa ler, no Noticias de S. Braz de Março, que um casal, Laura e Nuno Dias, se haviam instalado precisamente em S. Brás de Alportel, onde criaram a empresa «Dias de Aromas», com o objectivo de fazerem a exploração biológica de ervas aromáticas e medicinais. Ao prepararem para o efeito os terrenos herdados dos avós, aperceberam-se dos pés de nêveda que por ali cresciam. E foi mais uma inspiração, porque cedo verificaram que – apesar de os algarvios usarem muito essa planta, quer para temperarem as azeitonas de conserva quer para acompanharem os pratos de caracóis – a aromática nêveda, da família da hortelã, é pouco conhecida e proporciona utilizações singulares, susceptíveis de lhes virem a proporcionar novos êxitos e boa perspectiva de negócio.
            Na nota publicada, referem-se que estão já plantadas na propriedade 80 mil pés de 31 espécies diferentes: malagueta cayenne, tomilho-cabeçudo, tomilho-limão, segurelha, hortelã-pimenta, erva príncipe, salva, manjerona…
            Sempre pensei que – não fora essa brutal «dívida externa» contraída ao sabor dos grandes grupos económicos – o Povo era capaz de dar a volta por cima, agarrar-se à terra para a trabalhar! Não estamos no Brasil, onde (dizem!) basta botar a semente e logo vem o fruto de seguida sem te incomodares; contudo, bem aproveitadinho, também o nosso solo nos há-de reservar surpresas e a nossa vegetação autóctone continua a maravilhar-nos! Que o digam a Laura e o Nuno. Eles até têm por lá «um avião encomendado por ingleses ao Canadá durante a 2ª Guerra Mundial mas que se despenhou no Algarve antes de combater»!... Ora vejam só!

                                                          José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 661, 01-05-2015, p. 12. Reproduzido em Noticias de S. Braz nº 221, 20-03-2015, p. 21.

As fotos que seguem foram enviadas por Dora Barradas e dizem respeito ao comentário que fez.
 


domingo, 3 de maio de 2015

A viajar pelos meandros da História…

            De há uns anos a esta parte que o nome de Angelina Pereira se encontra visceralmente ligado à investigação arqueológica do território de S. Brás de Alportel.
            Palmilhou-o miudamente em todas as direcções, na busca dos mais ínfimos vestígios de um passado remoto. Completou a leitura do terreno com muitas leituras outras, desde artigos da especialidade que a ajudaram na identificação desses vestígios (objectos ou estruturas) a livros de História geral, detendo-se com mais pormenor, como não podia deixar de ser, nas obras que directamente se prendiam com a história local e regional. Obteve, assim, amplíssima bagagem não apenas para o enquadramento histórico da ‘sua’ Calçadinha (seguramente, a ‘menina dos seus olhos’), mas para colocar Alportel e S. Brás e S. Brás de Alportel no contexto da história portuguesa.
            Com tantos conhecimentos adquiridos, não é fácil propor uma viagem breve por esses meandros da História. Dizer dos materiais líticos pré-históricos; da sítula romana de bronze e do epitáfio da ossonobense Cecília Marina; dos topónimos árabes e do poeta Ibn Ammâr; dos primeiros tempos medievais perdidos na noite dos tempos; de uma S. Brás, aninhada no debrum da Serra, que parece nada ter reagido à epopeia dos Descobrimentos (tudo lhe passará ao largo, parece… Escravos vendiam-se em Lagos, não por ali)… Houve, porém, palácio aonde vinha veranear o senhor bispo do Algarve quando a sede episcopal saiu de Silves e veio para a vizinha Faro – e esse é, porventura, um mote a futuramente potenciar: «Até os senhores bispos apreciavam nossos ares!».
            Realça-se o papel excepcional que a produção da cortiça desempenhou, quer como fautor de libertação em relação a Faro, quer, de seguida, sobrevindo a crise, qual motor de migração para terras alentejanas ou da Beira-Tejo, onde esse gérmen o génio são-brasense lograra auspiciosamente fazer desabrochar.
            Dos canteiros pouco se fala; contudo, ao propor itinerário pelo centro histórico e também pelos sítios derredor, não se esquece Angelina Pereira de chamar a atenção para o lavrado das cantarias, uma das pérolas que abraçam dois monumentos prenhes de história: a secular igreja matriz e o assombroso Museu do Trajo, assim chamado por ter nascido de uma colecção de trajos, mas que é, na actualidade, escrínio onde se guardam e se revitalizam mui ancestrais tradições!
            Alvejam ainda nos cumes, aqui e além, o moinho branco e o preto, aos pares; por entre os bem variegados verdes vegetais, assoma-se rendilhada chaminé datada; junto à ermida de S. Brás pernoitariam outrora os romeiros, antes de se abalançarem à penosa travessia da Serra; e nas fontes, ora de cara lavada, há lugar para a necessária pausa dum frenesim quotidiano: «Não sei se cantam, se choram / As fontes, correndo ao mar; / Se canto, sinto que cantam; / Mas, se choro, oiço-as chorar!»…
            Por aí vamos, pois, com Angelina Pereira, em demanda do que, na verdade, não nos deixará de surpreender.
            Breve a história, sim; demorada será, porém, sua saborosa degustação!

                                                                       José d'Encarnação

            Prefácio a Breve História de S. Brás de Alportel, de Angelina Pereira, Edição da Câmara Municipal de S. Brás de Alportel, Abril de 2015, p. 9-10. ISBN: 078-989-96916-3-6.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

A reflectir sobre a guerra colonial

            «A gramática dos sistemas humanos num cenário de guerra, a banalidade do mal (conceito forjado a Anna Arendt), os paradoxos e as contradições humanas insinuam-se nesta obra, como tópicos para meta-análise, reclamando do leitor a construção de um pensamento próprio, matizado pelo seu olhar» - escreve Ana Umbelino, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Torres Vedras, no prefácio ao livro O Ar Cheirava a Pólvora, de Manuel Ponciano.
Declaro-me incapaz de fazer análises assim; mas aprecio deveras quem tão bem maneja a palavra.
Na dedicatória manuscrita que teve a gentileza de lavrar na página de rosto, formulou Manuel  Ponciano o voto de que «a liberdade seja uma marca dos nossos dias!». Na verdade, este seu livro de 261 páginas é – e vou exprimi-lo, perdoar-me-ão, em frases singelas – apelo à liberdade, tendo como pano de fundo o ambiente vivido em Portugal nos primeiros anos da década de 70, em plena «guerra colonial», onde liberdade não era, de facto, palavra permanente no vocabulário quotidiano.

A história de um mancebo
O ponto de partida? A experiência pessoal do autor que, se bem interpreto a frase da pág. 246, José Luís Peixoto o terá incitado a partilhar, qual «acto psicanalítico», para que não continuasse no sótão «encerrada a se5te chaves»: «faz-se a catarse emocional» (p. 177), também com o objectivo expresso de contribuir para que, doravante, «não mais se pronunciasse a célebre frase homo homini lupus», é ‘o homem lobo do homem’ (p. 172).
O enredo, o normal nesse tempo: saído de uma congregação religiosa, onde fizera os estudos, o mancebo vai para Mafra; aí se prepara para a guerra; tem grave acidente no decorrer de um exercício; é colocado como escriturário no RI 2 de Abrantes. Começa a pensar em organizar a vida, quando inesperadamente o mobilizam para Angola, em regime de substituição. Casamento aprazado é, porém, para se concretizar, apesar de tudo, antes de embarcar no Boeing 707 que o levará a Luanda, donde seguirá, num Nord-Atlas, para Santa Eulália, onde chefiará a secretaria de um Comando de Agrupamento.

Considerações acerca do desgoverno
Descreve Manuel Ponciano com alguma minúcia a vida em Mafra. A vida concreta e, sobretudo, a vida psíquica, os pensamentos que então o terão assaltado.
Esperar-se-ia – nomeadamente atendendo ao título – o relato da experiência militar africana, ainda que, como responsável por uma secretaria, Manuel Ponciano estivesse embrenhado mais em tarefas burocrático-administrativas que bélicas. Preferiu, no entanto, ou parece ter preferido anotar três ou quatro episódios para privilegiar a atmosfera emocional da presença da guerra no dia-a-dia dos Portugueses e da revolta latente prenunciadora do 25 de Abril, demorando-se em longas considerações acerca do desgoverno e da tirania e optando por verberar, pontualmente, as senhoras das altas patentes militares que (dizia-se!) viriam quinzenalmente a Lisboa à cabeleireira, a frase «um cavalo vale mais do que mil homens», os caixões que chegavam com pedras dentro em vez de corpos...
Perpassa, pois, pelo livro o clima de angústia perante uma guerra absurda, implacável ceifeira de vidas e de esperanças, em obediência a uma política cega. Uma evocação desagradada e, até, de incontida revolta. Uma visão quase apocalíptica, dir-se-ia, patente, por exemplo, nestas frases:
«Este povo voltou à estaca zero» (p. 183);
«Os terrenos estão secos, a lama desapareceu, mas os pedregulhos continuam a rolar por entre as silvas que se opõem à fertilização para que novo fruto brote e venha satisfazer as necessidades de quem luta por um simples prato de lentilhas» (p. 206).
            E, nesse aspecto, a obra revela-se mui significativa, ainda que o autor de certo modo reconheça que poderia ter sido mais sóbrio: na pág. 245, pede perdão ao leitor pela «maçada que teve Ao ler estas páginas» e, na pág. 249, dialoga mesmo com ele: «Caro leitor, só espero que não te tenha enfastiado».
Convirá referir, todavia, a opinião de Ana Umbelino, que escreve no final do prefácio:
«Longe de se reduzir a um mero exercício de catarse, consubstanciado numa narração espúria ou magoada de episódios longínquos, suspensos no tempo, longe de se afundar no patético, ou na desesperança, a presente obra abre um clarão para o futuro, corporizando um gesto de compromisso» (p. 7-8).

A falta de revisão, pecha dos nossos dias
Não posso concluir sem, mais uma vez, me insurgir contra uma pecha cada vez mais frequente: a falta de revisão, que não honra os autores nem os editores.
No exemplar que tenho, além de gralhas, de pontuação inadequada, de palavras amiúde repetidas (caso do advérbio ‘bem’, que é recorrente), de lapsos de concordância e de frases sem sentido, caso sejam analisadas à lupa (e um bom revisor o faria), há inclusive páginas com numeração trocada. De frases sem sentido (em meu entender, claro!), respigo só ipsis verbis duas passagens, para justificar a afirmação:
«Mas Mafra, como assistiria a estas desventuras? Como recebia todos estes militares aos quais gostaria de lhes dar um bom acolhimento?
Por agora, antes que um novo carro de quatro rodas, sem que olhasse para trás e cortasse com o fio da meada que a ligava a gerações desfeitas, viesse a retomar um reconhecimento dos seus antepassados, novo paradeiro militar se me oferecia» (p. 183-184).
«Chegando ao final é que havia algum final a esperar-me, não seria mais quem cadáver ambulante comandado por forças alheias à minha própria vontade» (p. 241).
Porventura, se me é permitido, esta última frase terá sido pensada assim:
«Chegando ao final, se é que havia algum final a esperar-me, não seria mais que um cadáver ambulante comandado por forças alheias à minha própria vontade.»
O Ar Cheirava a Pólvora foi publicado pela Chiado Editora (Novembro 2014), com o apoio da Câmara Municipal de Torres Vedras, cidade onde o autor reside. Teve apresentação pública, a 19 de Fevereiro de 2015, na Biblioteca Municipal. ISBN: 978-989-51-1679-9.

                                                  José d’Encarnação