terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Saímos de alma lavada!

            Foi essa, a de sair de alma lavada, a sensação que tive, quando terminou o concerto que, na tarde de domingo, 30, se realizou no auditório do Centro Cultural de Cascais, em homenagem ao maestro Fernando Lopes-Graça, evocando os 20 anos passados sobre o seu falecimento. Não apenas por termos revivido a emoção de o cante alentejano ser, agora, património cultural imaterial da Humanidade e ali termos ouvido cantares do Alentejo, mas porque as canções de Lopes-Graça nos incitam a acreditar num amanhã mais promissor, em que a serenidade do povo que trabalha deverá ser a dominante!
            Maria Celestina Leão Gomes, da Associação Lopes-Graça, abriu a sessão, começando desde logo por salientar que passaram 20 anos da morte do Maestro exactamente no dia em que o cante alentejano foi galardoado. Subscreveu o «carácter nacional» das suas canções, que Mário Vieira de Carvalho lhe atribuíra; citou José Gomes Ferreira: «Lopes-Graça continuará vivo. A morte é para os mortos!».
            Referiu-se à pianista Madalena Sá Pessoa, que acompanhou ao piano a «voz etnográfica» (expressão de Mário Vieira de Carvalho) de Celeste Amorim, no CD/Livro Canções do 25 de Abril e 13 Canções Heróicas, que iria ser apresentado. Madalena Sá Pessoa, de 94 anos, fez questão em estar presente na cerimónia – e foi aplaudida.
            O Presidente da Câmara, Dr. Carlos Carreiras, disse do privilégio que era para Cascais ter Lopes-Graça há 50 anos (30 em vida e agora 20 anos depois) e ser o Município fiel depositário do seu espólio no Museu da M´suica Tradicional Portuguesa. Saudou o Dr. Arquimedes da Silva Santos, ali presente. (Arquimedes da Silva Santos, recorde-se, natural de Póvoa de Santa Iria (1921) acompanhou Fernando Lopes-Graça e foi o fundador da Escola Superior de Educação pela Arte). Aludiu à notável recolha de cantares do povo que Lopes-Graça e Michel Giacometti, que foi também este munícipe de Cascais (que igualmente preserva o seu espólio musical), fez por todo o País, «num tempo em que o tempo ainda passava devagar».
            A I parte da sessão seria completada com a intervenção do arquitecto Filipe Diniz. Lopes-Graça, disse, escreveu as canções expressamente para a voz «irrepetível» de Celeste Amorim e soube adaptar os textos às mãos da pianista. «Canções da resistência e da revolução», «politicamente empenhadas», profundamente imbuídas da «realidade comum alicerçada na raiz popular». Contrapôs essa atitude à dos tempos que ora se vivem, de rasura e asfixia cultural, da promoção de «uma cultura de massas desprovida de autenticidade». E exemplificou com o facto de as televisões, a propósito do cante alentejano, terem passado a Canção do Mineiro, sem se aperceberem de que esta canção é tanto dos mineiros de Aljustrel como dos mineiros das Astúrias ou do Chile!... A designação de «heróicas», acrescentou, não poderia ser mais ajustada, porque elas têm subjacente o sentimento de luta por um mundo melhor através da cultura. Aliás, Filipe Diniz começara por evocar a figura de José Casanova, afirmando que, em vez dele, quem deveria estar ali a apresentar o CD era precisamente José Casanova (membro do Comité Central do PCP que faleceu no passado dia 15).

Uma viagem pelo país
            Iniciou-se de seguida a prometida viagem «com a canção regional portuguesa de Norte a Sul», através da música de Lopes-Graça.
            Primeiro, o Coro de Câmara de Cascais, sob a direcção de Maria Repas Gonçalves. Um naipe de vozes de todas as idades, senhores e senhoras, de traje preto e longo cachecol vermelho.
            Depois, o Coro Lopes-Graça, da Academia de Amadores de Música de Lisboa, dirigido por José Robert. Também senhores a senhoras: elas de blusa branca a cair sobre saia preta, ostentando colares e gargantilhas; eles, de casaco escuro, calças cinzentas e laço grená.
            Ambos a interpretarem pequenos e mui melodiosos trechos, de sabor genuinamente popular. Recordo, a título de exemplo, «O ladrão do negro melro», qual hino à serenidade que se almeja!
            Na III parte ouviram-se quatro canções heróicas, acompanhadas ao piano por António Neves da Silva. Primeiro, a bem conhecida «Jornada», com letra de José Gomes Ferreira, pelo Coro Lopes-Graça; depois, «Rústica», também de J. G. Ferreira, pelo Coro de Câmara de Cascais. «Ronda» (de João José Cochofel), «Canto de Paz» (de Carlos de Oliveira) e «Acordai» (de J. G. Ferreira) foram interpretadas pelos dois coros em conjunto, sob direcção de José Robert. Em brinde extra à assistência, que encheu por completo o auditório, Maria Repas Gonçalves dirigiu os dois coros na versão do seu Coro para o «Canto da Paz».
            Foram, de facto, noventa minutos que nos reconfortaram o coração e nos lavaram a alma. E Cascais bem pode orgulhar-se do legado que teve e assim mostra que dele é merecedor!
                                                  
Publicado em Cyberjornal, edição de 1-12-2014:

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