Há
sempre a tendência de se catalogar um livro. De um modo geral, porém, a classifica
ção aponta num sentido e, amiúde, o livro é mais do
que isso, por o autor nele fazer reflectir muito da sua personalidade e da sua
experiência de vida. Autobiografia? De certo modo, sim. Mesmo que o homem fora
uma ilha – contrariando a peremptória afirma
ção
em contrário, de John Donne – ou até mais ainda nessa circunstância, parte
significativa de si estaria lá.
Não
é autobiografia, no sentido próprio do termo, o romance As Pessoas de Minha Casa, que Júlio Conrado publicou (Âncora
Editora, Lisboa, 3ª edição, Junho de
2017); mas muitas das páginas hão de ser entendidas como tal. Inclinar-me-ia a catalogá-lo
– mania de leitor, já se vê! – como romance de costumes.
Nascido
em Olhão, a 26 de Novembro de 1936, Júlio Conrado acompanhou os pais, ainda
criança, para Carcavelos, numa época em que o Algarve não oferecia risonhas
condições de vida e a Costa do Sol, bem vizinha da capital, se imaginava, para
alentejanos e algarvios, como recheio de boas oportunidades. Tinha, pois, oito
anos quando acabou a II Guerra Mundial e foi em Carcavelos que passou meninice e juventude
e o mundo dos anos 50, em que prestou serviço militar e começou a encarar a
vida profissional. A loucura dos anos 60 apanhou-o já homem feito e, pela Revolução de Abril e anos subsequentes, era já o escritor,
o crítico literário, revelando a sua larga propensão para a escrita, que nunca
haveria de largar, independentemente da ocupação
profissional.
É
As Pessoas de Minha Casa a história
da sua família? Não. «Casa» entendo eu como «ambiente», «horizonte em que me
fui embrenhando». Estamos, todavia, perante uma 3ª edição.
E um dos aspectos que mais pode intrigar o leitor á a circunstância de haver
nessa edição «palavras somadas e suprimidas».
As suprimidas visaram dar maior fluidez e propriedade ao discurso; as somadas
derivam do facto de uma das personagens que se supôs retratada nas anteriores
edições se ter rebelado num manuscrito a que o autor, por bom preço, acabou por
ter acesso em leilão e, devido a isso, forçado se viu a incluir pormenores
olvidados ou voluntariamente omitidos, nomeadamente da vida íntima.
A
«parte primeira» (p. 11-86) tem por título «Guerra, caça e amores, por um
prazer cem dores»; a «parte segunda» (p. 87-151) agarra o título do livro todo
e chama-lhe o Autor «romance intercalar». Há uma «parte terceira» (p. 153-228),
de mui significativa temática, «Oração
aos restos». E os restos são o necessário «regresso à Vila das Quintas»
(Carcavelos), a paisagem da infância e da juventude,
com «paragem no Bairro de Alcântara». No «Epílogo» (p. 229-230), retomamos o
contacto com o Eurico, a Judite, o Alfredo, o Aurélio e a Vanda, de que nós já nos esquecêramos, por estarem
seus nomes consignados nas intrigas amorosas, políticas e interesseiras vividas
na parte primeira, nos conturbados meses que se sucedem à Revolução de Abril. O «Verão quente» de 1975 e suas
sequelas na vida familiar e afectiva - é neste aspecto pessoal que se insiste,
mais do que em considerações político-partidárias, apenas afloradas aqui e
além.
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Rapazes em Carcavelos, na década de 40
do século passado. O mais alto é o autor. |
Os
capítulos têm nome. Resistiu o Autor a essa tendência, dir-se-ia surrealista,
eu chamo-lhe de preguiçosa, de os identificar com números, sem palavras, como
quem tem medo de se expor ou pensa que o leitor deve entender por si o que está
escrito sem necessidade de antolhos. Sou contra. Há que sugerir, arriscando
mesmo, eventualmente, a recriminação
do leitor. E Júlio Conrado não hesitou e deu nomes bem sugestivos.
Adequa-se
cabalmente a linguagem a cada um dos cenários. E essa constitui, sem dúvida, a
grande virtude do escritor, a demonstrar uma maturidade invejável. Dificilmente
haverá quem não se deixe levar pela narrativa, surpreendido com o rigor
vocabular, que representa, a meu ver, um dos grandes aliciantes
formais do romance.
Transcrevo
uma das passagens iniciais do capítulo «Olhe, botão»:
«Noutro
tempo, ao garanhões davam às chantras um xis de gorja para ouvirem delas a história
de como se tinham metido no putedo. Agora andavam elas ao avio dessa
mercadoria. Preocupadas com as melancolias dos clientes» (p. 14).
Ousadia
minha será; estas linhas poderão, no entanto, prenunciar o que se encontrará ao
longo do livro:
‒
Em primeiro lugar, a crueza realista com que abertamente
se abordam as questões da sexualidade, desde as secretas manifestações do seu
despertar, ainda na meninice e na
adolescência (namoricos, apalpões, descobertas
físicas, clandestinas espreitadelas…) até à desbragada conversa de caserna, sem
tabus.
‒
Depois, o referido perfeito domínio da terminologia adequada a cada momento;
neste caso, a gíria do que se poderia designar de submundo – os garanhões, as chantras,
a gorja, o putedo…
‒
O sintomático aproveitamento do instante para lançar luz, discreta mas
certeira, sem alardes filosóficos, a
um generalizado estado de espírito: «as melancolias dos clientes»…
‒
Por fim, como mais adiante se verá, a ancestral reminiscência do vocabulário
algarvio, patente aqui no uso espontâneo de «avio».
Não
resisto, por isso, a não transcrever o início do primeiro capítulo da parte terceira,
intitulado «zona anterior/interior»:
«Recolho
as vitualhas da mesa da experiência. Restos que valem o esforço de uma oração final em seu louvor. Um remorso de ponta de navalha
em riste leva ao balanço dos horrores e dos cromos da era juvenil. Nesta hora frágil. Enquanto aguardo o
momento da grande explicação entre
os deuses e os demónios sobre o meu destino» (p. 155).
Quem
há que não reconheça aqui, no curto martelar dos períodos, a frase meditada, a
palavra prenhe de sentido, na mescla entre a imagem seleccionada e o apontar claro
de um sentimento expresso?
Ecoam-me
na primeira frase, sem querer ou não, os versos, salvo o erro, de Guerra
Junqueiro: «Pois quem come as vitualhas leve também as migalhas que sobram da
nossa mesa!».
Aqui,
a mesa é a experiência, um vocábulo que o Autor usa, nesse instante, quiçá pela
primeira vez, avesso, como se proclama, a elucubrações metafísicas. Mas de
experiência trata o livro. Da vida. Por isso a quer louvar. E vem-lhe à mente
um outro termo com o qual não está familiarizado, creio. Saiu-lhe. Oração. Pode ser prece, pode ser discurso. Ambiguidade
propositada. E a palavra ‘final’ deu
o mote. Tempo de balanço. Da era juvenil
ocorrem-lhe apenas (parece) os horrores e os cromos. Suspeitamos que ‘cromos’
terá duplo significado: o da gíria, o figurado, personagens estereotipadas,
estáticas, vazias; e o concreto, dos álbuns de colecções – jogadores de
futebol, raças humanas, artistas de cinema… “Horrores” é, por seu turno, palavra
forte, a denunciar o que foram, na verdade, os anos da guerra e as amarguras
por que então se passou.
Outra
palavra lhe surgiu, também ela incomum na sua prosa: remorso. Não terá, decerto, o sentido moral, de contrição por acções menos éticas praticadas; igualmente
não o vejo num lamento, porque, em circunstâncias idênticas, o mesmo todos nós
voltaríamos a fazer o que se fez, porque assim era preciso. Será, pois, um
aguilhão que dói, a tal «ponta de navalha em riste»…
Não
perpassam pelos escritos de Júlio Conrado sentimentos religiosos. Transposta,
porém, a fronteira dos oitenta, o de trinta e seis é capaz de sentir, agora, a
perspectiva de uma «hora frágil», enquanto aguarda «o momento da grande explicação entre os deuses e os demónios» sobre o seu
destino. Bem saboroso, o voluntário eufemismo; indisfarçada ironia, a embrulhar
sentimentos. Aliás, desse tom se reveste o que vem a seguir:
«Quero
ir decente desta para melhor, de espírito enxuto, alma polida, aspecto apresentável.
E com a crónica intacta, sem rasuras, do que fui enquanto por cá andei. Os
deuses incitam-me ao asseio, à elegância e à boa escrita, sempre é cerimónia
única na vida de uma pessoa, ir de camisa engomada e vestir o fato dos domingos é obrigatório para que nela, a cerimónia,
haja um mínimo de classe» (p. 156).
E
é nesse momento – dizem – que o regresso às origens se antoja inevitável
também:
«Havia na família gestos de a-ver-o-sol, o lastro da paisagem nevada das salinas, lembranças de caíques ao sul, de aragens de
ria, a par desse falar em canto que tombava, estrangeiro, onde a palavra tinha
diferente melodia. Módulos perfeitamente perfeitos, agarrados uns aos outros
por pátios, açoteias, labirintos de paredes caiadas, ladrilhagem moura,
cântaros a imitarem os trazidos pelo invasor berbere, selhas para todas as
lavagens, da roupa, do corpo, dos pratos e talheres, versos de Loulé e zangas
de Tavira casados na comunista Olhão» (p. 157).
Vêm,
portanto, ao de cima as «oralidades velhas que definhavam sem remédio na
caldeirada étnica da Vila das Quintas» (Carcavelos): o biqueirão alimado, a
sopa de abóbora, o xarém, a sobremesa de figos de pita, «estamos xarengados»,
«tem avondo», marafado, almariado… O falar algarvio no seu melhor!...
Romance
de escritor bem maduro, de saber acrisolado numa vida cheia, que As Pessoas de Minha Vida – queira-se ou
não – superiormente retrata.
Romance
a reler com a atenção que a primeira
leitura apenas suscitou e ora importa consolidar.
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, 14-01-2018: