Passou na RTP 1, na quinta-feira, 16,
«Uma Noite no Parque Mayer», homenagem de Filipe La Féria à revista à portuguesa.
Ocasião houve, portanto, para recordar a rábula celebrizada por Raul Solnado,
«A história da minha ida à guerra de 1908». Tendo-se posto a hipótese de
comprarem, para o efeito, uma cavalgadura, que só se vendiam «com as carroças e
com as moscas», a mãe apressou-se a recusar: “O meu filho não vai agora
para a guerra encher a guerra de moscas!… O meu filho vai a pé mas vai limpo!”.
A crónica sobre a mosca
Tendo publicado uma crónica sobre a
mosca, recebi os mais diversos comentários, uns de repulsa perante o nojento
animal, portador privilegiado de doenças infecciosas, outros de admiração por
saberem que, afinal, também a mosca consubstanciava em si inúmeros saberes: a
espantosa velocidade a que movimentava as asas; a incomensurável capacidade de
se reproduzir; a excepcional visão permitida pela extraordinária ‘arquitectura’
dos seus olhos, que deixam a léguas de distância o olhar humano, pois cada olho
dispõe de… 4000 (quatro mil!) lentes hexagonais!…
Mosca-assassina ou mosca‑predadora (Asilidae sp., de seu
nome científico). O registo foi feito em Canidelo (Vila do Conde) a 21 de Julho
de 2017, por Fernando Ferreira.
E doutras características não falei.
Por exemplo, torna-se difícil apanhar uma mosca, porque dispõe de
antenas-barómetros, que actuam por mecanismos sensíveis à pressão. Para se
manter no tecto de cabeça para baixo, segrega automaticamente, na parte
membranosa das suas asas, uma pequeníssima quantidade de um líquido viscoso,
que lhe serve de cola. Também não referi que, se as pusermos debaixo de água,
dificilmente se afogam, porque têm o corpo, as asas e as patas revestidos de
uma rede serrada de pelos, e é o ar que neles está que lhes permite sobreviver
durante muito tempo.
Enfim, o que mais se sabe comummente é
que são ‘meninas’ capazes de inocular nos humanos os germes do tifo, das febres
paratifóides, da cólera, da disenteria, da lepra, da poliomielite… Na barriga
de uma mosca, o vírus da pólio pode conservar a sua capacidade de actuar durante
48 horas!…
Estaremos também todos recordados de
que foram as moscas os agentes da 4ª praga do Egipto, conforme se lê no livro
do Êxodo (VIII, 26):
«E vieram moscas molestíssimas sobre as
casas do Faraó e dos seus servos e sobre toda a terra do Egipto; e a terra foi
devastada por tais moscas».
Uma campanha, em Cascais, contra moscas e mosquitos
Se, em circunstâncias normais, é grande
o incómodo provocado pela abundância de moscas e mosquitos, que dizer de uma
zona turística?
Publicara o Governo Português, a 22 de
Abril de 1929, a Portaria 6114 (Diário do Governo, I série, nº 92, p.
1028-1029), assinada pelo ministro do Interior, José Vicente de Freitas, com o
fim de se incrementarem por todo o País medidas sanitárias contra as moscas e
mosquitos. Nela constavam, bem explícitas, minuciosas instruções a pôr em
prática – por exemplo, «os açucareiros a adoptar deverão ser os de modelo
estudado pela Repartição de Turismo» – designadamente para evitar as poças de
água.
Não teve, todavia, os imediatos efeitos
pretendidos e, por isso, após a execução de medidas avulso, como a fiscalização
de cocheiras, capoeiras, fossas, estrumeiras, etc., decidiu-se a Câmara
Municipal de Cascais, em 1932, de mãos dadas com a Comissão de Iniciativa e
Turismo, meter ombros a uma campanha devidamente organizada, que incluía, desde
logo, a afixação de cartazes alusivos por todas as povoações do concelho.
Este primeiro impulso teve
extraordinário eco, de tal modo que, em Coimbra, Bissaia Barreto «fez publicar
na íntegra os ensinamentos que os cartazes continham, no jornal de propaganda
contra a tuberculose».
Retirei este dado da apresentação «Um
pouco de história», com que o então capitão José Roberto Raposo Pessoa abre o
livro Moscas e Mosquitos – Campanha da Câmara Municipal de Cascais, edição
da Junta de Turismo de Cascais, datada de 1939.
Tem esta publicação (de quase 250
páginas) prefácio do Prof. Ricardo Jorge, que começa assim:
«Vem-me à ideia a frase mordente de
Garrett – Em paz e às moscas. Há nela alguma coisa de contraditório – ninguém
pode estar em paz, se está às moscas. Doméstica apelidam por nosso mal a esta
inimiga íntima que nos fisga a pele pela casa toda num ímpeto insaciável de
mortificação que pela sua teimosia nos arrelia e enfurece». Louva, por isso, a
«benemérita iniciativa, graças ao aporfiado apostolado do seu médico sanitário,
o dr. Marques da Mata e do seu presidente da Câmara, coronel Carlos de Passos
Pereira de Castro».
Apresentou o Dr. Marques da Mata um
relatório à Comissão Municipal de Higiene e foi aprovado o seu plano de luta
contra as moscas e mosquitos no ano de 1938.
Narra o volume – excelente repositório
das medidas adoptadas – o enorme eco que a iniciativa despertou nas emissoras
(mormente Emissora Nacional e Rádio Clube Português); a propaganda que se fez
nas escolas e, para nosso regozijo, os ecos que teve no plano humorístico quer
na rádio, no teatro, na pintura e até – pasme-se! – José de Oliveira Cosme
escreveu o Fado Moscatel, que tem como um dos estribilhos:
Mosquitos
a assobiar
Ninguém
ouvirá jamais!
Já
podemos ressonar!
Viva
a Câm'ra de Cascais!
José d'Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 22-06-2022:https://duaslinhas.pt/2022/06/encher-a-guerra-de-moscas/
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Comentário de Fernando Ferreira (23-06-2002):
As moscas também são muito importantes para o nosso
ecossistema...😉
Temos moscas predadoras e parasitóides (que ajudam a
controlar outras espécies de insetos e até mesmo as próprias moscas), moscas
detritívoras (ajudam na limpeza dos nossos terrenos, animais mortos, dejetos,
etc...), moscas polinizadoras (muito importantes, por exemplo, sem elas não
tínhamos chocolate (cacau), etc...
António Keating (entomólogo forense) diz: "As moscas
limpam o mundo. Bastam as moscas para limpar a carcaça de um elefante".