sábado, 23 de fevereiro de 2019

O património do falar

            Quando a União Soviética ocupou a Moldávia, uma das primeiras preocupações foi determinar que se adoptasse o alfabeto cirílico e não o latino, porque, como se sabe, o Romeno é uma língua românica. E chegaram ao ponto de ordenar a destruição das placas funerárias nos cemitérios – para que a memória se apagasse.
            Uma das drásticas medidas impostas pelos Indonésios aquando da ocupação de Timor foi a total abolição da Língua Portuguesa, com as consequências que, ainda hoje, estamos a sentir, embora Xanana Gusmão e seus partidários, educados como haviam sido nas escolas portuguesas, tenham determinado, sem hesitação, que seria o Português a língua oficial de Timor Leste.
            Já não nos causa impressão ver, em Bruxelas, tudo escrito em francês e em flamengo, ainda que seja quase ridículo que, na zona flamenga, alguém nos responda «não compreendo» só porque estamos a falar-lhe em francês…
            Conhecida a longa tradição de luta pela autonomia, também não nos admira que, no aeroporto de Barcelona, se leia uma placa trilingue: em catalão, em inglês e só em terceiro lugar venha o castelhano.
            E encontramos placas toponímicas bilingues nas várias províncias espanholas, na Irlanda, no País de Gales, inclusive em Miranda do Douro!… E aqui (Fig. 1) com o pormenor de, mui significativamente, ser o mirandês que vem em primeiro lugar!
            Já nos poderá causar mais estranheza ao saber que, em Toulouse, os nomes das ruas estão em francês e em occitano (ou provençal), língua ancestral que já ninguém entende nem fala!... (Fig. 2).
Placa toponímica em Miranda do Douro: mirandês e português!

Placas toponímicas em Toulouse: francês e occitano!

            Conclusão: o falar é um património, revelador da nossa identidade, das nossas raízes!

                                                                       José d’Encarnação

Inserido, a 21 de Fevereiro de 2019, no blogue da Liga de Amigos de Conimbriga: https://laconimbriga.blogspot.com/2019/02/jose-d-encarnacao-professor-catedratico.html#more

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

E depois do espectáculo…

              No auditório do Casino Estoril, houve, na passada semana (dias 14 a 16), o espectáculo, protagonizado por Wanda Stuart, a que se deu o significativo nome de «Rouge», ‘vermelho’. Vermelho como o ‘Moulin Rouge’, vermelho como as lâmpadas que envolvem a secreta e misteriosa intimidade.
            Wanda Stuart é o nome artístico; o verdadeiro, dizem, guarda-o ela a sete chaves, embora se depreenda que Stuart é de sua mãe, Maria Stuart, cabo-verdiana. Wanda, alfacinha, nasceu a 6 de Janeiro de 1968. A azougada menina desde cedo decidiu singrar o caminho por si, compondo a pouco e pouco um repertório de canções célebres, com que encantava a clientela dos bares por onde foi treinando e aperfeiçoando as qualidades que a deveriam guindar ao mundo do espectáculo, em que acabou por brilhar, acarinhada, como foi, por Júlio Isidro, João Baião, Filipe La Féria (participou em ‘Maldita Cocaína’).
            O seu mundo é o da canção; o género ‘musical’, aquele em que se sente mais à vontade. E assim se viu, em «Rouge», espectáculo com direcção artística de Amy Ruffell e Cecilia Carneby, em que interpretou, bem ao seu jeito, as canções eternas que eram voga – acentue-se – na década em que nasceu: «Ne me quitte pas», de Jacques Brel, publicada em 1959; “La vie en rose”, da imortal Edith Piaff, de 1946, que se ornara imortal também. A canção francesa no seu auge, que bem se casa, mesmo sem o querermos, com o lado sentimental que sempre envolveu a alma portuguesa.
            Sim, aqui, mais uma vez, brilhou a versatilidade da protagonista, que se desdobrou em personagens, cantou e dançou, integrando-se em pleno na adequada coreografia que perpassa por todo o espectáculo.
            Os fadistas, quase no fim da sua actuação, apresentam ao público os seus acompanhantes e nós aplaudimos cada um. Em «Rouge» faltou essa apresentação e o aplauso foi geral. Tanto as seis esculturais bailarinas (passe o lugar-comum, mas… é a verdade!) como os dois excelentes bailarinos (aprimoraram-se na expressão corporal!) ficaram no anonimato! Gostaríamos de ter recebido uma simples folhinha em que estivessem consignados os seus nomes. Gostámos muito de os ver, de apreciar a sua desenvoltura e rigor; mas não teria sido despiciendo que a sua identificação nos tivesse sido comunicada – porque elas e eles bem no mereciam.
            Aliás, para alguns de nós, frequentadores dos espectáculos do Casino Estoril desde essa década de 60, não terá sido difícil recuar a esses tempos dos «shows» quotidianos no salão-restaurante, com as plumas das Blue Bell Girls, por exemplo, um dos grupos de bailado que mais terá ficado na mente dos frequentadores de então.
            Sugerindo as noites quentes no parisiense Moulin Rouge, o anúncio suscitava de imediato a curiosidade, até porque a produção se encarregara de salientar que o objectivo fora «promover o corpo feminino de uma forma sensual», acrescentando uma frase com dois adjectivos não menos sedutores: proclamava-se que seria «atraente para os homens» – o que era, à partida, deveras compreensível – mas, leia-se bem, «fortalecedor para as mulheres»! No sentido de ser, de facto, um hino à beleza feminina.
               Portanto, depois do espectáculo.o aplauso, de pé, não podia ter sido maior!

                       José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 269, 2019-02-20, p. 6.
Fotos gentilmente cedidas pelo Gabinete de Comunicação do Casino Estoril.


O frenético can-can final acompanhado pelas palmas do público!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

7 de Março de 1945!

           Como já tivemos ocasião de ver no programa reproduzido na passada edição, religiosamente guardado por Maria Helena Rodrigues (bem haja, Amiga!), houve, a 7 de Março de 1945, uma «récita em reprise» no S. Braz Cine, a cargo do Grupo Dramático da Sociedade Recreativa corotelense.
          Como corotelense, naturalidade que muito prezo, tenho de fazer ainda mais alguns comentários acerca desse programa.
            Primeiro, evocar uma época em que o sítio manifestava uma pujança cultural a rivalizar, se bem lembro, com Bordeira, a vizinha que já era do concelho de Faro, mas a que as gentes do Corotelo estavam intrinsecamente ligadas, até por laços matrimoniais. Uma sociedade ter Grupo Dramático não era para todas!
            Segundo: merece particular atenção o vocabulário utilizado. Para além da influência francesa estampada na palavra «reprise», veja-se só: «alta comédia desempenhada por duas gentis meninas»; a comédia tem «coros de camponeses e camponesas» e também os tem a opereta, que era «de um humorismo muito interessante»; chama-se «grandiosa» à revista «Cobras e Lagartos», com original de Aníbal Chaves Pinto; e o espectáculo é abrilhantado por «uma bela orquestra»! Que mais se haveria de querer!...
            Em terceiro lugar, o desafio aos nossos leitores: a identificação dos intervenientes. O Joaquim Martins Guerreiro, disse-me o nosso amigo Contra-Almirante Manuel Martins Guerreiro (a quem lhe perguntei se era da família) que seria o bem conhecido Jôquenito. Da Marieta da Luz Pinto ainda eu me lembro, aquelas lembranças de catraio, uma mulher bonita, como ela era… Morava na colina fronteira ao Cerrito onde eu nascera, a zona do Corotelo onde ‘pontificava’ o Zé Gil.
            E os outros? De Aníbal Chaves Pinto, por exemplo, o autor e também actor, tem de se
saber algo mais. O desafio aqui fica!

                                                                       José d’Encarnação
Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 267, 20-02-2019, p. 13.

Pararam os trabalhos na 2ª circular, em Cascais!

             Está concluída a primeira fase das obras de abertura do segmento da 2ª circular desde a Avenida Engenheiro Adelino Amaro da Costa até à Rua de Santana, em Cascais.
            De facto, no passado dia 6, toda a maquinaria e os operários que, durante várias semanas, ali arduamente labutaram para conseguirem levar a cabo a abertura da estrada, foram-se embora, o que poderá subentender que terão sido dados por terminados os trabalhos desta ‘primeira fase’ da empreitada.
             Aguarda-se que, eventualmente e com o mesmo entusiasmo, à obra – cuja conclusão está prevista para este mês – novas máquinas e novos operários venham, a curto prazo, dar seguimento.

Um projecto de há 50 anos!
             Escusado será dizer quanto esta ligação detém importância para a circulação rodoviária em Cascais.
            Dela se falou, por exemplo, a 18 de Abril de 1969, aquando  da visita ao concelho do Ministro das Obras Públicas, Engº Rui Sanches. A 2ª circular, disse-se então, facilitaria o tráfego da baixa da Vila, uma vez que por ela se escoaria o trânsito em direcção a norte. No Relatório de Gerência da Câmara, datado de 31 de Janeiro de 1970 (p. 21), preconiza-se que «a Estrada Marginal fique ligada à 2ª circular por uma rodovia que seguirá ao longo da Ribeira das Vinhas». E o Plano de Actividades para 1970 (datado de 12 de Setembro de 1969), retomava a ideia do «arruamento do Vale da Ribeira das Vinhas até à 2ª circular».
            Note-se que, em ambos os documentos, se fala da 2ª circular como de algo já existente, o que não correspondia inteiramente à verdade. Nessa altura, a “2ª circular” era apenas a Av. Infante D. Henrique, no Bairro do Rosário, que ia da 25 de Abril (então Frederico Ulrich) até à Rua Joaquim Ereira; só mais tarde se completou a ligação à actual Rotunda dos Bombeiros, ligação cujo nome constitui, agora, justa homenagem ao actor Raul Solnado. O que, neste momento, está em causa é a continuação dessa Av. Raul Solnado até à Rua de Santana, entre o Alto da Pampilheira (vulgo, Bairro J. Pimenta) e o recém-inaugurado parque de estacionamento da Mobi Cascais.
            Trata-se, pois, da concretização de uma aspiração antiga. E se a passagem ao longo da Ribeira das Vinhas veio a considerar-se difícil do ponto de vista técnico e, até, ambiental, a possibilidade de, pela Rua José Florindo, parte significativa do trânsito que sobe a 25 de Abril poder vir a ser deslocada para a Rua de Santana em melhores condições de fluxo encara-se, na actualidade, como uma alternativa simpática.

O estado de adiantamento das obras

           As fotos que ilustram este apontamento (datadas da manhã de 13 de Fevereiro, quarta-feira) poderão dar uma ideia do estado de adiantamento em que os trabalhos se encontram e como virá a ficar a obra feita.
            Mostra a primeira a zona de ligação para a Adelino Amaro da Costa, vendo-se, em primeiro plano, ainda em terra batida e sem lancis, a ligação com a Rua Fernão Lopes (do Hospital da CUF), ligação que permitirá desanuviar grandemente o tráfego de viaturas dos utentes do hospital directamente para a Rotunda dos Bombeiros Voluntários.

     A segunda fotografia foi tirada para o lado oposto, o nascente. Mostra-se o que poderá vir a ser a grande rotunda de ligação com a Rua de Santana, que ora fica, quase escondida, a um nível muito abaixo do plano da rotunda ainda em terra batida e com as ‘cloacas’ verticais do saneamento básico bem à vista. Há, por conseguinte, a intenção de diminuir o elevado desnível da Rua de Santana, fazendo com que as viaturas mais facilmente ali circulem, sem sobe-e-desce.
         Uma palavra de louvor em relação a esse ingente trabalho levado a cabo num terreno bastante rochoso para se colocarem em profundidade as tubagens para o saneamento.
               A terceira fotografia mostra, por exemplo, o nível a que vão ficar as tampas dessas caixas do saneamento básico, estando em primeiro plano uma delas, provisoriamente tapada com uma palete. E vê-se, na quarta, a cuidadosa colocação dos lancis, em quase toda a extensão da subida.
            Não há dúvida que é de enaltecer o facto de, em tão pouco tempo, se ter avançado tanto. Recorde-se que, segundo o painel identificativo da obra, colocado na Rua de Santana, as obras deveriam terminar em Fevereiro. Esta «1ª fase» terminou antes do dia 6, uma vez que, a partir desse dia, não houve mais trabalho absolutamente nenhum.
            Levou-se a cabo uma obra ingente. Durante semanas, um labor gigantesco, porque se tornou necessário arrancar muitas pedras, atendendo a que se trata de uma zona muito rochosa; os operadores das máquinas trabalharam arduamente, inclusive aos fins-de-semana, praticamente sem horário, quase do nascer ao pôr-do-sol e até pela noite adentro.
            Louve-se, por conseguinte, o estado bem adiantado em que a empreitada ficou.

                                                           José d’Encarnação

            Publicado em Cyberjornal, edição de 13-02-2019:

Post-scriptum: Na terça-feira, 19, começaram as operações junto à Rotunda dos Bombeiros Voluntários, para a 'junção' dos dois pavimentos, que se encontravam a níveis diferentes.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Para uma história das companhias de seguros em Portugal


           O Doutor José Maria Amado Mendes, professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, cedo encaminhou a sua investigação para o estudo da história das empresas em Portugal. Aliás, não foi inocentemente que, na década de 80, propôs a criação, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, da cadeira de Arqueologia Industrial.
            Essa unidade curricular começou a ser leccionada em 1987-1988, numa altura em que esse tema ainda se não abordava em Portugal, cadeira que nasceu da necessidade de se procurarem analisar e, na medida do possível, salvaguardar os vestígios ainda existentes de muitas empresas, designadamente de carácter fabril, cujas instalações, abandonadas após a cessação da actividade, se deterioravam a olhos vistos, sem que delas se fizesse o registo devido.
            Não apenas esses espaços materiais, arqueológicos, interessavam. É que, amiúde, numa ânsia de modernização ou, por vezes, de menosprezo pelo passado, se deitavam fora – ou mesmo destruíam – documentos que hoje seriam preciosos. Todos se recordam dos crimes de leso património que se cometeram logo após o 25 de Abril com essa destruição de muita documentação do maior interesse para a História!
            Várias têm sido, por isso, as obras que, por iniciativa do Doutor Amado Mendes, se publicaram, resultado de mui cuidada investigação dos arquivos que se não perderam. Citem-se apenas algumas, todas elas concretizadas após se ter aposentado: História do Abastecimento de Água a Coimbra, vol. I: 1889-1926 (2007), vol. II: 1927-2007 (2009); «O Papel e a Renova: Tradição e Inovação» (2008); Manuel de Mello: O Homem e a Obra (2008); Construção Naval (2013); Dicionário de História Empresarial, vol. I: Instituições Bancárias, vol. II: Seguradoras (ambos em 2013); «Empresas e empresários no final da Monarquia e na I República: Industrialização em processo acelerado» (2014); Novos grupos económicos no distrito de Aveiro: Famílias Pinho e Amorim (2015); «Os Museus devem dedicar atenção ao Património Industrial e Técnico» (2015); «A Indústria em Portugal, de Pombal à República: Revolução Industrial ou industrialização» (2017).
            O sector dos seguros, por exemplo, dada a sua íntima ligação com a vida das pessoas e das instituições, tem-lhe merecido a maior atenção. Por isso, um dos mais recentes trabalhos do Professor, desta vez em colaboração com Duarte Manuel Freitas, é o livro Zurich em Portugal. 100 anos de História. Um compromisso com o Futuro (1918-2018) [Lisboa, 2018], fruto de uma investigação que a própria Zurich Portugal houve por bem patrocinar e publicar. Louve-se, desde logo, a atitude da empresa, por ter consciência de que o presente e o futuro (passe o lugar-comum) se alicerçam na experiência adquirida.
            Trata-se da história de uma importante companhia de seguros, nas comemorações do seu centenário, com base na exploração da numerosa e diversificada documentação do seu arquivo, bem como de fontes orais e várias outras. As suas raízes remontam a 1918, quando foi criada, em Lisboa, a Companhia de Seguros Metrópole.
            Em 1950, o Grupo Zurich, sediado na cidade do mesmo nome e com uma longa história e grande experiência internacional na actividade seguradora (desde 1872), adquiriu a quase totalidade das acções da Metrópole, pelo que passou a ter um papel activo na respectiva gestão, através do seu representante, como elemento preponderante no Conselho de Gestão.
            Todavia, as raízes da Metrópole mantiveram-se bem vivas ao longo do tempo, inclusive na própria designação de "Metrópole" que adoptou até aos finais do século XX, quando passou a usar a denominação de Zurich.
            Através de novos e actualizados métodos de gestão e da competência e empenho dos seus numerosos colaboradores, a Zurich foi diversificando a sua oferta em diversos ramos de seguros, de forma inovadora, alargando o âmbito da sua acção a todo o País, pelo que, a partir de certa altura, se guindou a um honroso 5.º lugar, no leque das seguradoras a operar em Portugal.
            Muito há, por conseguinte, a esperar ainda de José Amado Mendes, que prepara neste momento, segundo tive ocasião de saber, uma comunicação sobre seguros em Portugal no século XX, a apresentar em Santiago do Chile, em finais de Julho próximo, no Congresso Latino-Americano de História Económica, em que coordenará, com Mario Cerutti (da Universidade de Nuevo Léon, Monterrey, México), uma sessão sobre Serviços. Celebrar-se-á assim mais uma presença da Academia de Coimbra no país irmão, através de um dos seus membros que, embora aposentado, continua a fazer uma investigação digna do maior encómio.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 16-02-2019:

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Perder tempo e morrer na miséria

                – O tempo é sempre curto; vamos então, sem perdermos mais tempo, ouvir…
            Chamou-me a atenção esta frase do locutor que, na manhã de 30 de Novembro do ano passado, entrevistava uma cantora na Antena Um.
            Estava eu a tomar o pequeno-almoço e escrevi de imediato a frase num dos papelinhos que sempre me acompanham como «auxiliares da memória». Peguei nele agora, para partilhar a sensação desagradável que então senti. «Perder tempo»? O locutor ter-se-á apercebido bem do que disse? Falar com a cantora era… perder tempo? Nesse caso, o que era para ele ‘ganhar’? Ouvir a canção?
            Recordo que, no dia anterior, numa assembleia em que se levantaram questões que um documento suscitara e que, no parecer do presidente, poderiam ser de interesse geral, houve uma voz que se ergueu:
            – Para a outra vez, fazem favor de estudar esse assunto antes, que é para nós não estarmos aqui a perder tempo com pormenores.
            E dei comigo a pensar no que significava, de facto, «perder tempo», quando me despertou o interesse um título: «Nobel morre na miséria».
            O artigo, de Dieter Dellinger, datado de 15 de Outubro, p. p., contava que o físico americano Leon Lederman, Prémio Nobel em 1988, «um dos pais dos Neutrinos, nomeadamente do Myon-Neutrino e também um dos construtores da teoria das partículas elementares», morrera na miséria aos 96 anos, no dia 3. E explicava:
Leon Max Lederman
            «O seguro de doença não cobria já as despesas médicas nem a estada numa casa para pessoas com a sua doença»; por isso, «teve de vender a sua medalha do Prémio Nobel, adquirida por favor pela sua universidade por 765 000 dólares e foi com essa quantia que se manteve nos últimos dez anos de vida».
            Perguntei-me, alfim: será que Leon Max Lederman passou a sua vida a… perder tempo? E o que significa mesmo «perder tempo»? Não constitui essa frase mais uma daquelas visões negativas do nosso existir tão bem compendiada igualmente na frase assaz repetida no nosso quotidiano «Não tenho tempo, não tenho tempo!»?…
            Não resisto, pois, a citar de novo o meu autor de cabeceira, Michel Quoist:

            «Não digas a quem te visite: “Só posso receber-te por um instante, não te mando sentar… etc…”, enquanto o recebes um quarto de hora ocupando-te de outra coisa. Manda-o sentar e atende-o dez minutos, calmamente, dando-lhe a impressão que lhe dedicas todo o teu dia».

                                    José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 748, 15-02-2019, p. 10.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Quem o feio ama...

… bonito lhe parece, diz o prolóquio popular.
            Na verdade, ao sentimento do Amor está sempre ligada a ideia de Beleza, ainda que seja, como a frase deixa perceber, uma beleza com muito de subjectivo. Imaginamos Nossa Senhora sempre bela, ainda que, n’Ela, a ideia de Beleza mude consoante os tempos e os lugares: hoje, queremo-La aqui de cabelos loiros e olhos azuis, mas Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, é negra e tem cabelo preto…
            Por isso, para cativar, a beleza física não é tudo ou até pode afirmar-se que importa muito mais a beleza que se desprende do olhar, do falar, do sorrir. «Espelho da alma» se classifica o olhar. No plano do amor, a linguagem do olhar retrata-nos e – qual flecha de Cupido – pode atingir quem nos vê.
            No meio da desgraça que foi a sua inesperada erupção, o vulcão Vesúvio teve o condão de proporcionar aos arqueólogos a descoberta de uma cidade, Pompeia, praticamente intacta, parada no tempo, o tempo em que a lava determinou que nela a vida parasse. E, desta forma, podemos hoje admirar os frescos que ornavam as casas, onde amiúde se observam inúmeros «amores», lindos meninos seminus, alados, num imenso hino ao Amor, armados de flechas porém… Exacto, essas flechas que a mitologia atribuiu ao deus Cupido e que, nos nossos dias, vemos aqui e além, em grafitos nas árvores, nas paredes: um coração trespassado e, dentro dele, dois nomes próprios ou duas siglas, a documentarem que secreto par amoroso, um dia, por ali passou e quis deixar marca do seu amor.
            Um par. Sim. Amor só não naufraga se existir a dois. E a seta não é, apenas, o objecto a relembrar Cupido, armado de arco e flecha sempre pronto a deliciadamente disparar. Cupido, o filho da deusa do Amor, a linda Vénus… A seta também fere, magoa, faz sangrar…
            Ao Amor está ligada a Beleza, sim. E o sofrimento. A saudade – dor, ausência do ente querido, vontade de o termos aqui, a nosso lado, sempre! E sofremos com a separação!… Em romeno, a palavra equivalente a «saudade» é… ‘dor’! Uma coincidência feliz.
            Ai, as setas marotas do Cupido bem capazes de nos ferir!...

                                                             José d’Encarnação

Publicado em P&V [Ponto & Vírgula], boletim mensal da Escola Calasans Duarte, Marinha Grande, Fevereiro de 2019.

Patrimoniices cascalenses 26



Placa do ACP a indicar Murtal

            Tem inteira razão José Santos Fernandes, aliás, outra coisa não seria de esperar dele, que tão bem conhece a zona e, ainda por cima, nessa rua morou.
            É verdade: a placa mandada colocar pelo Automóvel Clube de Portugal, a indicar a direcção para o Murtal, está em «S. Pedro do Estoril, junto à Marginal, fim da R. 9 de Abril».
            E perguntar-se-á, porventura, que é que tem isso de especial para ser alvo de curiosidade nas Patrimoniices Cascalenses?
            É porque, como frisaram também alguns dos comentadores da pergunta, se trata mesmo de um património! Como assim? Muito simples: a Rua 9 de Abril não tem ligação para a Marginal, mas tem – pasme-se! – para a Rua de Cascais, também ela assinalada com azulejo do ACP. A Marginal cortou a saída para a artéria que daí saía em direcção a Cascais e por onde deveria passar-se para ir ao Murtal.
            Houve, por conseguinte, noção clara por parte dos proprietários das casas onde essas placas estavam de que eram, na realidade, uma memória a não perder, a fim de os vindouros saberem como, nos primórdios do século XX, era feita a circulação por essas bandas cascalenses.
            Claro, aproveita-se a ocasião para sugerir a quem, passeando-se por esse Portugal profundo, veja dessas placas as fotografe, dando uma ideia do prédio em que estão, porque esse era, nessa altura, aquele que marcava o início da povoação.
            O ACP e eu próprio fiamos gratos!

                                                           José d’Encarnação


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Birre nos anos 50…

              Sentara-me no murete do pontão. Passava um carro a espaços, interrompendo o nervoso murmúrio das águas apressadas, levando consigo folhas, pedaços de ramos, um que outro saco de plástico. Águas barrentas, das terras por onde se haviam espreguiçado. Chovera muito essa noite. O Rio dos Mochos… Sim, o Povo chama-lhe Rio, mas não passa de ribeira, seca a maior parte do ano, apenas umas poças aqui e além, onde, na Primavera, saracoteavam girinos… O Rio dos Mochos galgara os valados e os silvados que lhe limitavam o leito. E a correnteza sob os meus pés fizera-me lembrar aquele aforismo do imperador Marco Aurélio:
            «O tempo é como um rio que os acontecimentos formassem, um rio torrentoso... Mal uma coisa se anuncia, ei-la que já lá vai: no seu lugar já está outra em jeito de abalada».
            Passei a meninice e parte da juventude ali, em Birre de Baixo, à beira do Rio dos Mochos. Por sobre esse pontão em que ora me imaginei passava a estrada que ia para a Torre. Era em macadame, estava dividida em cantões, cada um entregue a um cantoneiro, que lhe tratava das bermas e remendava os buracos. Um deles, ainda vivo, era o Zé Duque, que iria mais tarde para encarregado do cemitério da Guia. Do outro já não recordo o nome, apenas que era alto e, por isso, eu acho que era da Malveira. Para mim, moço pequeno, todos os homens altos eram malveirões.
            A montante do pontão sucediam-se os pomares. Primeiro, o do Ti Zé Apolinário, que tinha figueiras das boas e uma enorme nespereira, a nossa tentação de putos da escola, e ele, lá em cima, sentado numa espécie de pequeno alpendre que tinha o palheiro, dava-nos um berro ameaçador e a catraiada fugia a esconder-se no ribeiro. Depois, era o do Ti Silvino Capelas, com ameixeiras também e pessegueiros, outras tentações, o que me obrigava a confessar ao senhor padre que roubara fruta, embora dissesse de mim para comigo «eles deixam-na estragar, não a apanham, os melros comem-na, porque é que eu não me hei-de regalar com ela?». Minha mãe também se zangava, sobretudo quando eu apanhava ameixas verdes e havia desarranjo intestinal pela certa. De seguida, sempre em direcção ao que nós chamávamos o Caminho da Catinga, era o domínio dos Gafanhotos e do Ti Alfredo Apolinário, se não erro. Só me lembro é que tinha uma figueira do tamanho de uma casa!        Da parte de cima, mas já em direcção à Bicuda, eram terras dos Calçà-Botas. Era assim que a gente lhes chamava, parece que a mãe de um deles, quando era pequeno, lhe estava sempre a dizer que calçasse as botas, porque o que ele queria era andar descalço. Não sei se é verdade. Para aí não havia fruta, que o terreno já era de sequeiro e dava era para trigo e cevada.
            E as eiras. Havia quatro na década de 50, em Birre: a do Ti Zé Apolinário, a norte, a caminho das pedreiras; a do Ti Silvino Capelas, como que protegida por um enorme pinheiro manso, para a banda de sul; a do Ti António Fernando, do outro lado do Caminho do Poço, em relação à do pinheiro grande, e que era a que ficava mais no centro do lugar e onde até se faziam desfolhadas; e a dos Calçà-Botas, sita onde hoje está a farmácia. Cederam o seu lugar às moradias, porque também já não há quem tenha leiras de trigo ou de cevada.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 267, 2019-02-06, p. 6.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Andar de cabeça para baixo

             – Ó pai! Então se tu tinhas bilhete válido, porque é que mostraste o da outra semana? Quiseste chatear o revisor, foi?
            – Não, filho, não foi! Tu imaginas o que é a vida daquele homem, de manhã à noite, «Bom dia! Se faz favor!...», «Obrigado!», «Bom dia! Se faz favor!...», «Obrigado!»? O passageiro mostra o bilhete, sem um sorriso, nem sequer, por vezes, olha para ele, o revisor põe maquinalmente o bilhete na máquina do controle e… segue em frente. Milhares de vezes, se calhar, ele faz isso, sem que o cumprimentem e lhe sorriam! Assim, hoje, ao final do dia, ele chega a casa e, ao jantar, é capaz de contar aos filhos: «Hoje, houve um velhote que me quis enganar e me entregou um bilhete da semana passada! Mas eu topei-o!».
            Há anos, vinha de carro com a rádio ligada. Era de manhãzinha.
            – Então, Amélia, ainda não há nenhum acidente?
            Era o locutor de serviço no programa, em que, como é habitual, se dá conta do movimento rodoviário, para informar quem se desloca para o emprego. A Amélia estava na redacção:
            – Não, está tudo normal. Acidente nenhum!
            Senti que haveria no ar de ambos algo de enfastiado. Que maçada, uma manhã sem acidentes!... Não tem piada nenhuma, não há nada para contar!
            Lembro-me de ter ouvido a Balbina aconselhar o amigo que ia casar:
            – Ouve lá! Quando já souberem tudo um do outro, como acordam, como se despem, como dormem, e houver iminente perigo de canseira, mudem os hábitos, troquem as mãos, façam trinta por uma linha!...
            Lembrei-me da Balbina outro dia, quando me apercebi que até o meu labrador não ia lá muito à bola com os rituais e cada dia escolhia um roteiro para os nossos passeios higiénicos. Abençoado!
            E veio mesmo a talhe de foice uma daquelas mensagens com que os amigos nos enriquecem a caixa do correio. Esta, porém, não era nada despropositada e trazia uma série de recomendações para se adiar a chegada do Sr. Alzheimer. Referia-se à ciência que dá pelo nome de Neuróbica e que tem justamente como propósito «fazer tudo aquilo que contraria as rotinas, obrigando o cérebro a um trabalho adicional»: pôr o relógio no pulso contrário; vestir-se de olhos fechados; andar às arrecuas pela casa… Ora toma! N’As Aventuras de João sem Medo, de José Gomes Ferreira, também há pessoas que andam de cabeça para baixo; acho que é para terem as ideias mais frescas. Mal sabia o autor que… tinha inventado a Neuróbica!...
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 747, 01-02-2019, p. 10-11.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Um ano… próspero!

Aprendi desde jovem a fazer meditação ao começar da manhã. Como iria ser o meu dia? Quais as melhores atitudes que eu deveria adoptar em cada uma das circunstâncias já previstas?
À noite, idêntica reflexão acerca do dia passado: adoptara, de facto, as melhores atitudes? Que me acontecera de bom e de menos agradável?
A necessidade de parar de vez em quando, a fim de, como se costuma dizer, “deitar contas à vida”.
A chamada «passagem do ano», os dias que a antecedem e os que imediatamente lhe seguem constituem bom pretexto para, como num filme, revermos o que aconteceu connosco e podermos pensar naquilo que são os nossos sonhos para o ano que está a começar.
Dizer que auguramos um «ano próspero» é, de facto, lugar-comum; a expressão detém, no fundo, grande significado: entende-se por «prosperidade» o progresso, a nível pessoal e profissional.
Eu refiro, no entanto, usar duas outras palavras que consubstanciam, para mim, o voto melhor para os meus amigos: que o novo ano venha, para eles, repleto de serenidade e de tempo!
A serenidade – porque, nos dias de hoje, em que andamos a grande velocidade e não temos tempo para parar, poderás passar a encarar cada actividade, cada momento, com o espírito tranquilo, a pesar os prós e os contras, a fim de tomares a melhor decisão. E quantas vezes a serenidade nos falta!...
O tempo – com frequência ouves a lamentação «Não tenho tempo! Não tenho tempo!». Por isso, eu te desejo que o tenhas.
E este desejo vai ao encontro – mais uma vez! – da palavra ‘reflexão’. Tem o dia 24 horas. 24 horas só. Nem mais nem menos. Se verificares, contudo, são, faz as contas: 86 400 segundos! É muito segundo, mormente se atentares que, no autódromo, a pole position (o 1º lugar na largada) se perde ou se ganha por… centésimos de segundo!...
Afinal, no teu dia-a-dia, todos os segundos contam e todos os de 2019, tenho a certeza, vão contribuir para a tua… prosperidade!
Esse, o meu voto!
                                                               José d’Encarnação | Jornalista convidado

Publicado em P&V - Ponto & Vírgula, órgão da Escola Calasans Duarte, Marinha Grande. Edição de Janeiro, acessível em http://gic.age-mgpoente.pt/index.php