Dada a sua
relevância político-social, ao pacense Lúcio Márcio Píero deliberaram os
habitantes da cidade, no já longínquo século I da nossa era, erguer-lhe uma
estátua, que solenemente foi colocada no fórum. Lisonjeado com a honra, o
homenageado fez questão em lhes pagar a despesa!
Uma descoberta que fez
sensação!
José Umbelino
Palma, chefe da secretaria municipal e director do jornal O Bejense enviou,
em 1891, a José Leite de Vasconcelos a informação de que, entre «os bons
exemplares arqueológicos» identificados no decorrer das «escavações do Palácio
dos Infantes, em Beja», se encontrara uma inscrição romana, «ainda inédita», que,
à parte algumas falhas mínimas, «está tão perfeita, que parece feita agora».
Deu a leitura
do texto em latim, as dimensões – «altura, 0m,95; largura 0m,57;
espessura 0m,56» – e teceu breves comentários sobre o que faltava no
monumento e o que do letreiro se reconstituía bem.
São, de resto,
bem conhecidos «o grande esforço e dedicação de José Umbelino Palma», como se
lê na página do Museu Rainha D. Leonor, o qual «não só reuniu grande parte do
espólio do Museu como o organizou, divulgou e, ao mesmo tempo, incentivou e
sensibilizou inúmeros bejenses e pessoas da região a doarem peças importantes
para o museu, no sentido de enriquecerem as diversas colecções e contribuírem
para a salvaguarda do património cultural, artístico e arqueológico da região
que, na posse de particulares, corria o risco de desaparecer». A «verdadeira
alma» da instituição, inclusive por se ter servido para esse efeito do jornal que
dirigia.
No caso deste
achado não hesitou em enviar para Lisboa informação tão significativa, que, de
pronto, José Leite de Vasconcelos deu a conhecer na revista a cuja publicação então
pusera mãos: «O Arqueólogo Português nº 1, 1895, p. 110. Este investigador,
porém, ficou entusiasmado:
«Ultimamente
tem-se manifestado em Portugal um movimento de certa importância nas ciências arqueológicas.
De todas as províncias do país chegam a Lisboa notícias de descobrimentos novos».
E concluía no
seu comentário:
«Se este
movimento continuar com a mesma actividade, grande luz deve resultar para o conhecimento
da nossa história antiga».
Depois de
enaltecer o «lugar importante» que o Museu Municipal de Beja ocupava já «neste
renascimento científico», nomeadamente através do «incansável» Umbelino Palma, não
hesitou em afirmar que a inscrição publicada «é realmente muito valiosa».
«Muito valiosa» porquê?
Vejamos,
pois, o que, em Latim, nesse bloco foi gravado:
«Ao
pacense Lúcio Márcio Píero, augustal da colónia pacense e do município eborense
– os amigos, devido aos seus méritos, erigiram, por subscrição pública.
Lúcio
Márcio Píero, satisfeito com a honra, pagou a despesa».
Houve
um período, aí pelo século XVII, em que se discutiu entre os investigadores se
a colónia romana de Pax Iulia se teria localizado em Beja ou em Badajoz.
Ou melhor, uma leitura apressada do que escreveram os intervenientes nesse
debate é que levou a pensar-se que era esse, o da localização, o problema em
disputa. Não era, creio eu; o que Badajoz reivindicava para si era ter sido, no
tempo dos Romanos, a capital dum «conventus», a circunscrição político-administrativa
importante em que se dividiam as províncias; que na génese da cidade de Beja estava
Pax Iulia não se terá discutido. Contudo, no comentário a este monumento,
Leite de Vasconcelos volta ao assunto e reclama:
«Se
outros documentos não houvesse de que Pax Iulia estava situada no actual
local de Beja, e não no de Badajoz, esta inscrição, só por si, tirava a tal respeito
todas as dúvidas, pois prova isso de modo evidente» (ibidem, p. 112).
E
a prova residia em o homenageado aí ser identificado como pacense, palavra,
aliás, que aparece grafada em lugar de relevo, isolada, no monumento.
Três
aspectos merecem, desde logo, particular reflexão:
Prende-se
o primeiro com o facto de Píero ter sido nomeado augustal tanto na colónia
pacense como no município de Évora. Desconhecemos se o terá sido simultaneamente
(é provável que não) e se esse exercício duplo seria, então, frequente no caso
de cidades próximas. Em todo o caso, manifesta-se aqui uma relação estreita –
ainda que através de uma personalidade – entre os dois aglomerados urbanos.
Uma personalidade
que se moveria em meio de libertos (isto é, de antigos escravos), o estrato
populacional estreitamente ligado aos negócios, a que os seus senhores não
poderiam aceder. E podemos afirmá-lo por ser nesse meio que se recrutavam os membros
do colégio de seis membros (séxviros) encarregados de zelar pelo culto ao
imperador; e, por outro lado, porque, ao identificarem-no, omite-se a filiação
e o seu último nome – Píero – é de origem grega, um nome de bem elucidativo teor
cultural, quer porque a mitologia grega atribui a Píero a paternidade de nove
filhas, para as contrapor às nove musas, quer porque foi esse o nome dado a um monte
da Tessália, na Grécia antiga, dedicado às Musas.
O significado político-social
No
exercício das suas funções sacerdotais, Píero foi elo de ligação entre os
interesses da população de «Pax Iulia» e o poder central, por na cidade ser
responsável pela manutenção do culto (leia-se, «obediência») ao imperador romano.
Todos
estamos bem conscientes do significado duma homenagem, quando é prestada a uma
individualidade que detém poder económico e político. Sob o manto diáfano da Amizade
se esconde, amiúde, o clientelismo. Ainda hoje, quando falamos dos «Amigos»
disto ou daquilo, privamos com um conceito de Amizade que não vem, necessariamente,
do… coração!
Ora veja-se: os
«amigos» de Píero promoveram uma colecta para arcar com as despesas de lhe erguerem
uma estátua. Ele soube disso, é claro. Aliás, se fôssemos mal-intencionados,
até nos perguntaríamos se não foi mesmo ele que, sub-repticiamente, sugeriu quanto
isso a todos acabaria de ser de muito interesse… (Recordo aquele amigo meu que,
um dia, me escreveu para eu sugerir ao Presidente da República que lhe desse
uma comenda…).
Píero, então, não
esteve com mais medidas: quer tivesse sido combinado, ou não, o certo é que foi
ele quem pagou as despesas. E seguramente, no dia solene do descerramento da
estátua, generosamente recompensou os «amigos» com o dinheiro que haviam entregado.
Atitude assaz inteligente: benemérito, teve uma estátua; duplamente benemérito porque…
a pagou!
José
d’Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2088, 29-04-2022, p. 13.