Estavam-me a saber mesmo bem estas primeiras
sardinhitas assadas do ano. Recomendáramos ao cozinheiro que lhes deixasse a
camisa a estalar, de modo a podermos tirá-la de uma só vez e a polpa ficava
assim bem apetitosa por baixo. Via-se que, desta feita, o senhor Alberto se esmerara
na escolha e aí as tínhamos ‘vivinhas da costa’, como outrora as varinas pregoavam.
Meu pai, que
fora arrieiro e, madrugada afora, ia do Barrocal, escarranchado no macho até à
praça de Olhão, conhecia bem quando a sardinha era fresca; garreava, por vezes,
com a Carolina ou a ‘menina’ Sara, se as guelras não estavam lá a preceito – e,
assim, comíamos sempre daquelas que untavam o pão.
Era sagrado e é
ainda hoje: a sardinha quere-se sobre boa fatia de pão, que no final bem gulosamente
apetece saborear. Uns goles de sangria, preparada a preceito pelo Zé Carlos,
uma salada mista com pimentinho assado a rigor, uns fios de bom azeite sobre as
batatas cozidas e, num dar graças a Deus, se estava a passar o repasto, sem até
me importar com as finas espinhas que protegiam as vísceras e que mui cuidadosamente
eu procurava retirar, até porque aquelas ovas ali escondidas me iam saber um regalo...
Houve,
porém, uma das espinhas que não quis passar despercebida: cravou-se, insolente,
na gengiva e lá a consegui, com todo o cuidado, retirar. Caiu-me no guardanapo
azul e eu fiquei a olhá-la, branquinha, branquinha, miniatural, teria um micrómetro?
À espessura de um milímetro não chegaria, decerto. E eu fiquei a olhá-la. Nunca
me apercebera da perfeição da sua linha. Nunca admirara a sua real beleza, porque
sempre a vira incómoda, chata, que nos estorva a comer…
E dei comigo a
pensar: quantas dezenas, se calhar centenas e milhares de espinhas haveria numa
sardinha. E todas assim perfeitinhas, no lugar certo, na função correcta. A
rede matara-lhe a função; ela, porém, ali postada, queda, na superfície azul,
branca, fiozinho quase imperceptível, foi para mim, nesse dia, uma lição. Antes
de os pratos chegarem, entre uma azeitona temperada e uma dentada no pão trigueiro,
dera para deitarmos contas à vida e falar dos doentes da família, das
aldrabices correntes, do muito que teimava em infernizar-nos o dia a dia… E a Maria,
de repente, já a refeição ia a mais de meio, viu-me assim pensativo: «Está tudo
bem?». Acordei: «Está, está. Foi uma espinha que caiu aqui no azul do guardanapo!».
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 847, 01-07-2023, p. 10.
Um texto que me despertou a vontade de comer sardinhas a sério, num restaurante que as mande vir da lota no dia, com o tamanho certo e...sem espinhas.
ResponderEliminarÉ uma herança de família: o peixe era sagrado a, pelo menos, uma refeição diária, mas as espinhas atrapalhavam muito...
Foi assim que as petingas fritas, com ou sem polme à volta, começaram a passar-lhes à frente para acompanhar arroz de tomate. As espinhas já não eram tão avantajadas e fritas nem se notavam.
Depois vieram os filetes, ou a paciência de tirarem as espinhas aos clientes (e até há filetes de sardinha).
Hoje, bem hoje saboreia-se comida sem o prazer de outros tempos. Mas o texto lembrou-me a vontade de um belo naco de pão com a sardinha a pingar...
E esse arrozinho de tomate bem apaladado, malandrinho até a petinga sabia melhor!...
EliminarQue bom ter conseguido fazer crescer água na boca!... bem haja!
Que texto delicioso 😘🙏 gratidão pela partilha. Beijinhos doces no coração
ResponderEliminarComi muita sardinha de superior qualidade, congelada logo depois de pescada e metida no avião da carreira para Lourenço Marques. Era assada em carvão de micaia, no mesmo dia da chegada, depois de salgada. DELICIA !
ResponderEliminarSe puserem em duvida o que acima afirmei espero que quem experimentou as comidas em LM, se concordou comigo, reforce o que afirmei...
ResponderEliminarVanda Fernandes
ResponderEliminar30 de junho de 2023 20:01
Escrever um texto sobre uma espinha... só mesmo o meu Amigo Zé, com a sua inspiração e criatividade, que lhe permite produzir um texto tão interessante, quanto improvável!
Ana Clare
1 de julho de 2023 10:48
A malandra da espinha fez vir ao de cima (como se diz aqui nos alentejos) a veia de escritor do meu sereníssimo compadre. Um pensamento escrito que não lembraria a mais ninguém. Adorei.