domingo, 20 de abril de 2014

Aplausos para a reabertura da Pousada!

             Deu Notícias de S. Braz o devido relevo, na edição de Março (p. 13), à informação de que estavam em curso obras para adaptação, até final do ano, da celebrada pousada de S. Brás a alojamento de cerca de 200 famílias dinamarquesas, em regime de time-sharing.
            Inaugurada em 1944, sendo por conseguinte uma das primeiras do País, a pousada fora concessionada ao Grupo Pestana, quando este grupo se prontificou a revitalizar as pousadas que estavam sob a alçada da ENATUR (Empresa Nacional de Turismo), a qual, porém, se revelou sem garra bastante para as manter operacionais e rendíveis. Em 2010, no entanto, esse desiderato em relação ao estabelecimento de S. Brás acabaria também por fenecer e o Grupo Pestana encerrou-o, alegando falta de viabilidade económica.
            Carece o concelho de S. Brás de Alportel – como, de resto, o salientou, a este propósito, Vítor Guerreiro, presidente do Município – de estruturas capazes de atrair visitantes que ali passem alguns dias, em vez de se alojarem de preferência junto à costa, de forma a usufruírem dos encantos ímpares que a serra e o barrocal proporcionam.
            A pousada, que mui sugestivamente se designará «Coração do Algarve», disporá de 40 áreas de alojamento, em jeito de apartamentos autónomos equipados com sala, cozinha, quarto e casa-de-banho.
            Estamos convictos, porém, que – tal como acontece com os residentes e se o sistema funcionar como se prevê – também essas famílias não resistirão a deixar-se seduzir pela nossa gastronomia e irão tomar algumas refeições nos restaurantes locais, visitarão o museu e as exposições e participarão nas múltiplas iniciativas que, ao longo do ano, as entidades de S. Brás não cessam de organizar e em que todos (nacionais e estrangeiros) mui agradavelmente se integram!

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 209, 20-04-2014, p. 21.

 

«Dos outros para mim»

             Numa iniciativa da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana e da Associação Cultural de Cascais, está prevista para as 18 horas do próximo dia 10 de Maio, na sede daquela Junta, a apresentação de um livro, assinado por Celestino Costa, que lhe deu o título Dos outros para mim, editado por Apenas Livros.
            Trata-se de uma muito sugestiva compilação de frases célebres de autores célebres que podem constituir – e, neste caso, têm constituído – norma de vida.
            Tive a honra de prefaciar o volume e aí começo por escrever:
            «Naqueles derradeiros minutos de vigília quotidiana, apetece ainda – para além da breve oração e do proveitoso exame de consciência – passar os olhos, mais uma vez, por aquele livro há muito a ocupar esse lugar privilegiado. Uma companhia, um deleite, um sereno lavar d’alma depois de fadigosa jornada. O livro de cabeceira. Escolhido dentre aqueles com que, um dia, adregámos tropeçar e nos enleou para sempre; ou mesmo feito por nós, qual apreciada e confortante manta de retalhos ou bússola norteadora de pensamento e de acção.
            O livro que Celestino Costa nos apresenta pertence a este último grupo e resulta, é bem de ver, de leituras pensadas, ditames transformados em singelas normas de vida.»
            Canteiro de profissão, Celestino Costa apurou-se no trabalhar da lioz cascalense, nomeadamente gravando epitáfios no cemitério da Guia; a capa do livro constitui, por conseguinte, o seu «retrato», como ele diz, dado que reproduz, em excelente fotografia de Guilherme Cardoso, essa típica pedra daqui e os dizeres, a negro, são como os dos epitáfios ao longo de várias décadas gravados!...
            É, pois, com o maior gosto que veiculo esta informação para, desde já, ser colocada na sua agenda a hipótese de participação na cerimónia, o que antecipadamente agradeço.


Publicado em Cyberjornal, edição de 20-04-2014:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=433:a-agendar-dos-outros-para-mim&catid=19&Itemid=30

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Na prateleira 21

O que é Tofa?
            Almoço na Baixa alfacinha, no dia 28 de Março, p. p. É um restaurante simpático, com as antigas arcarias pombalinas à mostra, farta clientela, alguns vultos conhecidos numa ou noutra mesa.
            No momento do café, a senhora do grupo em que eu estava inserido, perguntou ao empregado:
            ‒ O café é Tofa?
            O rapaz ficou ligeiramente atrapalhado, não percebeu o que a senhora perguntara, ela repetiu e ele, depois de responder prontamente que «ia perguntar», hesitou e indagou-lhe ele próprio de imediato: «O que é ‘tofa’!». Explicámos-lhes que era uma marca de café. «Ah!», disse ele.
            Prendera-se a razão da pergunta com o facto de, em termos de café, a senhora ter as suas preferências, mesmo por razões de saúde, e, por outro lado, por se ter verificado que, pelo menos, os pacotes de açúcar tinham a marca e a publicidade Tofa, o que implicava, naturalmente, que fosse dessa torrefacção que viesse o café ali servido. Não me lembro de ter verificado se também as chávenas eram Tofa.
            Compreende o amigo leitor a razão deste comentário e o grito de alarme que veicula: primeiro, a formação apressada e incompleta que foi dada ao empregado; segundo, o facto de ele próprio, que diariamente tinha nas mãos centenas de pacotes de açúcar «tofa», nunca se ter interrogado, nem que fosse para ir ver à Internet, sobre o que é que ‘aquilo’ queria dizer!...
            Contei a cena a um dos meus amigos, que de pronto evocou o que estamos a ver no programa «Quem quer ser milionário». Certo é que, ali, os nervos podem atraiçoar, dado o ambiente; contudo, havendo por parte de Manuela Moura Guedes a preocupação de pôr as pessoas bem à vontade, espanta verificar como, por exemplo, aspectos comezinhos da história e da geografia de Portugal são desconhecidos.
            Não vamos ao ponto de, como nos aconteceu na então Instrução Primária, sabermos de cor e salteado os nomes dos principais rios e seus afluentes, e as estações mais relevantes das lianas do caminho-de-ferro, ou as preposições simples todas de carreirinha!... Contudo, uma educação mais concreta, mais ligada à realidade circundante, em que se saiba distinguir um bácoro de um cabrito, afigura-se fundamental. E felizmente que, na Escola, já se vai caminhando nesse sentido!

Achar piada ou… não ter outro remédio!
            Inadvertidamente apaguei (ou não consigo encontrar na memória do meu computador) a mensagem que um amigo me enviou, a prontificar-se a explicar melhor o conteúdo de um diploma legal em que no preâmbulo ou, porventura, no último artigo, se enumeravam os artigos de outros diplomas que eram revogados ou alterados por via desse que ora ia entrar em vigor.
            O oferecimento tinha uma razão de ser: é que, na verdade, o rol era… infindável! Aí umas vinte linhas, se não mais!
            Fez-me lembrar aquela frase do nosso quotidiano: haviam deitado o barro à parede a ver se pegava. E não pegou!... A experiência mostrou que havia sido cometida asneira e o mais natural era dar a mão à palmatória. O que, diga-se, nem sempre acontece – mas é salutar que aconteça, pois «errar é humano».
            Vêm estas considerações a propósito de uma mensagem que anda pela Internet, onde se afirma que não terá sido revogado o Art. 17.º do Decreto-lei nº 496/80, de 20 de Outubro, que reza assim: «Os subsídios de Natal e de férias são inalienáveis e impenhoráveis».
            Comenta-se: «Os nossos governantes e a Troika desconhecem isto!». E pergunta-se como é que o Governo Central pode retirar esses subsídios, se não houve expressa revogação dessa norma?
            Creio que, neste momento, o assunto já deve ter chegado ao conhecimento do legislador, que – a ter razão quem pôs a pergunta a circular – se apressará a justificar eventuais desregramentos. É natural, até, que o aparente ‘problema’ esteja resolvido. Temo, porém, que haja alguém que prontamente venha a terreiro ver o assunto de uma outra forma: claro, são ‘inalienáveis e impenhoráveis’… desde que existam! Se os suprimirem… não há volta a dar-lhes! Aliás, note-se que o diploma nasceu expressamente para «regular de forma sistemática a atribuição dos subsídios de férias e de Natal ao funcionalismo público». Muito provavelmente, já ele terá sido reformulado no seu conjunto. Digo eu. Pelo menos, a prática assim o mostra, tanta tem sido, de há uns meses a esta parte, a desregulação reinante....

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 41, 16-04-2014, p. 6.

 

 

domingo, 13 de abril de 2014

Rosas vermelhas em gesto de gratidão

            Teve uma rosa vermelha a única senhora da Banda Sinfónica da Guarda Nacional Republicana assim como os membros femininos do Coro do Teatro São Carlos; rosas vermelhas se entregaram às senhoras, à saída do Salão Preto e Prata do Casino Estoril, pelas 22.30 horas do passado dia 10, após o concerto “Música e Vozes para Nobres Causas”.
             É que, oferecido pelo Comando-Geral da GNR e pela Administração do Teatro São Carlos à Santa Casa da Misericórdia de Cascais, com o patrocínio da Estoril-Sol e do Banco Santander Totta, o concerto inseriu-se no conjunto de iniciativas que estão a ser promovidas pela Santa Casa, visando não apenas um ainda maior relacionamento com a comunidade mas também – e, dir-se-ia, sobretudo! – a angariação de patrocínios e apoios destinados a uma obra social a todos os títulos meritória e carente de mais eficaz sustentáculo, dadas as enormes dificuldades que as famílias atravessam – e é para as famílias, nomeadamente crianças, jovens e idosos, que os 563 colaboradores da Misericórdia denodadamente trabalham.
            Vibraram os cerca de 700 convidados que acorreram ao Salão Preto e Prata com um concerto singelo, mas muito bem executado e, de modo especial, por ter sido escolhido um repertório alegre, para exorcizar as quotidianas amarguras… Estou certo que a maior parte de nós não terá deixado de acompanhar mentalmente (ou a trautear baixinho…) as melodias virtuosamente executadas.
            Começou-se com a “Abertura Festiva em Lá Maior, Op. 96”, do russo Dmitri Shostakovitch. Deliciou-nos, mais uma vez, o ‘Bolero’ de Ravel (de execução excelente, o maestro Cap. João Afonso Cerqueira foi ouvindo, impávido e sereno, e só já lá mais para o fim é que começou a dar umas indicações subtis, e fez questão de propor merecidos aplausos, no final, a cada um dos solistas). Veio depois o conhecido intermezzo da famosa zarzuela “La Boda de Luis Alonso” (datada de 1897), do sevilhano Gerónimo Giménez.
            Entraram depois os 60 elementos do Coro, eles de fato preto, a rigor, elas a envergar opulentos vestidos de variadas cores claras, quais damas antigas preparadas para mui requintada ‘soirée’… E balanceámo-nos (tinha de ser!) ao ritmo do «Va pensiero…», da ópera «Nabuco», de Verdi, a evocarmos as saudades que os hebreus, escravos em cosmopolita Babilónia hostil, teriam da sua Terra Prometida: vai, pensamento, em asas douradas… e detém-te nas encostas e nas colinas onde é possível sorver as tépidas, brandas e doces aragens que se evolam das margens do rio Jordão!...
            De Georges Bizet e da sua «Carmen» fomos brindados com o também conhecido coro do IV acto «Les voici! Voici la quadrille!...». E imaginamo-nos em Sevilha, em tarde de toiros e a multidão a saudar, entusiasmada, a quadrilha de toureiros que chega!
            E voltámos a Verdi. Primeiro para o coro dos ciganos da ópera «O Trovador» e, a terminar, antes de mais uma acentuação extra-programa que mui gostosamente o público acompanhou, Verdi ainda, mas da ópera ‘Aida’: a marcha triunfal «Gloria all’Egitto”.
            Saímos consolados!
            Um elemento da OPART (Organismo de Produção Artística, E. P. E.) saudou, no início, os assistentes e sublinhou quanto havia sido honroso terem o Coro (agora a completar 70 anos de existência) e a Banda Sinfónica aceitado estar ali, numa acção de benemerência. Isabel Miguens, provedora da Santa Casa, agradeceu de antemão a quantos contribuíram para o sarau e a ele se quiseram associar, também em missão de cruzada pelo bem-fazer.

Publicado em Cyberjornal, edição de 12-04-2014:

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Almeirim a despertar para o turismo?

              Almeirim fica na margem esquerda do Tejo, frente a Santarém. É célebre pela «sopa da pedra». Um monge tinha uma pedra na panela e pedia uma pouca de água, apenas, para fazer uma sopa. E à medida que lhe iam dizendo que, se calhar, se pusesse uma batata ou um naco de toucinho, ou uma rodela de chouriço, uma mancheia de feijão… ficaria mais substancial, o frade ia acedendo. Que sim, que aceitava a ideia! E assim nasceu a sopa da pedra, a tradição de que Almeirim se orgulha e, hoje, todos os restaurantes se oferecem para servir a sopa da pedra mais tradicional e mais saborosa!
            Vive da gastronomia a povoação. Em volta da praça de touros (outra das tradições, a tauromaquia), pululam os restaurantes, que, além da sopa da pedra, têm na ementa a lampreia (no seu tempo), o ensopado de enguias… E, sentado numa encruzilhada, lá está o monge, de bronze, com a panela à frente.
            Amiúde se esquece que a Família Real também demandava a lezíria para fugir, quando necessário, aos «ares empestados» da capital. Fundada em 1411 por el-rei D. João I, que aí mandou construir um paço acastelado de que ora pouco resta, Almeirim chegou a ser, no século XVI (dizem), «a Sintra de Inverno». D. Manuel I, por exemplo, fez questão de aí frequentemente residir.
            Essa história está agora a ser mais recordada e é parcialmente mostrada no singelo Museu Municipal, inaugurado a 24 de Março de 2012, a que a Associação Portuguesa de Museologia, no intuito de dar novo alento à iniciativa, atribuiu, em 2013, uma menção honrosa na categoria de «Melhor Museu Português». Pequeno de dimensão, reúne o que foi o recheio do chamado Museu Etnográfico da Casa do Povo, procurando, em pinceladas breves mas sugestivas, dar uma ideia de como eram e como viviam as gentes almeirinenses: as alfaias agrícolas, os trajes típicos, os vestígios desde a Pré-história e a época romana.... Ponto de orgulho é assinalar, por exemplo, que foi ali que Garcia de Resende começou a imprimir o Cancioneiro Geral.
            Dir-se-á que é lento esse despertar para atrair visitantes, uma vez que se centrou – quiçá demasiado – apenas na «sopa da pedra». O Museu – aproveitando o espaço do que foi o terminal rodoviário – aliado ao embrião de uma «universidade da terceira idade» aí também residente, inserido no imenso largo da feira, poderá constituir importante pedra de toque a não esperdiçar! Como o foi a pedra na panela do frade!...

Publicado na Newsletter nº 6 do Departamento de Turismo da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, datada de 08-04-2014 e acessível em:

domingo, 6 de abril de 2014

Os 100 anos da "Sociedade" de Caparide

            Com a realização de diversas actividades, comemorou 100 anos, a 1 de Dezembro, a Troupe União 1º de Dezembro Caparidense. Tive ensejo de apresentar, na circunstância, a respectiva monografia, editada pela colectividade, da autoria de Carlos Manuel Pinto Pedro, actual presidente da direcção.
            Beirão serrano da Covilhã, Pinto Pedro por aqui se fixou desde há anos. Integrou os corpos sociais da colectividade de 1993 a 2001 e a partir de 2009. Devem-se ao seu entusiasmo a recuperação da sede, a construção do ringue, assim como a promoção de muitas iniciativa de forma a congregar a população em torno da Troupe, acção de que o livro é reflexo e manifestação.

Uma casa e uma povoação com história
            Já tivera oportunidade de saber da actividade de Troupe quando aí se desenvolveu grande interesse pelos fantoches. Chegou a haver um espectáculo a 15 de Junho de 1996 e eu entrevistei, a esse propósito, em Rádio Clube de Cascais, o seu responsável, Jorge Gonçalves. Também acompanhei o «Atelier de Teatro e Dança”, da responsabilidade das actrizes Carla Andrino e Susana Cacela, e foi nessa ocasião, por alturas de 2008 e 2009, que, ao entrar no salão, me apercebi que estávamos perante uma «casa com memória», pois houvera, da parte dos seus dirigentes, o cuidado em exporem documentação, fotografias e objectos relativos ao passado da colectividade, a maior parte deles ora cuidadosamente reproduzidos na monografia.
            Em Caparide se encontraram inscrições funerárias romanas que tivemos ocasião de estudar e, ao cimo da rua da colectividade, antes de aí se proceder a uma urbanização, tiveram os técnicos da Associação Cultural de Cascais a possibilidade de proceder a escavações arqueológicas, que levaram à identificação de uma villa romana, cujos vestígios (mosaicos e cerâmica, sobretudo) nos permitiram datá-la do século IV da nossa era. Disso o livro se faz eco na p. 63. E, apesar de haver a esse respeito opiniões contrárias, creio que poderá continuar a pensar-se ter sido o topónimo Caparide derivado da palavra romana «capparis», ‘alcaparra’, sintoma de que, no fértil vale da ribeira que lhe fica aos pés, os produtos hortícolas, designadamente este, um condimento que os Romanos tanto apreciavam, seriam particularmente procurados. «Capparitus» poderia ser o local em que abundava a «capparis». Uma investigação em aberto!

A história cascalense presente!
            Merece, pois, o livro de Pinto Pedro ampla reflexão pelas informações que veicula. Permita-se-me que acentue apenas dois ou três aspectos que se me afiguram mais sugestivos.
            Criara-se, em 1913, o Grupo União Familiar Caparidense, que constitui, de certo modo, o embrião da Troupe. Registe-se a importância da palavra «união» no contexto em que nasceu; e o sentimento patriótico que se desprende de ter sido fundada a 1 de Dezembro, data comemorativa da retoma da nossa independência em relação a Espanha. Eram os primeiros tempos, agitados, da República e havia que criar no povo um sentimento de unidade e fazê-lo despertar para os seus verdadeiros interesses, mesmo que – nesse campo das colectividades de cultura e recreio – a influência inglesa tivesse sido dominante, visível, nomeadamente, na designação de um Costa do Sol Foot-Ball.
            Importa frisar, por outro lado, que, apesar de não se encontrar exactamente no litoral do concelho, o que poderia considerar-se motivo bastante para um alheamento, nunca Caparide deixou de participar nos acontecimentos mais relevantes do concelho.
            Pormenor deveras curioso para o estudo da história da mentalidade cascalense é, a meu ver, o facto de o rancho folclórico, criado em 1942, representar «três figuras: 1ª. O Concelho de Cascais, 2ª A Praia do Sol e 3ª. Um Turista “estrangeirado”». E na marcha de abertura não se deixa de referir que «tem a Praia do Sol junto dos pés e os campos verdejantes em redor». Essa Praia do Sol é, claro, a praia de S. Pedro, a que toda essa zona estava estreitamente ligada: não havia, recorde-se, o casario que hoje há, a cortar o contacto com o mar.
            E as letras das marchas que Pinto Pedro não hesitou em transcrever reflectem, na verdade, o sentir da população, o seu pensamento dominante. Em 1952, por exemplo, a atenção vai para «o teu rio», os pinheirais e... os sapatinhos de trança! Desta tradição, aliás, se haveria de fazer gala, no corso carnavalesco de 1959, organizado pela Estoril- Sol, em que o rei foi Maurice Chevallier: os participantes no carro da sociedade caparidense foram distribuindo, durante o percurso, sapatos de trança aos assistentes!
            Um outro apontamento: Caparide estivera presente, na Páscoa de 1943, na iniciativa «Festas nas Aldeias do Concelho», tendo logrado angariar 251$95 «para a benemérita obra do hospital» da Santa Casa da Misericórdia de Cascais. O respectivo «diploma de agradecimento», assinado pelo provedor, Padre Moisés da Silva, expõe-se no salão e reproduz-se no livro.

Uma identidade a preservar
            Referiu-se o «rio». E talvez não seja despropositado recordar a luta travada na Comunicação Social local, não há muito tempo, contra uma proposta de urbanização desse fértil vale a montante da povoação, onde há vestígios romanos, que viria descaracterizar por completo o ambiente dessas quintas seculares, onde, ainda hoje, se produz vinho de Carcavelos. Logrou-se a classificação dos plátanos seculares; conseguiu-se preservar e alindar a secular Fonte do Sapo. Nas tradicionais festas de S. Pedro era por aí que se desenrolava o piquenique. E há, de facto, que preservar esse local, pela sua beleza e simbolismo: repare-se que é na parede da casa junto à ponte que está a placa identificativa da povoação, ali mandada colocar pelo Automóvel Clube de Portugal, na primeira metade do século passado, a mostrar que era justamente ali a entrada ocidental da povoação.
            Aliás, a colectividade sempre exerceu também a função geralmente atribuída hoje a uma comissão de moradores. Foi à ‘sociedade’ que, por exemplo, se solicitou parecer sobre os nomes a dar aos arruamentos. E todos os domínios da Cultura e do recreio serviram, ao longo dos anos, para cimentar a união dos moradores: sessões de cinema ao ar livre; o tradicional Baile da Pinhata; os bailes de beneficência que alimentavam, nomeadamente, a Caixa de Auxílio aos Músicos, que ainda se logrou agora recuperar em casa de um dos sócios; o Grupo Cénico… Deveras interessante a referência ao espelho, destinado, dizia-se, a «controlar o movimento do salão», numa altura em que as mães se sentavam junto às paredes laterais e os pares rodopiavam sob a sua vigilância perspicaz…
            Um livro com muitas fotografias e de pessoas identificadas, o que particularmente me agradou, exactamente porque assim tem «pessoas dentro», num momento em que mais se fala de números que de pessoas e que mesmo o lema «Cascais elevada às pessoas» é frase a carecer de maior concretização efectiva.
            Registe-se, com aplauso, a preocupação em não deixar perder os arquivos das colectividades ou das entidades em geral e de os preservar e tratar. O arquivo desta colectividade deu entrada no Arquivo Municipal, cujos técnicos - competentes, afáveis, disponíveis - estão a levar a cabo, sob a mui eficiente direcção do Doutor João Miguel Henriques, um trabalho deveras meritório, a merecer encómio maior.
            Estão aqui pedaços de uma história centenária, pedaços de vida de antepassados nossos. E a publicação do livro contribuiu, não tenho dúvidas, para que a população de Caparide – a que tem aqui as suas raízes e a que, aos poucos, vinda de fora, se foi integrando nestes usos e costumes – sinta cada vez mais como sua a colectividade da sua terra. E continuem todos a lutar pelo bem-estar comum – na união que o livro muito contribui para cimentar.

Publicado em Cyberjornal, edição de 06-04-2014:

sábado, 5 de abril de 2014

Na prateleira 20

Ementa dos anos da fome
            Dia 12 de Março. Passa num dos canais de televisão a reportagem sobre a criação, em Alfândega da Fé, da «Ementa dos Anos da Fome». Apresenta-se como iniciativa gastronómica, que preconiza o aproveitamento de tudo que o que se encontra na Natureza, ao nosso dispor, que se aproveitava outrora e que, na actualidade, se prefere comprar no supermercado, embaladinho, tratado e, quase de certeza, fruto de uma produção intensiva, com fertilizantes apressadores do processo de crescimento.
            Contudo, mais do que este aspecto – sem dúvida, altamente positivo – o que mais me impressionou foi o nome da iniciativa, porque traz bem explícita a ideia de fome. É preciso consciencializá-lo: há mesmo fome entre nós!

Natalidade
            Todos o dissemos, em tempo oportuno: cortar abonos de família, diminuir o subsídio de nascimento, não proteger as famílias numerosas, não facilitar as licenças de parto… só pode trazer consequências nefastas numa drástica diminuição da natalidade.
            Acresce a isso, todos os dizem também, a sangria da nossa juventude que parte para o estrangeiro em busca do trabalho que lhe é negado aqui.
            E agora parece que acordaram os senhores «governantes». Aqui d’el-rei que só temos velhos! Aqui d’el-rei que não nascem crianças! E os senhores tomaram alguma iniciativa para o evitar? Não fizeram ouvidos moucos, quando todos bramávamos contra as medidas que estavam a tomar? Éramos «velhos do Restelo», está bem de ver. E somos. Mas talvez as barbas brancas do velho alguma sabedoria hajam de guardar!

Até às 22 horas!
            Era chamada anónima. Hesitei em atender. As formalidades da apresentação. Dois dedos de cautelosa conversa, que, da minha parte, só tinham a finalidade de fazer tempo, o suficiente (pensei eu) para que o senhor do outro lado «ganhasse» a chamada. Não sei como é que o esquema funciona, mas fico sempre com a ideia de que, se for aguentando a conversa, o ‘funcionário’ é capaz de ganhar mais uns cêntimos. Não sei se é assim ou não. O certo é que, quando os atendo (o que nem sempre acontece), procuro ser simpático e respeitar o trabalho que têm, o seu ganha-pão, creio.
            Desta vez, era duma operadora de telecomunicações. Temos em casa os telemóveis de uma e o conjunto Internet / televisão / telefone doutra. Sim, eu sei que, se tivermos tudo da mesma operadora, sai mais barato. «Incomensuravelmente mais barato», garantiu-me o senhor do outro lado. Não abordámos o tema «fidelização», apenas afirmei que me sentia bem assim, pagava mais, paciência! Mas não tinha a maçada de mudar tudo outra vez, funciona, não funciona!... Contudo, a determinado momento, devo ter-lhe dado a ideia de que mais um pouco e eu não resistiria. E, aí, o senhor jogou o último trunfo: «Se celebrar o contrato até às 22 horas, usufrui desta promoção excepcional!».
            Perdão!? Espere aí um bocadinho. O senhor é duma operadora e está a falar-me de um número não identificado; por outro lado, são quase 20 horas e está a dizer-me que a campanha expira às 22?... Quer que eu tome uma decisão assim do pé para a mão?... Esqueça! E diga aí aos seus chefes… Espere! Não lhes diga nada!

O lago que deixou de o ser
            Deixou de ser lago o lago que alindava o final da Rua D. António de Castelo Branco, no entroncamento com a Rua Joaquim Ereira, em Cascais.
            Boa ideia!
            O sistema hidráulico previsto nunca funcionou a preceito; a água, não renovada, apodrecia. Virou, agora, canteiro florido. Se cuidado for, será regalo para os olhos.

Ictus
            Tem como símbolo um peixe estilizado. «Ictus» em grego significa «peixe», de facto. E era o signo secreto para os cristãos dos primeiros séculos se reconhecerem. Miguel Graça deu esse título à peça ora em cena no Mirita Casimiro. Certamente porque entrelaça com a história bíblica as histórias violentas que na cena faz passar.
            Choca.
            Estreada no Dia Mundial do Teatro em que, mais uma vez, se proclamou a importância fundamental do Teatro na vida das gentes (e, aliás, o próprio texto da peça com isso se casa às mil maravilhas), Ictus é um murro no estômago. Um forte murro no estômago. Para consciencializarmos o que os noticiários veiculam – e nós, como quem não quer a coisa, até acabamos por achar normal.
            E nada disso é, realmente, normal!

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 39, 03-04-2014, p. 6.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Resmalhar

           ‒ E como era, avó? Esse lobisomem vinha assim, pé ante pé, como um resmalhar de cobra no pasto? E trazia infusa à cabeça como tu quando vais às bicas? E trazia na infusa o quê, avó? Água benta para jogar sobre as pessoas ou eras tu quem lhe jogava a água benta em cima, para que lhe saísse o diabo do corpo e não atazanasse mais ninguém, era?
            Pelo telhado de canas – um primor de trabalho que eu vira meu pai fazer mais os vizinhos, nos tempos da grande entreajuda – esgueirava-se um ciciar de aragem fria… Fazia-me forte, cheio de curiosidade, que não queria saber de papões, o lobisomem é que contava, nas noites de lua cheia, diziam… Ceara papas de milho com duas postinhas de sardinha de salmoira e até bebera uns golitos de café, nada que me fizesse passar o sono, me desse cabo do estômago ou lhe desse volta ou fosse como apanhar na barriga um murro seco.
            Minha mãe é que ficava mais afeleada com essas curiosidades minhas:
            ‒ O moço pequeno é melhor é ir prá cama, que essas histórias, minha mãe, não lhe dão a volta ao estômago, mas ainda lhe avareiam a cabeça. É melhor: vamos prá deita!
            E eu posso jurar que não rezava nunca o padre-nosso certinho, porque a imagem do lobisomem me atazanava mesmo!...
      
            Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 183, Abril de 2014, p. 10.

 

A vida no campo – ter relógio ou… ter tempo!

           Tive ensejo de visitar a exposição temporária que, no Museu Nacional de Arte Antiga, nos veio mostrar, de 3 de Dezembro até daqui a dias, a paisagem nórdica através do olhar dos pintores Rubens, Brueghel e Lorrain, quadros que fazem parte do espólio do Museu do Prado, de Madrid.
            Congratulo-me, obviamente, com a iniciativa, na medida em que constituiu mais uma forma de chamar a atenção do Povo para a importância que a Arte acaba por desempenhar na vida, mau grado as tropelias dos ‘governantes’.
            Chamou-me, de modo especial, a atenção a apresentação da sala 2, «A vida no campo», onde se explica que, após a assinatura, a 9 de Abril de 1609, da trégua de 12 anos, os arquiduques Alberto e Isabel Clara Eugénia, com vista a consolidarem a reunificação, deliberaram utilizar «a pintura como instrumento de propaganda»: «Sendo fundamental para a reconstrução dos Países Baixos a colaboração do campesinato, os arquiduques consideraram que a representação da vida nos campos, no seu ambiente natural, era a temática mais apropriada à pintura».
            Estava-se nos primórdios do século XVII, ou seja, há 400 anos. E pensei com os meus botões: será que os actuais «governantes» leram? Será que se aperceberam da importância real que tem, na vida do Povo, a existência de um campesinato forte, bem apoiado, feliz, dotado por perto das infra-estruturas necessárias a esse bem-estar?
            Não, em Portugal não leram; em Portugal, se o sabem, não o conseguem facultar nem – ao que parece – se preocupam muito com isso! As reclamações diárias contra o encerramento de serviços públicos, na perspectiva imediata de que não são rendíveis, antojam-se como evidente prova em contrário. Desertifica-se o interior; enxameiam-se as cidades de gente por completo desenraizada; olha-se para o estrangeiro na mira de se alcançar lá o que por estas bandas se recusa, em nome do feroz código do deve e do haver.
            E os quadros fizeram-me lembrar o Powerpoint que circula pela Internet, a que se deu o nome de «Tuaregue traduzido». Diz-se que se trata da entrevista feita por Victor-M. Amela a Moussa Ag Assarid, tuaregue saariano. Palavra puxa palavra, o jornalista catalão a deixar-se enlevar, admirado, pela sabedoria de quem passa os dias no silêncio avassalador de uma Natureza original: «Quando se está sozinho naquele silêncio, até se consegue ouvir o bater do coração», garante o tuaregue. E acrescenta, para realçar as diferenças: «Vocês têm relógio; nós temos tempo!».

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 636, 01-04-2014, p. 11.

 

quarta-feira, 2 de abril de 2014

«Matei um general!»

Nota a propósito de ‘Ictus’, de Miguel Graça,
em cena no Mirita Casimiro, em Cascais

«Quero, posso e mando!»
            ‒ Então, mas isso não é por concurso?
            ‒ Claro que é; mas, sabes, quem manda nos concursos somos nós.
            Andou pela Internet a informação – supostamente verdadeira – de que, não há muito tempo, um monarca assistira, impávido e sereno, deliciado, à cena que perpetrara: a matilha de cães a estraçalharem vivo o seu adversário político. Como se diz que se passava nos anfiteatros romanos, há dois mil anos atrás, perante o gáudio da corte imperial.
            Em entrevista a Daniel Oliveira, no «Alta Definição» (SIC, 22 de Março) Henrique Cyberman fez referência à tristeza de um pai árabe por o filho, agora com 15 anos, não ter acedido a ser mártir, oferecendo-se para livremente morrer pela sua religião: «Foi a maior frustração da minha vida!». E comentava Henrique: para o compreendermos temos de tirar os nossos «óculos ocidentais».
            Comenta-se, no momento em que redijo esta nota (domingo, 30 de Março), que o misterioso desaparecimento do avião malaio pode ter sido provocado para matar algumas pessoas – e, com elas, outras mais de duzentas. Porque assim tinha de ser.
            Ocorreram-me de imediato estas quatro situações depois de ter assistido à estreia, no Dia Mundial do Teatro, 27 de Março, da peça de Miguel Graça, «Ictus», no Teatro Municipal Mirita Casimiro.
            Ictus é um murro no estômago. Um forte murro no estômago. Para consciencializarmos o que os noticiários veiculam – e nós, como quem não quer a coisa, até acabamos por achar normal. E nada disso é, realmente, normal!

A via sacra da humanidade
            Perguntara-me o Pedrosa Cardoso porque vinha na capa do livro (apresentado no dia anterior) um peixe estilizado e se, por isso, o tema era religioso. Ιχθύϛ («ictús») é grego e significa «peixe», de facto, e era o sinal secreto pelo qual os cristãos dos primeiros tempos se reconheciam, porque as letras identificavam Cristo. Não lera ainda o livro, não vira a peça, sabia que era ‘violenta’, porque Carlos Avilez mo confidenciara dias antes. Na explicação que dá para a ter escrito, o autor confessa que, para imaginar o futuro do Ocidente, achou por bem voltar «aos momentos decisivos do início do Cristianismo e às várias figuras que o compuseram, principalmente Paulo: primeiro, caçador de cristãos, depois, pedra angular da teologia cristã». E aí se entrelaçam com a história bíblica as histórias violentas que na cena faz passar. Nada vi de referência explicativa à imagem, mas – agora – concordo com Pedrosa Cardoso: ainda que o autor nada expressamente explicite, ictus tem mesmo elevada conotação bíblica!...
            Sabemos quase no final, quando perante nós se desnudam e tapam com as mãos «suas vergonhas», que é de Adão e Eva que se trata e que o General se identifica com Deus e confessa «acabei de vos expulsar do paraíso», quando antes afirmara, peremptório: «A vossa descendência são irmãos que se matam entre si», como Caim matou Abel, acrescento eu – e não só. Com uma diferença, porém, que desde já importa focar quanto à suposta identificação: esse General, o poder político-económico omnipotente, não olha a meios para atingir os fins e tudo se tem de processar de acordo com os seus desígnios e aí está o caçador para fielmente executar a missão. E não pude deixar de evocar, nesse momento, os depoimentos que, ao sábado, nas últimas semanas, temos estado a ouvir na Antena 1, no programa «No limite da dor», de Ana Aranha, em que presos políticos do regime salazarista miudamente contam as torturas por que os fizeram passar. Não matavam – como acontece em Ictus, donde, porém, a tortura não está ausente – mas essa morte psicológica era mil vezes pior!
            E a diferença (volto atrás) é que, de um modo geral, não imaginamos Deus em vestes de tirano: deixa-nos Ele a liberdade de agir, a liberdade de sermos nós os tiranos dos outros, mesmo que, na peça, por engenhoso trocadilho, «God» possa transformar-se em «dog» (que até, em determinado momento, fala como quem ininterruptamente está a ladrar, excelente interpretação de David Esteves) através de um DNA que, ao invés, também pode ser a copulativa AND («e»).

O Evangelho… segundo Miguel Graça!
            Demonstra Miguel Graça bom conhecimento das Escrituras, apresentando-nos, num só acto e em quadros, a via sacra da Humanidade.
            Parece que o soldado poderia chamar-se Pedro, a proclamar que «a Autoridade é a verdade», numa obediência cega que o leva a matar-se, porque o General assim o determina. Passa-se pelo «deserto», como Cristo por lá se preparou durante 40 dias. Há a «mãe». Há «Lázaro», o homem que Jesus ressuscitou. «E a água transforma-se em vinho» evoca as bodas de Caná, o primeiro milagre de Cristo. «Na montanha» não há as bem-aventuranças, mas o General não vai resistir a fazer uma confissão da maior relevância também:
            «Somos todos marionetas, Caçador. E há marionetas que comandam outras marionetas, que por sua vez comandam mais marionetas que continuam a comandar outras. Todo o universo é um abismo sem fim onde há sempre alguém a movimentar os nossos gestos».
            Que libelo maior se poderá esperar, quando o sentimos dia a dia sob o olhar ferozmente implacável das… agências de ranking?
            Também se fala dos Magos (esteticamente muito bem sugerida a tempestade de neve, em breve apontamento lá ao fundo!) e se reproduz, em hebraico, o grito de Jesus, já crucificado: Eli. Eli, lama sabactani?, «Ó Deus, ó Deus, porque me abandonaste?» E aí «o fogo consome o Autor», porque «o teatro está a arder» (outro sagaz apontamento cenográfico de Fernando Alvarez). No monte Gólgota foi crucificado Cristo – e esse é, aqui, o escritório do General, no enorme vitupério contra a humanidade que ele detesta – e se consigna outra oposição profunda entre o Ódio e o Amor.
            A mensagem não é, pois, nada auspiciosa. As personagens aniquilam-se, perdem a noção do espaço e do tempo… Uma excepção: Magdala. Recorda-nos, claro, Madalena, a mulher que Jesus amou e que, em Ictus, acaba, como actriz, por vestir a ternura da Samaritana, que o mesmo Senhor (reza o fado) veio encontrar «junto à fonte de Jacob». A mulher tem sede, mas… «o poço está cheio de moedas» (tinha de ser!). O diálogo entre a ‘actriz e ‘ele’, ambos serenamente sentados no «jardim das três árvores» constitui, sem dúvida, um dos momentos mais ternos (se é que os pode haver…) de toda a peça. «Há sítios onde nos podemos esconder, mas não há nenhum para onde possamos fugir»… Vale a pena relembrar:
            “‒ Talvez um dia seja eu aí sentada e um homem chegue cansado e se sente nesse banco ao meu lado e me confunda com uma velha e me conte a história que anseia por contar. Talvez eu um dia ouça a sua história.
            ‒ Eu ia gostar.
            ‒ Eu também.”
            Para isto serve o teatro, que também faz parte da peça:
            «É isso o teatro. Quem és tu? És a voz da Nova República, és os pensamentos que ninguém consegue pensar e as palavras que ninguém consegue dizer. […] Um dia um General esqueceu-se que é um instrumento de guerra e decidiu entregar este teatro nas tuas mãos».
            Pois.

O espectáculo
            Do texto se farão, pelos meses fora, estou certo, análises profundas, tão denso e fecundo ele é, na sua aparente pequenez (tem o livrinho umas 70 páginas só). Não me admiraria que o ‘queimassem’ – como, de resto, se pressagia na peça. Quem, decerto, muito queimou as pestanas para o erguer como espectáculo foi o encenador Carlos Avilez e toda a sua equipa. Já se referiu Fernando Alvarez, a quem também se devem os ajustados figurinos; Manuel Amorim dirigiu a montagem, em que Rui Casares colaborou. Bem oportuno o lúgubre ascetismo do cenário, sempre o mesmo em todos os quadros, porque… é um lugar e não é lugar nenhum! E as três árvores mais fazem lembrar as cruzes do Gólgota do que mui verdejante jardim – que não há!
            Se em todos os espectáculos de Carlos Avilez se prezam os silêncios, a contenção do gesto e do movimento, aqui tudo deveria ser pesado ao milímetro, para que a Palavra florescesse e se impusesse sem obstáculos. Até as mortes ficam estilizadas num leve descair de cabeça. Sugere-se – e o espectador não carece de mais para cabalmente o compreender. Andaram, pois, muito bem, extraordinariamente contidos, todos os actores, que se metamorfoseiam: David Esteves (Soldado/Cão), Fernando Luís (o General), Gonçalo Romão (Barman/Fugitivo/Louco), Pedro Caeiro (Autor), Raquel Oliveira (Actriz), Sérgio Silva (Ele), Teresa Côrte-Real (Ela), Tobias Monteiro (Caçador).
            Saímos para o relento da noite. O pesadelo, porém, não ficou por dentro daquelas quatro paredes, no som hirto e seco dos disparos. O pesadelo vai connosco, mais conscientes agora – da importância que tem, por exemplo, conversar num jardim com alguém, mesmo desconhecido, que nos queira contar a sua história. E nós vamos gostar de a ouvir!

Publicado em Cyberjornal, edição de 1-04-2014: