quinta-feira, 25 de maio de 2023

Raízes!

           Minuciosamente, acocorado, o Nuno arrancava, um a um, os pés de relva sãos, para os transplantar depois nas chagas que o vírus americano lhe provocara no relvado, como em muitos do Algarve e da Grande Lisboa. Uma praga sem antídoto à vista!

            E dei comigo a pensar na palavra «raízes».
            Palavra que todos os dias me soa:
– É este vaso cheio de raízes e já nem terra quase tem.
– São as raízes fortes destas árvores que levantam as pedras da calçada.
– É a guerra a destruir, impune, ancestrais monumentos que os povos consideram suas raízes.
– São as gentes daquela freguesia que, por via de desenraizado decreto de Lisboa, gizado em obscuro gabinete economicista, protestam contra a forçada união com uma outra, nada consentânea com as suas raízes tradicionais.
– É a raiz de alteia: «Devias tomar chá de alteia, homem, que te aliviava essa tosse!»…
            Luta o Nuno contra as raízes daninhas do seu relvado. Luta a Maria contra o  basto raizame do seu vaso de gerânios. Lutam os homens do Património Cultural para que, cegamente, se não destruam as raízes antigas. Lutam os técnicos das autarquias para que se revitalizem e se não deixem estiolar as fecundas raízes da Tradição. Ai, senhores, esta Quinta-feira da Espiga! – saudades!
 
                                                           José d’Encarnação 
 
Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 318, 20-05-2023, p. 13.
 
 

Nunca mais!

            Decerto se ouviu de novo, com emoção, tanto no 25 de Abril como no 1º de Maio, o grito «Fascismo nunca mais!». Um bom desejo, de facto – para nós, Portugueses, e para o mundo, quando, agora, se vai sabendo de tantos fascismos por esse planeta além, tanta tortura e mortandade!...

Reencontrei, há dias, a Genoveva.
– Então, já temos novidades em relação à casa?
– Oooh!... Nunca mais disseram nada! Garantiram-nos que voltariam para ver o estado em que se encontra e nada. Nunca mais disseram nada!

«Nunca mais!». O desalento estampado no rosto de quem dispõe de casa pertencente a um departamento do Estado, em mui precárias condições de habitabilidade. Aquando das grandes chuvadas, o telhado abateu. Lá se conseguiu, depois das mais variadas diligências e empenhos, que uns senhores viessem ver o que se passava. Que voltariam, disseram. Não voltaram. Não deixaram contactos. E Genoveva, já septuagenária, o marido com alzheimer, espera. Desespera!
Quando por i tanto se apregoa das casas devolutas, quantas do Estado e de instituições públicas não conhecemos nós!...
Mas, confesso, o que me doeu foi esse «nunca mais» embrulhado na mais profunda melancolia e desvontade de viver assim!...
Claro, também me lembrei daquela tarde em que, regressado da pedreira, ao saber que eu pregara mentira da grossa, meu pai pegou no cavalo-marinho e ameaçou, com voz grossa:
– Tu nunca mais me voltas a mentir, ouviste?
O cavalo-marinho era um pedaço de pneu de camioneta, preparado em jeito de chicote, que pendia atrás da porta. E meu fofo bem sabia quão doloroso ele era!
Preferia que Genoveva me tivesse respondido:
– Ainda não vieram; mas lá virão decerto.
Gostava que esse «ainda não» reflectisse réstias de esperança. E que, aliás, de semblantes carregados, olhares tristes, a expressão «nunca mais» começasse a ser visceralmente banida, substituída por um sorridente «ainda não». E não é que – com esse, mais suave, ‘ainda não’ – até nos sentiríamos melhor?!...

                                                                       José d’Encarnação   

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 844, 15-05-2023, p. 10.

 

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Esconderam o imperador!

            E por ali ficou, sem ver a luz do Sol, durante mais de dois milénios!

             Ele bem ordenara: quero o meu nome sempre bem à vista, por todo o meu Império, em tudo quanto seja obra de monta, pois nada pode ser feito sem o meu beneplácito, directo ou alcançado por intermédio dos meus fiéis mandatários!
            O nome e os meus títulos. Que sou imperador, porque subi ao trono pela força das armas; sou César, porque foi Júlio César o meu pai adoptivo e eu lhe sucedi; sou augusto, porque os deuses assim me quiseram: que viesse para aumentar a felicidade de todos e afastar de vez a angústia que a muitos acabrunhava! Por isso, aliás, sou Pai da Pátria e Sumo Pontífice, interlocutor privilegiado entre os homens e as divindades!...
            Mas neste caso, Senhor, vosso nome, além de cortado a metade por quem já de vós nada sabia nem queria saber, vosso nome aguentou camadas de argamassa por cima!
– Que palavras estão aqui, Amigos? Será bruxaria? O melhor é mesmo escondermos tudo isso bem escondido, que esta pedra assim acaba por estar mesmo a calhar aqui!
E, na tarde desse dia, os operários assim fizeram. Há séculos, decerto!
            Outro dia, houve, no entanto, em que outros homens decidiram recuperar a torre antiga, renovar-lhe o aspecto. Deram em descascar as camadas e eis senão quando o nome do imperador surgiu! Esse mesmo: o de Augusto, o primeiro imperador romano!
Que teria ele mandado fazer em Viseu para aí termos uma pedra com o seu nome? Ou será que se trata apenas a menção cronológica de um evento qualquer ocorrido «no tempo em que era imperador César Augusto»? Ou quiseram as gentes de Viseu levantar monumento em sua honra, reconhecidas por benesse vinda da Roma longínqua?
            Truncaram-te o nome, Augusto! Partiram a inscrição em que tudo isso viria, supostamente gravado para todo o sempre! Ficámos, pois, sem resposta!...
A não ser que, num outro dia, num dos edifícios por perto, se nos depare o que ora falta!
E todos ficaremos mais contentes!

                                                                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 843, 01-05-2023, p. 10.

 Post-scriptum: Um dia, porém, houve uns senhores que ousaram tentar adivinhar o resto do escrito. Pelo menos uma boa parte. E deu o seguinte: