segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Participar

            Curioso ter este termo duas concepções distintas: dar parte e fazer parte.
            De «dar parte», por seu turno, outras duas há também: a que se encontra na expressão ‘dar parte de fraco’ e estoutra bem patente em «eu vou dar parte à Guarda». No fundo, porém, ambas se resumem em ‘comunicar’, ‘dizer’.
            Fazer parte, por seu turno, já não é uma atitude isolada, implica ligação: faz-se parte duma decisão, faz-se parte duma colectividade, duma família. Uma ideia que existe também no verbo ‘participar’, quando se fala em «participar numa festa», «participar num concurso».
            Habitualmente, os autarcas – qualquer que seja o seu quadrante político, cronológico ou local – incitam o Povo a participar. Ou melhor, até proclamam ‘eu gostava muito que o Povo participasse mais’; no fundo, todavia, é raro depois agilizarem essa participação, por exemplo, mediante intervenções na assembleia municipal ou mesmo na própria sessão camarária, mediante a adopção de algumas naturalmente necessárias formalidades.
            Grande inovação foi o recurso ao Orçamento Participativo, a  tentativa de incluir no orçamento algo em que a população tivesse particular empenho. Começou uma Câmara, já é capaz de não se saber qual, e o costume alastrou. A participação é pelo telefone, geralmente, nem sempre grátis. Nos concursos da televisão, a gente já sabe como é, até nem o IVA tiram, os gulosos! Aquilo deve ser uma máquina de fazer dinheiro. Será que alguma vez se saberá pera onde é que esse dinheiro vai?
Pois no Orçamento Participativo, tal como nos concursos televisivos, o poder económico dos eventuais participantes é que conta. Tens muito dinheiro disponível e queres que fulano ou que determinado assunto vá prá frente? Paga!
Lembram-se (foi voz corrente na altura) que determinado autarca, para que a festa tradicional da sua terra ganhasse um prémio de entre as mais célebres, não hesitou em lançar mão do erário público, sob pretexto de que se tratava de investimento. Mesmo assim não ganhou.
Precisávamos nós de um mecenas de mãos rotas para que, em ocasião de concursos, a Festa das Tochas Floridas ganhasse maior repercussão. Entretanto, sempre que pudermos, não hesitemos em participar, estar presentes! Quem não aparece esquece, já se sabe.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 334, 20-09-2024, p. 13.

 


A tertúlia dos anciãos


    
        Pelos vistos, há, em todas as terras, onde ainda nos é dado conviver, um lugar onde, a partir do meio da tarde, os anciãos se reúnem após a sesta. Todas as conversas se admitem.
            No lugar da Abóboda, sito no interior do concelho de Cascais, há – ou houve – o BPM, designação brejeira para caracterizar os seus frequentadores habituais: o Banco dos P. Murchas. Em Palmela, em vez de um, se bem compreendi, há dois: um é o da vara cível, outro da criminal, em jeito de Tribunal da Má Língua.
            Por essas tagarelices ao entardecer transcorrem saudades, vituperam-se ou louvam-se governantes, comenta-se a zaragata ou a festa, é-se capaz de um amável piropo («devia ser proibido ter uns olhos tam bonitos, menina!»), decretam-se novos regulamentos e atira-se amiúde o Governo pràs urtigas, por não saber ouvir a voz do Povo e lá dizia a Madalena no “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett, «Voz do Povo voz de Deus, minha senhora mãe!».
            Acho que os autarcas deviam ir, de vez em quando, até esses bancos, desde que não lhes adregasse ou tivessem outra pachorra e convidarem esses anciãos a irem tomar um copo lá nos Paços do Concelho para uma tertúlia – o que até nem seria má ideia, não!
            Consciencializei, há uns tempos, que a palavra «tertúlia» terá derivado das conversas que o filósofo cartaginês Tertuliano (que viveu entre os finais do séc. II da nossa era e os primórdios do III) organizava com a sua gente. Sabe-se que o costume se revitalizou com os cafés em França, nos prenúncios da Revolução no século XVIII e que, em Portugal, pelo Chiado, dada a abundância de cafés, pululavam as tertúlias em que se envolveram os nomes conhecidos da Cultura lisboeta do século XX.
            Além desses bancos ao ar livre, de má-língua, cada terra tem – e não pode perder! – a tradição do encontro num dos estabelecimentos locais: o Majestic no Porto, o Santa Cruz em Coimbra, o Aliança em Faro, o Ervilha em S. Brás de Alportel, o Café Calcinha em Loulé, o Armazém do Caffè em Viseu, o Café Melro em Mangualde… Houve em Cascais, pelos anos 60 e 70, o Brisa, o Boca do Inferno, também a esplanada do Baía… Outros se precisam de criar. Lugares emblemáticos, que jamais se deviam perder, porque aí se fomenta comunidade, nascem ideias e todos nos sentimos mais solidários!                                
 
                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 869, 15 de Setembro de 2024, p. 10.