Quando lhe
pediram uma auto-biografia, respondeu ser essa uma tarefa difícil: «Tenho passado a vida a dar voz, em mil
histórias, a gentes e coisas tão autênticas e fantasiosas como eu sou e serei.
Os meus livros que falem por mim».
Enorme
curiosidade, pois, a minha, na estreia, a 20 de Dezembro, no Mirita Casimiro, da
peça Atirem-se ao Ar (escrita em 2003 e publicada em 2012 pelo Caminho), que Pedro Caeiro encenou, com versão cénica de Miguel
Graça, cenografia de Fernando Alvarez, música e som de Gonçalo Alegria (que
também está em cena como locutor de rádio) e direcção
de montagem de Manuel Amorim. No elenco, jovens ligados ao Teatro Experimental
de Cascais.
Diga-se
desde já que – como é habitual – houve adaptações ‘locais’ do texto e – ao que
me consta – cenas da Escola Profissional de Teatro de Cascais, onde Miguel
Graça também é docente, acabaram por ser transpostas para o palco. Não! Nada de
conclusões precipitadas! Aquela algazarra de endiabrados alunos, aquela
aparente bandalheira – ainda o público se está a sentar e já tudo parece andar
numa fona!… - nada têm a ver com a seriedade suma das aulas reais! Quiçá alguns
tiques professorais, aquele veemente «calou!» (do professor, tão ironicamente incarnado
por David Esteves!) e a rígida disciplina que de imediato provoca… Tudo é, porém,
altamente sadio e a brincadeira que se instala, estudantes de teatro a fazerem
de conta que representam, com uma deliciosamente azougada Beatriz Costa (bem interpretada
por Raquel Oliveira), é mero pretexto para dar corpo a uma contestação : a dos senhores dos dirigíveis contra a (para
eles) impossível viagem aérea de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral de Lisboa
ao Rio de Janeiro, em 1922. E há, naturalmente, saborosas picadelas pelo meio:
quando, na conferência de imprensa (tinha de haver uma conferência de imprensa,
pois então, para tão grande feito!...), alguém os acusa de estarem a desbaratar
dinheiros públicos, logo alguém segreda: «É jornalista, dá-lhe um desconto!»;
ou a observação em rima: «Se tivéssemos dinheiro como tínhamos dantes, o palco
estava a abarrotar de figurantes!»…
«Uma brincadeira
de crianças efectuada por adultos, talvez seja isso o teatro» – escreve Miguel
Graça. Na verdade, a intenção
didáctica de contar como foi essa extraordinária aventura de dois portugueses
(«É difícil para nós, hoje, tão habituados ao progresso científico, capazes de ter
a informação do mundo na palma da
mão - e com GPS, para não nos perdermos – imaginarmos o que seria atravessar o Atlântico
Sul num pequeno hidroavião […] sem ver terra nem a luz do dia quando caía a
noite», é ainda Miguel Graça), essa intenção
didáctica parece revestir-se aqui de uma brincadeira de crianças, que só o
génio de dois pedagogos, o de António Torrado e o de Miguel Graça, poderia arquitectar.
Gostámos. Deliciámo-nos.
Rimos. Por exemplo, quando todos param e olham para uma porta imaginária, donde
poderá vir o professor para os pôr na ordem («Não é ninguém! A porta está
fechada!». O professor só aparecerá mesmo no fim, é Miguel Graça e os
espectadores não resistem a uma boa gargalhada também! Bruno Ambrósio, José
Condessa, Marta Correia são alunos; mas, dentre eles, há quem se metamorfoseie
em Patacho (Bruno Bernardo), companheiro do Dr. Hélio (João Cachola, ex-major,
doutor engenheiro…!). Sérgio Silva é Gago Coutinho; Filipe Abreu, Sacadura
Cabral.
Parece fácil quando se vê; tudo,
no entanto, é estudado ao pormenor, o gesto, os figurinos, o som…
E aquilo dá mesmo a ideia de ser tudo uma geringonça
danada. A questão é: «Como
é que o avião, tão mais pesado do que o ar, pode vencer o balão, tão menos
pesado que o ar, e conquistar o espaço aéreo, dantes apenas frequentado pelos
passarinhos?».
Pois é. O certo é que eles
conseguiram. Eles, os dois cientistas, convencer-nos; eles, os actores,
divertir-nos.
E ficam as lições. A do hidroavião
e uma outra, que Miguel Graça não hesita em sublinhar na folha que nos é distribuída:
«As personagens deste Atirem-se ao Ar
não têm para onde ir e, por isso, inventam uma nova realidade». Para concluir:
«Quando a crise financeira e económica
e os conflitos religiosos e políticos preenchem o nosso quotidiano, é bom recordarmos
que existiram homens destes, não só exemplos de coragem, mas sobretudo um
paradigma daquilo que o Homem, quando foi Homem, sempre quis ser, alguém capaz
de controlar o próprio destino, inimigo do desconhecido, capaz de ir sempre
mais longe».
A peça continuará em cena de 3 a 18 de Janeiro, aos fins-de-semana,
com sessões especiais para escolas.
Publicado
em Cyberjornal, edição de 30-12-2014: