sexta-feira, 29 de abril de 2022

Homenagem, em Pax Iulia, a um sacerdote romano

        Dada a sua relevância político-social, ao pacense Lúcio Márcio Píero deliberaram os habitantes da cidade, no já longínquo século I da nossa era, erguer-lhe uma estátua, que solenemente foi colocada no fórum. Lisonjeado com a honra, o homenageado fez questão em lhes pagar a despesa!

Uma descoberta que fez sensação!

José Umbelino Palma, chefe da secretaria municipal e director do jornal O Bejense enviou, em 1891, a José Leite de Vasconcelos a informação de que, entre «os bons exemplares arqueológicos» identificados no decorrer das «escavações do Palácio dos Infantes, em Beja», se encontrara uma inscrição romana, «ainda inédita», que, à parte algumas falhas mínimas, «está tão perfeita, que parece feita agora».
Deu a leitura do texto em latim, as dimensões – «altura, 0m,95; largura 0m,57; espessura 0m,56» – e teceu breves comentários sobre o que faltava no monumento e o que do letreiro se reconstituía bem.
São, de resto, bem conhecidos «o grande esforço e dedicação de José Umbelino Palma», como se lê na página do Museu Rainha D. Leonor, o qual «não só reuniu grande parte do espólio do Museu como o organizou, divulgou e, ao mesmo tempo, incentivou e sensibilizou inúmeros bejenses e pessoas da região a doarem peças importantes para o museu, no sentido de enriquecerem as diversas colecções e contribuírem para a salvaguarda do património cultural, artístico e arqueológico da região que, na posse de particulares, corria o risco de desaparecer». A «verdadeira alma» da instituição, inclusive por se ter servido para esse efeito do jornal que dirigia.
No caso deste achado não hesitou em enviar para Lisboa informação tão significativa, que, de pronto, José Leite de Vasconcelos deu a conhecer na revista a cuja publicação então pusera mãos: «O Arqueólogo Português nº 1, 1895, p. 110. Este investigador, porém, ficou entusiasmado:
«Ultimamente tem-se manifestado em Portugal um movimento de certa importância nas ciências arqueológicas. De todas as províncias do país chegam a Lisboa notícias de descobrimentos novos».
E concluía no seu comentário:
«Se este movimento continuar com a mesma actividade, grande luz deve resultar para o conhecimento da nossa história antiga».
Depois de enaltecer o «lugar importante» que o Museu Municipal de Beja ocupava já «neste renascimento científico», nomeadamente através do «incansável» Umbelino Palma, não hesitou em afirmar que a inscrição publicada «é realmente muito valiosa».

«Muito valiosa» porquê?

            Vejamos, pois, o que, em Latim, nesse bloco foi gravado:

            «Ao pacense Lúcio Márcio Píero, augustal da colónia pacense e do município eborense – os amigos, devido aos seus méritos, erigiram, por subscrição pública.
            Lúcio Márcio Píero, satisfeito com a honra, pagou a despesa».
            Houve um período, aí pelo século XVII, em que se discutiu entre os investigadores se a colónia romana de Pax Iulia se teria localizado em Beja ou em Badajoz. Ou melhor, uma leitura apressada do que escreveram os intervenientes nesse debate é que levou a pensar-se que era esse, o da localização, o problema em disputa. Não era, creio eu; o que Badajoz reivindicava para si era ter sido, no tempo dos Romanos, a capital dum «conventus», a circunscrição político-administrativa importante em que se dividiam as províncias; que na génese da cidade de Beja estava Pax Iulia não se terá discutido. Contudo, no comentário a este monumento, Leite de Vasconcelos volta ao assunto e reclama:
            «Se outros documentos não houvesse de que Pax Iulia estava situada no actual local de Beja, e não no de Badajoz, esta inscrição, só por si, tirava a tal respeito todas as dúvidas, pois prova isso de modo evidente» (ibidem, p. 112).
            E a prova residia em o homenageado aí ser identificado como pacense, palavra, aliás, que aparece grafada em lugar de relevo, isolada, no monumento.
            Três aspectos merecem, desde logo, particular reflexão:
            Prende-se o primeiro com o facto de Píero ter sido nomeado augustal tanto na colónia pacense como no município de Évora. Desconhecemos se o terá sido simultaneamente (é provável que não) e se esse exercício duplo seria, então, frequente no caso de cidades próximas. Em todo o caso, manifesta-se aqui uma relação estreita – ainda que através de uma personalidade – entre os dois aglomerados urbanos.
Uma personalidade que se moveria em meio de libertos (isto é, de antigos escravos), o estrato populacional estreitamente ligado aos negócios, a que os seus senhores não poderiam aceder. E podemos afirmá-lo por ser nesse meio que se recrutavam os membros do colégio de seis membros (séxviros) encarregados de zelar pelo culto ao imperador; e, por outro lado, porque, ao identificarem-no, omite-se a filiação e o seu último nome – Píero – é de origem grega, um nome de bem elucidativo teor cultural, quer porque a mitologia grega atribui a Píero a paternidade de nove filhas, para as contrapor às nove musas, quer porque foi esse o nome dado a um monte da Tessália, na Grécia antiga, dedicado às Musas.

O significado político-social

            No exercício das suas funções sacerdotais, Píero foi elo de ligação entre os interesses da população de «Pax Iulia» e o poder central, por na cidade ser responsável pela manutenção do culto (leia-se, «obediência») ao imperador romano.
            Todos estamos bem conscientes do significado duma homenagem, quando é prestada a uma individualidade que detém poder económico e político. Sob o manto diáfano da Amizade se esconde, amiúde, o clientelismo. Ainda hoje, quando falamos dos «Amigos» disto ou daquilo, privamos com um conceito de Amizade que não vem, necessariamente, do… coração!
Ora veja-se: os «amigos» de Píero promoveram uma colecta para arcar com as despesas de lhe erguerem uma estátua. Ele soube disso, é claro. Aliás, se fôssemos mal-intencionados, até nos perguntaríamos se não foi mesmo ele que, sub-repticiamente, sugeriu quanto isso a todos acabaria de ser de muito interesse… (Recordo aquele amigo meu que, um dia, me escreveu para eu sugerir ao Presidente da República que lhe desse uma comenda…).
Píero, então, não esteve com mais medidas: quer tivesse sido combinado, ou não, o certo é que foi ele quem pagou as despesas. E seguramente, no dia solene do descerramento da estátua, generosamente recompensou os «amigos» com o dinheiro que haviam entregado. Atitude assaz inteligente: benemérito, teve uma estátua; duplamente benemérito porque… a pagou!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2088, 29-04-2022, p. 13.

 

«Alfobres de Rios», um livro de Ana T. Freitas

Por mais que se escreva e comente, sempre algo haverá por dizer e sublinhar.
 
 
            Ana Maria Teixeira Freitas – Ana T. Freitas, de seu nome literário – nasceu em 1956 no Pinhão, ali mas margens do Douro, aquela que tem azulejos lindos na estação ferroviária. Licenciou-se em Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa e andou por mui variadas partes, a colher sabedoria e ciência, que, como docente, difundiu pelos seus alunos.
            Um dia, adregou enveredar pelas lides poéticas, se é que por essas veredas nunca deixou de caminhar. Mentora foi – e é, agora na esperança de melhores dias – da iniciativa «Um Poema na Vila», pela qual soube guindar Coruche a lugar cimeiro na defesa da expressão poética nacional.
            Por mais que se escreva e comente, sempre algo haverá por dizer e sublinhar – repito. Porque ando há muito para dizer quanto me agradou o livro Alfobres de Rios (Modocromia Edições, Lda., Lisboa, Maio de 2020). E hesito, porque, de cada vez que abro esta recolha de poemas que Ana T. Freitas foi semeando em sessões várias ao longo dos últimos tempos (presença assídua nas «Noites com Poemas» organizadas em Cascais por Jorge Castro), eu encontro novidades susceptíveis de comentário, reflexão, encómio.
            É o poeta um comentador: vive, pensa, observa, relaciona ideias. E escreve. As palavras surgem-lhe desalinhadas, por vezes há espaços em branco, pontuação nenhuma, uma página com cinco linhas minúsculas, outras com uma catrefada delas… Vá lá a gente entender! Mas, vendo melhor, entende-se: é que precisamos de parar neste caminho da vida, em que – para o Poeta – a escrita está presente.
           Gosto do título: alfobre, «canteiro entre dois regos por onde passa a água». Reminiscência de cantares árabes. Manancial que fertiliza, como a poesia nos fertiliza a vida. E o poeta a contar-nos o inusitado pormenor não despiciendo. Tocou-me, há anos, um poema de José Gomes Ferreira, tocado (ele!) pela borboleta que vira caída no passeio: «Borboleta verde, aqui não há flores!». Assim, Ana T. Freitas. A obrigar-nos a um outro olhar.
            Na epígrafe, escreveu: «rios que derramam / alguns chegam à foz / muitos ficam em nós». No último poema, do talhão V em que dividiu o seu jardim, conta que nos seus alfobres semeou «rios regados de ternura, adubados de horizontes, alagados, robustos». E sobre eles quer construir «pontes que derrubam muros do futuro». Desculpa-me, Ana, se não copiei bem e pus as frases seguidinhas. Sei que não deveria, perdoa-me. Contudo, dir-te-ei que, se agarrei no princípio e no fim do teu livro, foi porque todo o recheio é bom de mais e não tenho palavras para o pintar. Escreveste em Novembro de 2015 o teu desejo para todos os meses do ano: Sol, Esperança, Flor… Achavas que, assim, «A Vida acordaria dos destroços da guerra; das casas saudosas, vazias de homens; dos lares inquietos pelos filhos que partiram; das casas angustiadas, sedentas de trabalho, dos lares tristes à míngua de pão». E assim – auguraste – «um sorriso rasgado sairia bem do fundo do nosso coração e um Natal de mão em mão».
           Sabes porque me calou fundo este bom augúrio; sabes, porque sentimos na carne a tua descrição, hoje muito mais vívida do que nesse (longínquo?) Novembro de 2015.
            Tenho à cabeceira «Alfobres de Rios». Agradeço-te. Vou relê-lo a espaços. Abrindo-o ora aqui, ora noutra página. Na certeza de que muito tenho de aprender!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 27-04-2022: https://duaslinhas.pt/2022/04/alfobres-de-rios-um-livro-de-ana-t-freitas/

 

 

 

Daniela Anghel, uma… Artista!

            Está patente na galeria do Casino Estoril, desde sábado, dia 23, e até 23 de Maio, a exposição da artista romena e portuguesa Daniela Anghel. Retratando nas suas telas a realidade que está para além do real, a jovem Daniela Anghel não deixa de nos surpreender.
 

Um currículo de excelência
        Ao lermos o currículo da artista, uma nota sobressai de imediato: a enorme capacidade de trabalho e o entusiasmo fora de série de que ele dá provas sobejas.
        Daniela Anghel nasceu em 1979, na cidade romena de Alexandria. Com seu pai, diplomata de carreira, acabou por estar em várias partes do mundo, mas foi Portugal que mais a seduziu, tendo-se licenciado em Artes Plásticas – Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Obteve a nacionalidade portuguesa.
        Expôs pela primeira vez, individualmente, no Casino Estoril em 2004 («A Tentação da Imagem»), mas terá sido, a meu ver, a exposição do ano seguinte, «Mulheres de Portugal», que a tornou mais conhecida, pelo universo de sensações que de cada um desses retratos em grande formato se desprendia.
        É que, de facto, se, a uma primeira vista, se proclama, ainda que com admiração, «Que desenho bem conseguido, perfeito!», o certo é que, observando melhor, se torna necessário atentar nos pormenores – e muitos são! – para se descortinar quanto de íntimo e importante a Artista quis transmitir.
        Não causará, pois, estranheza que, por exemplo, em colaboração com a União das Misericórdias Portuguesas, haja sido contratada para fazer, de 2008 a 2011, a decoração da Capela Padre Vítor Melícias, na Sede da União, aí mostrando as 14 Obras de Misericórdia: as 7 corporais e as 7 espirituais.
 
Três quadros
         Veja-se com atenção o quadro «Sede». Crianças negras aguardam que alguém lhes venha encher de água os jerricãs postados na sua frente. Aguardam. O céu, por trás, é dum azul doloroso. A emoldurar esse motivo, qual grinalda, há flores, sim, mas quantas outras imagens mais! Todo o mundo, afinal, para ali foi convocado! Todos precisam de olhar para aqueles rostos, para aquela cena, para aquela… sede!

                         

         E que dizer do quadro «Devir de S. João Baptista», um dos quadros da sua série africana? Acrílico e óleo sobre tela de 2,215 x 3,12 metros! A multidão de negros frente à fortaleza apalaçada; à direita, frágeis embarcações em mar revolto; por entre a turba, uma figura de santa, um prato de ostras pronto a saborear, uma bandeira, uma onça olha ameaçadora para quem, perto dela, se cobre com a pele de eventual parente seu…

        E mesmo da tela «As Três Graças», acrílico e óleo sobre tela, de 247 x 205cm, transparece, sorrateira, uma crítica velada, ao personificar nessas três figuras mitológicas uma dama da corte, uma senhora aparentemente normal e, a meio, em destaque, uma negra, envergando os trajes tradicionais…

        Daniela Anghel chamou à sua exposição «Desfiguração da utopia» e quis ser ela própria a redigir a abertura do catálogo, onde, a dado passo, escreve:
        «As pinturas contemplam o desequilíbrio do próprio sistema social, o crescimento incerto das limitações e das exclusões sociais; como também as ilusões perdidas de todos nós, numa determinada altura perante a realidade. As quimeras espalhadas não são representadas em pintura como retrato das cicatrizes das lutas perdidas, mas, sim, como metamorfoses capazes de instaurar uma nova ordem».

        E por essa mensagem nos ficamos.

                                        José d'Encarnação

    Publicado em Duas Linhas, 20 de Abril de 2022: https://duaslinhas.pt/2022/04/daniela-anghel-uma-artista/