Nota a propósito de ‘Ictus’,
de Miguel Graça,
em cena no Mirita Casimiro, em
Cascais
«Quero, posso e mando!»
‒
Então, mas isso não é por concurso?
‒
Claro que é; mas, sabes, quem manda nos concursos somos nós.
Andou
pela Internet a informação – supostamente
verdadeira – de que, não há muito tempo, um monarca assistira, impávido e
sereno, deliciado, à cena que perpetrara: a matilha de cães a estraçalharem
vivo o seu adversário político. Como se diz que se passava nos anfiteatros romanos,
há dois mil anos atrás, perante o gáudio da corte imperial.
Em
entrevista a Daniel Oliveira, no «Alta Definição»
(SIC, 22 de Março) Henrique Cyberman
fez referência à tristeza de um pai árabe por o filho, agora com 15 anos, não
ter acedido a ser mártir, oferecendo-se para livremente morrer pela sua
religião: «Foi a maior frustração da minha vida!». E comentava Henrique: para o
compreendermos temos de tirar os nossos «óculos ocidentais».
Comenta-se,
no momento em que redijo esta nota (domingo, 30 de Março), que o misterioso
desaparecimento do avião malaio pode ter sido provocado para matar algumas
pessoas – e, com elas, outras mais de duzentas. Porque assim tinha de ser.
Ocorreram-me
de imediato estas quatro situações depois de ter assistido à estreia, no Dia
Mundial do Teatro, 27 de Março, da peça de Miguel Graça, «Ictus», no Teatro
Municipal Mirita Casimiro.
Ictus é um murro no estômago. Um forte murro no
estômago. Para consciencializarmos o que os noticiários veiculam – e nós, como
quem não quer a coisa, até acabamos por achar normal. E nada disso é,
realmente, normal!
A via sacra da humanidade
Perguntara-me
o Pedrosa Cardoso porque vinha na capa do livro (apresentado no dia anterior)
um peixe estilizado e se, por isso, o tema era religioso. Ιχθύϛ («ictús») é
grego e significa «peixe», de facto, e era o sinal secreto pelo qual os
cristãos dos primeiros tempos se reconheciam, porque as letras identificavam
Cristo. Não lera ainda o livro, não vira a peça, sabia que era ‘violenta’,
porque Carlos Avilez mo confidenciara dias antes. Na explicação que dá para a
ter escrito, o autor confessa que, para imaginar o futuro do Ocidente, achou
por bem voltar «aos momentos decisivos do início do Cristianismo e às várias
figuras que o compuseram, principalmente Paulo: primeiro, caçador de cristãos,
depois, pedra angular da teologia cristã». E aí se entrelaçam com a história
bíblica as histórias violentas que na cena faz passar. Nada vi de referência
explicativa à imagem, mas – agora – concordo com Pedrosa Cardoso: ainda que o
autor nada expressamente explicite, ictus tem mesmo elevada conotação
bíblica!...
Sabemos
quase no final, quando perante nós se desnudam e tapam com as mãos «suas
vergonhas», que é de Adão e Eva que se trata e que o General se identifica com
Deus e confessa «acabei de vos expulsar do paraíso», quando antes afirmara,
peremptório: «A vossa descendência são irmãos que se matam entre si», como Caim
matou Abel, acrescento eu – e não só. Com uma diferença, porém, que desde já
importa focar quanto à suposta identificação: esse General, o poder político-económico
omnipotente, não olha a meios para atingir os fins e tudo se tem de processar
de acordo com os seus desígnios e aí está o caçador para fielmente executar a
missão. E não pude deixar de evocar, nesse momento, os depoimentos que, ao
sábado, nas últimas semanas, temos estado a ouvir na Antena 1, no programa «No
limite da dor», de Ana Aranha, em que presos políticos do regime salazarista
miudamente contam as torturas por que os fizeram passar. Não matavam – como
acontece em Ictus, donde, porém, a tortura não está ausente – mas essa
morte psicológica era mil vezes pior!
E
a diferença (volto atrás) é que, de um modo geral, não imaginamos Deus em
vestes de tirano: deixa-nos Ele a liberdade de agir, a liberdade de sermos nós
os tiranos dos outros, mesmo que, na peça, por engenhoso trocadilho, «God»
possa transformar-se em «dog» (que até, em determinado momento, fala como quem
ininterruptamente está a ladrar, excelente interpretação de David Esteves)
através de um DNA que, ao invés, também pode ser a copulativa AND («e»).
O Evangelho… segundo Miguel
Graça!
Demonstra
Miguel Graça bom conhecimento das Escrituras, apresentando-nos, num só acto e
em quadros, a via sacra da Humanidade.
Parece
que o soldado poderia chamar-se Pedro, a proclamar que «a Autoridade é a
verdade», numa obediência cega que o leva a matar-se, porque o General assim o
determina. Passa-se pelo «deserto», como Cristo por lá se preparou durante 40
dias. Há a «mãe». Há «Lázaro», o homem que Jesus ressuscitou. «E a água transforma-se
em vinho» evoca as bodas de Caná, o primeiro milagre de Cristo. «Na montanha»
não há as bem-aventuranças, mas o General não vai resistir a fazer uma confissão
da maior relevância também:
«Somos
todos marionetas, Caçador. E há marionetas que comandam outras marionetas, que
por sua vez comandam mais marionetas que continuam a comandar outras. Todo o
universo é um abismo sem fim onde há sempre alguém a movimentar os nossos
gestos».
Que
libelo maior se poderá esperar, quando o sentimos dia a dia sob o olhar
ferozmente implacável das… agências de ranking?
Também se fala dos Magos (esteticamente muito bem
sugerida a tempestade de neve, em breve apontamento lá ao fundo!) e se
reproduz, em hebraico, o grito de Jesus, já crucificado: Eli. Eli, lama
sabactani?, «Ó Deus, ó Deus, porque me abandonaste?» E aí «o fogo consome o
Autor», porque «o teatro está a arder» (outro sagaz apontamento cenográfico de
Fernando Alvarez). No monte Gólgota foi crucificado Cristo – e esse é, aqui, o
escritório do General, no enorme vitupério contra a humanidade que ele detesta
– e se consigna outra oposição profunda entre o Ódio e o Amor.
A
mensagem não é, pois, nada auspiciosa. As personagens aniquilam-se, perdem a
noção do espaço e do tempo… Uma excepção: Magdala. Recorda-nos, claro,
Madalena, a mulher que Jesus amou e que, em Ictus, acaba, como actriz,
por vestir a ternura da Samaritana, que o mesmo Senhor (reza o fado) veio
encontrar «junto à fonte de Jacob». A mulher tem sede, mas… «o poço está cheio
de moedas» (tinha de ser!). O diálogo entre a ‘actriz e ‘ele’, ambos
serenamente sentados no «jardim das três árvores» constitui, sem dúvida, um dos
momentos mais ternos (se é que os pode haver…) de toda a peça. «Há sítios onde
nos podemos esconder, mas não há nenhum para onde possamos fugir»… Vale a pena
relembrar:
“‒
Talvez um dia seja eu aí sentada e um homem chegue cansado e se sente nesse
banco ao meu lado e me confunda com uma velha e me conte a história que anseia
por contar. Talvez eu um dia ouça a sua história.
‒
Eu ia gostar.
‒
Eu também.”
Para isto serve o teatro, que também faz parte da
peça:
«É
isso o teatro. Quem és tu? És a voz da Nova República, és os pensamentos que
ninguém consegue pensar e as palavras que ninguém consegue dizer. […] Um dia um
General esqueceu-se que é um instrumento de guerra e decidiu entregar este teatro
nas tuas mãos».
Pois.
O espectáculo
Do texto se farão, pelos meses fora, estou certo, análises
profundas, tão denso e fecundo ele é, na sua aparente pequenez (tem o livrinho
umas 70 páginas só). Não me admiraria que o ‘queimassem’ – como, de resto, se
pressagia na peça. Quem, decerto, muito queimou as pestanas para o erguer como
espectáculo foi o encenador Carlos Avilez e toda a sua equipa. Já se referiu
Fernando Alvarez, a quem também se devem os ajustados figurinos; Manuel Amorim dirigiu
a montagem, em que Rui Casares colaborou. Bem oportuno o lúgubre ascetismo do
cenário, sempre o mesmo em todos os quadros, porque… é um lugar e não é lugar
nenhum! E as três árvores mais fazem lembrar as cruzes do Gólgota do que mui
verdejante jardim – que não há!
Se
em todos os espectáculos de Carlos Avilez se prezam os silêncios, a contenção
do gesto e do movimento, aqui tudo deveria ser pesado ao milímetro, para que a
Palavra florescesse e se impusesse sem obstáculos. Até as mortes ficam estilizadas
num leve descair de cabeça. Sugere-se – e o espectador não carece de mais para
cabalmente o compreender. Andaram, pois, muito bem, extraordinariamente
contidos, todos os actores, que se metamorfoseiam: David Esteves (Soldado/Cão),
Fernando Luís (o General), Gonçalo Romão (Barman/Fugitivo/Louco), Pedro Caeiro
(Autor), Raquel Oliveira (Actriz), Sérgio Silva (Ele), Teresa Côrte-Real (Ela),
Tobias Monteiro (Caçador).
Saímos
para o relento da noite. O pesadelo, porém, não ficou por dentro daquelas quatro
paredes, no som hirto e seco dos disparos. O pesadelo vai connosco, mais conscientes
agora – da importância que tem, por exemplo, conversar num jardim com alguém,
mesmo desconhecido, que nos queira contar a sua história. E nós vamos gostar de
a ouvir!
Publicado em Cyberjornal,
edição de 1-04-2014: