Primeiro,
saber que um actor vai vestir a pele de 35 personagens – trinta e cinco! – desperta
logo expectativa. 35? Como é possível? Depois, lê-se a história. E vem a
pergunta: como se passa para o palco toda essa trama, de uma actualidade flagrante,
para mais veiculada por tão sugestivo cartaz?
A história
Charlotte von
Mahlsdorf é o pseudónimo, feminino, de Lothar Berfelde, alemão nascido a 18 de Março
de 1928. Faleceu em 2002. Um travesti, portanto, que viveu, na República Democrática
da Alemanha, durante o nazismo e sob o regime comunista. Seu pai, nazi convicto,
quis fazer dele um combatente activo, incorporou-o na Juventude Hitleriana em 1942.
Mas Lothar assumia-se como… Charlotte! Acusaram-na, também por isso, como
delinquente; conseguiram o seu internamento psiquiátrico e chegou a ser condenada
a quatro anos de prisão.
O clima de
guerras por que foi passando permitiu-lhe adquirir e apossar-se, nas casas
bombardeadas, de obras de arte – relógios, espelhos, roupas, móveis, fonógrafos,
gramofones… – com as quais criou, na cidade de Berlim, em 1960, o Museu
Gründerzeit, que passou a ser lugar de encontros, nomeadamente da comunidade LGBT.
Teve o museu peripécias várias: usurpado pelo governo da RDA em 1974, devolvido
em 1976, assaltado em 1991 por neonazis… e Charlotte mudou-se para a Suécia. Parte
da coleção viria a ser adquirida pela cidade de Berlim e o museu foi reaberto em
1997.
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Um aspecto do Museu
Gründerzeit |
Sim, lê-se a
história. Emocionante, sem dúvida. Pejada quiçá de extravagâncias. Uma
Charlotte de personalidade riquíssima. E… como é que todo esse drama foi
passado a escrito pelo norte-americano Doug Wright, livro que obteve, em 2004, o
Prémio Pulitzer, um dos mais altos galardões da literatura universal. Doug Wright
teve oportunidade de falar amiúde com a protagonista da peça que estava a preparar
e, por conseguinte, não é de admirar que tudo nos seja agora apresentado na
primeira pessoa.
O palco
E vem a
pergunta: como se passa para o palco toda essa trama, de uma actualidade flagrante?
Não conheço o
original de Doug Wright. A peça foi estreada em 2003, pouco tempo depois de
Charlotte ter falecido. O que ora nos temos no Mirita Casimiro resulta da tradução
de Miguel Graça, da cenografia e figurinos de Fernando Alvarez e, sobretudo, da
sublime garra da encenação de Carlos Avilez.
Um só actor e
35 personagens? Sim. Marco d’Almeida. Sem dúvida, desde já, o papel da sua vida,
que desempenha com uma simplicidade inconcebível. Como é possível? Quase duas
horas a conversar com os espectadores, a desdobrar-se noutros, sem notas
dissonantes na voz, numa serenidade que só um grande actor pode assumir sem tergiversar!...
Ficamos rendidos!
É ele, Marco, de
vestido preto, cabeleira branca, colar de pérolas, numa fala sem enfeites,
plena de naturalidade. Nem nos damos conta, nem nos passa pela cabeça pensar se
é mulher com voz de homem… Nada! Ficamos presos, que a história é contada
assim, naturalmente.
Desta feita,
houve pano de cena, o que é raríssimo no TEC – e também o pano entrou na
encenação! E o actor aparece-nos como se jogasse às escondidas, afastando uma fímbria
do pano por correr. Aliás, pela fresta negligentemente deixada aberta a meio, o
espectador até se vai apercebendo, antes de o espectáculo começar, que há alguém
a passear-se por entre os móveis, junto dos relógios de pé, dos gramofones, como
que a acariciá-los, a limpar-lhes o pó, a retocar-lhes a posição. É Charlotte.
É Marco d’Almeida.
Um espectáculo
vive também do seu contexto, o cenário, dizemos nós. Nas peças do TEC amiúde é despojado
o cenário em que os personagens se movimentam. Para que seja a personagem a
mostrar-se. Aqui, porém, Charlotte mostra-se-nos na sua casa, em meio das suas
peças de arte, do seu museu. Os outros que ela evoca são ela própria. De resto,
o original chama-se «Eu sou a minha própria mulher», um título que até pode suscitar
algum desconforto em quem apressadamente o lê e, sobretudo, a quem não assistir
à interpretação de Marco d’Almeida.
Exacto:
dignidade! Essa, a palavra que nos surge, após os aplausos, após vermos as suas
lágrimas de emoção no final, ao presenciarmos o longo e sentido abraço de Carlos
Avilez. Um espectáculo que a ninguém deixa indiferente e que – se a temática que
envolve a ‘comunidade LGBT’ se apresenta duma actualidade premente – é susceptível
de apontar soluções: as da
dignidade!
Uma palavra
ainda para o que se poderia designar de interlúdio: a cena esfusiante de um cancã,
que poderá considerar-se como assumindo dois pretextos: o de desanuviar eventuais
tensões geradas nos espectadores – e que bem que desanuviam!... – e o de
permitir a participação de Carolina Faria, Filipe Feio, Hugo Narciso e Susana Luz.
Mais uma vez, o trabalho conjunto de uma grande equipa que bem sabe o que faz!
Outra palavra
para os pormenores: tudo ali (ouso afirmar) foi minuciosamente estudado. Não
apenas, como é normal, a movimentação do actor, a tonalidade assumida da voz, o
gesto contido, ora displicente, ora cheio de vigor, mas também o preciso (e
precioso!) manuseio dos objectos espalhados pela sala, uma sala em que, mesmo sem
o querermos, nós, os espectadores, acabamos por nos sentir e situar. O bilhetinho
escondido naquela secreta ranhura, o objecto que sai de inesperada gaveta…
Os textos de apoio
Finalmente,
leia-se a documentação proposta nas folhas do programa.
Carlos Avilez
incita os jovens a apreciarem o Teatro, a fazerem Teatro, que «está naturalmente
envolvido na reforma social e promove a união humana e um sentido de comunidade
entre todos os que nele participam […]. O Teatro é revolucionário, grita contra
a opressão e resiste sempre». Para Avilez, Marco d’Almeida, «o jovenzinho que apareceu
na escola com aqueles olhos brilhantes e uma noção do que queria, ou seja, do seu
amor pelo teatro», Marco d’Almeida é «um exemplo e um orgulho», «só um grande actor»
como ele «poderia representar» esta peça «sempre e ainda com os seus olhos
brilhantes».
Por seu turno,
João Vasco evoca o sólido percurso de Marco, que ganhou uma bolsa da Fundação
Gulbenkian para estudar em Londres e nos Estados Unidos, um «profissional rigorosíssimo,
com uma enorme cultura, emprega estudo profundo aos seus personagens». «Por
tudo isso», conclui, «admiro o seu enorme talento e sou fiel admirador do miúdo
de mochila às costas, naquele ano de 1993».
Do testemunho
de Marco d’Almeida, recorto os dois últimos parágrafos, que, como historiador, particularmente
me tocaram:
«No final da
peça, Doug Wright, o dramaturgo, pergunta-lhe se alguma vez ela deita fora peças
do seu museu por estarem velhas ou danificadas. Charlotte responde-lhe que não.
Devemos guardar tudo e mostrá-lo tal como é.
É importante mostrar
o que foi a nossa História, sob o perigo de a esquecer. Ou reescrevê-la».
A ler também a
entrevista que Justin Sanders fez a Doug Wright, em Março de 2021, para a
revista Creativefuture. Ilustrada com instantâneos de Charlotte, ocupa
as páginas 8 a 16 dos textos de apoio. Segue-se-lhe (pp. 16-29), sob o título «Retrato
de um enigma», em tradução de Miguel Graça, o relato do relacionamento de Doug
Wright com Charlotte, escrito em Outubro de 2003, recheado de informações acerca
dessa vida plena de peripécias.
Enfim, foi
tudo uma surpresa total! Pela personagem, pela peça, pela serena beleza que envolve
este acutilante grito de alerta! Também quem diz não gostar de teatro deve ir
ao Mirita Casimiro. Sairá de lá com um gosto bem diferente!
José
d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 17-02-2022: https://duaslinhas.pt/2022/02/e-foi-a-surpresa-total/