domingo, 24 de novembro de 2024

Apanhar uma aberta!

             – Olha, apanhei uma aberta e escapei-me!
            Atentei no que acabara de dizer e pensei em dois aspectos do nosso quotidiano, para além da natural alegria de termos chuva num Algarve que dela tão precisado andava:
– Primeiro, no significado da palavra «olha», neste contexto, que não é propriamente o do verbo ‘olhar’, mas sim, neste caso, uma palavra-bordão, daquelas que usamos para iniciar uma conversa, sem terem um significado preciso, uma locução verbal, poderia chamar-se; noutras circunstâncias, porém, «olha» funciona como chamada de atenção: «Olha lá, não te molhes!».
– Depois, no significado da palavra «aberta», intervalo se imagina curto entre duas chuvadas; não se apanhou nada, concretamente, como quem apanha uma sova ou um graveto do chão, mas aproveitou-se.
Ambos os exemplos me levaram a duas outras reflexões: à necessidade de continuarmos a usar as nossas palavras lídimas, as que os nossos avós nos transmitiam e a ensiná-las às nossas crianças; e, por outro lado, a uma preocupação de irmos explicando essas palavras à comunidade estrangeira com que já diariamente convivemos.
Quantas das nossas crianças saberão hoje o que é uma morrinha, cacimbar, «agora, está sereno», chuva de molha-tolos? Se, nesse âmbito, quisermos ir mais longe, até poderemos falar do tempo de cacimbo em África; ou da «morriña» galega, aquela tristeza que, qual saudade, por nós perpassa quando sentimos a falta de alguém.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 336, 20-11-2024, p. 13.

O retiro

            Está a ouvir-se bastante esta palavra ‘retiro’.
            No tempo da minha formação, ‘retiro’ significava a semana em que um grupo de jovens, devidamente orientado, se retirava para um lugar isolado – amiúde, um convento ou mesmo uma ‘casa de retiros’ – para, em reflexão, pensar no seu modo de vida e na forma de o melhorar e mais confortavelmente corresponder ao que almejavam ser os objectivos das suas vidas.
            Ouvi-a, há dias, no programa do Herman: Cuca Roseta preparava-se para ir fazer um retiro na Índia. O Oriente, berço de religiões como o Budismo, o Bramanismo… parâmetros de vida em que se privilegia o autodomínio, o pensamento disciplinado a disciplinar os nossos gestos e emoções.
            O Prof. José Mattoso, após uma vida bem activa de historiador, antecedida, como foi, da reclusão monástica, retirou-se para uma aldeia perdida nos arredores de Mértola. Meu amigo e colega João Roque, aposentação chegada, regressou à terra natal, Calvos, bem no interior beirão, para viver o contacto diário com a Natureza e a agricultura – e desse gozo nos dá conta nas suas crónicas.

            Soube o imperador romano Augusto, no século I, rodear-se de poetas para lhe amenizarem as dores da governação. E lá esteve Ovídio, por exemplo, a cantar as delícias do campo, mezinha segura contra as irrequietas maleitas urbanas. No século IV, isso compreenderam melhor os cidadãos romanos e deram em refugiar-se nas suas casas de campo, as villae, bem adornadas de mosaicos com requintadas cenas da mitologia antiga para lhes dar recreação e redobrada atenção aos agrícolas lavores. Muito mais tarde, não foi ao seu retiro de Vila Viçosa que os conjurados de 1640 tiveram de ir buscar o Duque de Bragança, que aí procurava pôr em prática o que D. Francisco Rodrigues Lobo preconizara no seu livro A Corte na Aldeia, publicado em 1619?
E não estão agora de moda, nas televisões, os programas a mostrar famílias que decidiram aproveitar os campos de seus antepassados e aí cultivarem, aperfeiçoando procedimentos ancestrais, não apenas o que era habitual mas também produtos inovadores? E não se mostram imagens serenas desse novo viver, em que não falta uma carícia aos animais que, serenamente, ali com os humanos agora convivem? E há um lento passeio de burro ou a caminhada logo pela manhã ou quase ao sol-pôr a ganhar forças ou a sorver, a longos haustos, a pureza de um ar despoluído…

                                                    José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 871, 15-11-2024, p. 10.