José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 847, 01-07-2023, p. 10.
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 847, 01-07-2023, p. 10.
Parece-nos fácil de compreender o fascínio que terá sido para os indígenas verem os primeiros romanos, com os quais haviam entrado em contacto, mandarem gravar epitáfios em homenagem aos seus mortos ou altares com letras em honra dos seus deuses. E tê-los-ão querido imitar, inclusive latinizando – mais ou menos acertadamente – os antropónimos e os teónimos, ou seja, os nomes das pessoas e os das divindades. A sintaxe (ligação entre as palavras) e a morfologia (a mudança de terminação da palavra consoante a sua função na frase) terão sido, sem dúvida, bem difíceis de entender a princípio.
Como se conhecem mais testemunhos em que essa tentativa está bem patente, a comparação entre esses textos permitiu que ficássemos com uma ideia – ainda que aproximada – da mensagem que então nos quiseram transmitir, perpetuada numa gravação em pedra. Acresce que, na realidade, algumas das palavras aqui exaradas (oilam, por exemplo, ‘ovelha’) , nomeadamente as das divindades, já se haviam encontrado noutras epígrafes, pelo que a tarefa, embora não resolvida por completo, nos surgiu facilitada.
Pode, pois, afirmar-se, em síntese que o texto documenta o sacrifício de animais, designadamente de dez ovelhas, a divindades indígenas – Banda, Reva, Munis, Broeneia… – cujos nomes se fazem acompanhar de epítetos, um dos quais repetido com grafias diferentes (Haracui, Aharacui, Harase), passível de relacionar-se com o topónimo actual, Arronches, na medida em que às divindades se atribuíam, amiúde, características locais, como hoje acontece, nomeadamente com os nomes de Nossa Senhora.
Numa segunda parte, os três dedicantes, que poderão identificar-se como criadores de ovelhas, suplicam às divindades que lhes aceitem os sacrifícios.
Considera-se, por conseguinte, muito viável a hipótese de relacionar esta e as outras epígrafes em língua lusitana – de Lamas de Moledo e Cabeço das Fráguas – com as rotas da transumância logo nos primórdios da dominação romana. Em locais estratégicos para a pausa na caminhada, aproveitava-se o ensejo para, de novo e de modo bem concreto e duradoiro, gravar na pedra o memorial dos sacrifícios feitos para obter as graças divinas.
Inscrição de Cabeço das Fráguas, |
Penedo de Lamas de MoledO |
Por curiosidade, transcreve-se a primeira leitura que foi feita, para melhor se perceber do carácter ainda quase exotérico de que essa mensagem se revestia:
[- - - - - - - -] XX • OILAM • ERBAM
HARASE • OILA • X • BROENEIAE • H
OILA • X • REVE AHARACVI • T • AV [...]
IEATE • X • BANDI HARACVI AV [....]
5 MVNITIE CARIA CANTIBIDONE •
APINVS • VENDICVS • ERIACAINV[S]
OVOVIANI [?]
ICCINVI • PANDITI • ATTEDIA • M • TR
PVMPI • CANTI • AILATIO
A pedra – pela sua importância – foi cedida ao Museu Nacional de Arqueologia.
NOTA: A foto da inscrição de Cabeço das Fráguas é de Hugo Pires, segundo o Modelo Residual Morfológico que inventou.
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 25-06-2023: https://duaslinhas.pt/2023/06/um-letreiro-em-lingua-por-decifrar/
Engalanou-se o Salão Preto e Prata do Casino Estoril com os seus melhores pergaminhos de excelente palco para receber um espectáculo maior, como o é uma ópera de Verdi. Rigoletto ali se apresentou, com êxito, na noite do passado dia 9.
Da ópera faz parte a conhecida ária «La donna è mobile», que celebra a volubilidade sentimental da mulher:
«A mulher é volúvel. Como pluma ao vento, muda de palavra e de pensamento. Sempre um amável, gracioso rosto, em pranto ou em riso, é mentiroso. É sempre um infeliz quem a ela se entrega, quem lhe confia incautamente o coração! No entanto, nunca se sente, plenamente feliz quem naquele seio não saboreia amor!».
Fotografias gentilmente cedidas por Conceição Alves (Casino Estoril).
José d’Encarnação
Publicado
em Duas Linhas, 16.06.2023: https://duaslinhas.pt/2023/06/e-o-bobo-pagou-as-favas/