sábado, 28 de fevereiro de 2015

Como é que vou safar-me desta?

Anjinhos
            Vinha bem embrulhada em plástico, a realçar-lhe o carmesim da capa. Preso com elástico, na quarta capa, um pendente de porcelana branca ostentava a legenda byfly e, na outra face, duas asas. Retirado, mostrava como que numa janela dois anjinhos tocadores. O tema do volume lá estava, numa outra janela recortada, assim que se abria: ANJOS. E escrevera-se: «um anjo caiu para dentro das páginas de um segredo».
            Armara-se o sarilho: como é que vou safar-me desta, agora que me preparava para – folheando duas revistas bem diferentes, dirigidas ambas por grandes amigos meus – falar de cultura e temáticas afins, com uns anjinhos, ainda que músicos, pelo meio?
            E comecei a folhear este nº 53 da Egoísta. Folhas grossas, das mais diversas cores, textos em letras de grandes módulos. Ou não. E ilustrações que nos espantam. E fotos. Não será possível ver sem emoção – digo bem, emoção e nada mais! – a beleza da sequência em que, sob o título «Poussière d’étoiles», como se das estrelas caísse uma poeira ténue e linda, Ludovic Florent retratou, em delicadeza suma, esse corpo quase angélico de uma bailarina. A fotografia, como a escrita, como os anjos – a guindarem-nos acima de uma realidade em que vivemos mas que necessidade hemos de sublimar.
            Que é de Natal esta Egoísta. E, por isso, o Director, Assis Ferreira, no editorial, evoca o que aprendeu de sua mãe (ainda me lembro dela, da sua serena ternura, meu caro Mário!), o seu Anjo-da-Guarda. Que «do Natal, sobrevivem os embrulhos de presentes, a euforia dos lojistas, a reunião das famílias, as memórias do passado, esparsas evocações humanistas…»; mas – importa retê-lo – «sobrevivem os Anjos, os nossos Anjos-da-Guarda que, por desígnio divino, não têm nome de baptismo», e são eles que, afinal, insistem em lembrar que, afinal, o Natal pode e deve ser algo mais: «É o riso das crianças, é a prece de viver, é a elevação da alma, é a compaixão do próximo, é o apelo da paz, é o sorriso a quem se ama!». Isso aprendeu do seu Anjo-da-Guarda. Isso importava que todos recordássemos nos «Natais de todos os dias».
            E pronto! Não resisto, porém, a folhear de novo. E a fixar-me demoradamente agora nas diáfanas roupagens brancas esvoaçantes da menina que Zena Holloway fotografou. Uns poetas estes fotógrafos, a maravilhar-nos!
            Não sei se minha neta mais velha quererá usar o pendente de porcelana branca com a frase by fly, «pelo voo». Tentarei, porém, nessa linha de pensamento, ensinar-lhe também que diariamente é preciso abrir asas e voar!...

A estrangeirada D. Marionela e a miopia da governação
            Mais complicado será passear-me agora por entre a beleza destas manequins a envergarem o que de melhor os costureiros mundiais lograram confeccionar quer para realçar a beleza dos humanos quer para, através dela, mais alegremente podermos saborear o quotidiano. Afinal, Marionela Gusmão, à sua maneira, traz, na Moda & Moda de Dezembro, a mesma mensagem de Assis Ferreira – caminhamos entre amigos! – há que emprestar ao dia-a-dia outra dimensão!
            Temos ali a moda na sua expressão mais actual e radiosa; temos, porém, uma outra faceta a que nem sempre se dá valor: a Arte! Até a entrevista com o conhecido oftalmologista de Coimbra, António Travassos, tem Arte pelo meio, diga-se desde já! Quem resistiria, por exemplo, à sedução daquela joalharia que nos mostra «flores de todo o ano»? Ou à suculenta reportagem, ricamente ilustrada, acerca da obra artística da ‘imortal’ Niki de Saint Phalle, que esteve patente em Paris, no Grand Palais? Sala onde se mostrou também, até ao passado dia 18 de Janeiro, uma «exposição exaustiva» da obra do japonês Katsushika Hokusai (1769-1849), instantâneos de uma serenidade bem oriental. Aliás, pelo Oriente nos quedamos com o texto, mui ilustrado, sobre a época de ouro da dinastia Ming (exposição no British Museum)… E «as origens da Grécia» (p. 56-60) – exposição no Musée d’Archéologie Nationale – são-nos mostradas «entre sonho e arqueologia», com imagens de objectos arqueológicos e de criações actuais neles inspiradas. Duas personalidades mereceram também a atenção de Marionela: Óscar de la Renta, «um génio da moda» que faleceu no ano passado (p. 104-106) e por quem nutria grande amizade e admiração; e Júlio Quaresma (p. 142-149), que teve, em Cascais, medalha de mérito municipal em 2003 e foi o autor do vencedor (mas defunto) Plano de Pormenor da Praça de Touros de Cascais: honrou-se-lhe o mérito, chumbou-se-lhe o plano depois!
            Mas, D. Marionela, a menina só fala de exposições nos museus estrangeiros? Não há nada de importante nos museus portugueses? Ah! Já sei. Há, mas iníqua lei da míope governação portuguesa não disponibiliza gratuitamente imagens dessas iniciativas, como prazenteiramente o fazem os museus estrangeiros. Queres imagens? pagas com língua de palmo! Por isso, é preferível omitir. Nada se passa de importante nos museus portugueses!
            Espere. Leu até ao fim? Sabia que era na cauda que estava o veneno, hein? Pronto, se leu, afinal já também me safei desta!...
             
                                     José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 81, 25-02-2015, p. 6.
 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Experiência em voluntariado é trunfo a usar!

            Acabo de receber o currículo de uma mestranda, onde, mui acertadamente, se incluem na experiência profissional as acções desempenhadas em regime de voluntariado.
            Por coincidência, recebera não há muito, da Agência Noticiosa Salesiana, a informação de que a Confederação dos Centros Juvenis Dom Bosco, da Espanha, apresentara, a 31 de Janeiro, o projecto “Reconoce” (Reconhece), uma iniciativa que visa chamar a atenção para as condições de trabalho dos jovens. Refere-se, de modo particular, a sua dificuldade de acesso a um trabalho digno e de qualidade, acompanhada pela preocupante taxa de desemprego juvenil, superior a 50%, em Espanha.
            Consciente do problema, a Confederação Dom Bosco começou por sublinhar quanto o trabalho feito por jovens voluntários, além de melhorar a vida de outros jovens e crianças, lhes proporciona também experiências que lhes aumentam as possibilidades de emprego.
            Vão nesse sentido as conclusões do estudo “A situação do voluntariado juvenil perante o emprego: habilitações e potencialidades de emprego”, ora divulgado em Madrid. Essa pesquisa, da iniciativa da Confederação dos Centros Juvenis Dom Bosco, da Federação Didania e dos Escoteiros “ASDE” da Espanha, foi realizada pela consultoria especializada “Voluntariado y Estrategia”, e faz parte do projeto “Reconoce”, que tem como objectivo valorizar justamente a experiência do voluntariado nas associações juvenis e no âmbito das ocupações de tempos livres e melhorar as potencialidades ocupacionais dos jovens.
            A rede “Reconoce” – www.reconoce.org – tem, por isso, o apoio do Instituto para a Juventude, de Espanha (Injuve), entidade que manifestou interesse em reconhecer o trabalho dos voluntários no contexto da educação não-formal, assim como do Conselho da Juventude espanhol.

                                                                                                          José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 20-02-2015:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1293:experiencia-em-voluntariado-e-trunfo-a-usar&catid=121:saude-e-solidariedade&Itemid=85

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

As nossas fontes revisitadas

             Ainda me lembro: veio o senhor Governador Civil, a banda tocou à sua chegada e, quando abriu a torneira, estralejaram foguetes e bateram-se palmas. A aldeia passou a ter água ali à mão de semear, sem necessidade de ir além abaixo, ao pé da ribeira, tirar a água do poço. A cena passou-se no interior do concelho, nos princípios da década de 50, mas estou convicto que muitas idênticas houve, então, por todo o País.
            E o chafariz, singelo, em ferro forjado, ou mais imponente, de cantaria, com torneira para encher cântaros e infusas, donde escorria água para, do outro lado, o bebedouro dos animais e, daí, para os tanques de passar e de lavar do lavadouro vizinho – era o único monumento de que a aldeia doravante se poderia orgulhar.
            S. Brás de Alportel teve fontes, que de abundante nível freático se abastecem. As bicas dos Vilarinhos representam, porventura, o exemplar mais significativo. E se toda a atenção é pouca para que esse nível – devido, por exemplo, a uma urbanização excessiva, a acarretar impermeabilização do solo – não venha a sofrer graves prejuízos, as iniciativas levadas a cabo pela autarquia no sentido de renovar e alindar essas fontes, enquadrando-as devidamente em aconchegados recantos de lazer são, pois, de muito louvar. Importa, porém, que continue a inocular-se na população o hábito de a eles se achegar e de, efectivamente, os usar, para que sejam, de facto, motivo de usufruto e regalo. Não será mau, nomeadamente, que se proporcione às crianças das escolas a ida à Fonte Férrea ou à Fonte Velha (a que mais recentemente se renovou), pois assim se ganham costumes.
            E se a Fonte Velha recebeu duas estrofes de Bernardo de Passos, a da Fonte da Tareja ostenta uma outra, do mesmo poeta alportelense:
 
                                               Não sei se cantam, se choram
                                               As fontes, correndo ao mar;
                                               Se canto, sinto que cantam;
                                               Mas, se choro, oiço-as chorar!

                                                                                              José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz nº 219, 20-02-2015, p. 21.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Na galeria do Casino, Artis 2015 recorda artistas premiados

             Depois de o salão de exposições da Junta de Turismo da Costa do Estoril, nas Arcadas do Parque, ter fechado as portas às iniciativas culturais, porque os seus responsáveis – porventura formados em escolas turísticas do passado… – não se haverem consciencializado de que Arte continua a ser um bom chamariz turístico, acabaram também os incentivos aos artistas nacionais que anualmente concorriam aos salões da Primavera e do Outono. Era sempre um bom pretexto para se falar da Costa do Estoril e de se louvar a clarividência dos seus mentores turísticos.
            Fechadas essas portas, outras mui oportunamente se abriram e quem esteve à frente dos destinos da galeria de arte do Casino Estoril – com longo e mui reputado palmarés no horizonte artístico nacional – agarrou de imediato na ideia que os luminares dos baixos do Parque haviam deitado janela fora.
            E, a partir de 1981, os Salões de Primavera do Casino Estoril guindaram-se a elevado plano, nomeadamente porque tiveram como objectivo primeiro «divulgar e promover a Arte Jovem», tendo para isso sabiamente convocado estudantes finalistas das faculdades de Belas Artes das universidades de Lisboa e do Porto. Realizaram-se 27 salões, em que participaram 916 jovens, muitos dos quais – como assinala o director da galeria, Dr. Nuno Lima de Carvalho – «hoje são docentes das faculdades em que estudaram e outras escolas superiores» ou «artistas de referência» no panorama das nossas artes plásticas.
            A exposição Artis 2015, que ora ali está patente até 4 de Março, congrega, pois, artistas que «foram distinguidos com prémios e menções honrosas e que se apresentam agora com uma escrita definida, uma modalidade adoptada, uma temática preferida e uma carreira artística de sucesso»: Ana Teresa Vicente, Abreu Pessegueiro, Carolina Piteira, Daniel Curado, Diogo Navarro, Filipe Curado, Francisco Pinto, Gonçalo Gonçalves, Hugo Marques, Isabel Teixeira de Sousa, Joana Arez, Joana Hamrol, Jorge Francisco, Mara Costa, Maria Salgado, Marlene Teixeira, Paulo Pina, Rafaela Nunes, Susana Carvalho e Vítor Novo.
Participantes na exposição Artis 2015, com o director da galeria, Nuno Lima de Carvalho
            Louve-se a iniciativa. Só não é de louvar a abstrusa e dificilmente compreensível proibição de a galeria poder ser visitada por menores de 18 anos. Trata-se de uma lei parida pela Inspecção dos Jogos, sob pretexto de que os jovens não podem ver os adultos jogar nas máquinas, uma vez que estas são visíveis no acesso à galeria. Se acompanhados pelos pais ou por familiares, que – naturalmente – lhes explicariam o significado do jogo e os riscos a ele inerentes, qual a razão lógica para essa proibição? Aliás, não vêem os jovens – e sozinhos!... – outras ‘coisas’ bem piores no seu dia-a-dia?

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 18-02-2015:

E contam-nos a vida toda!

            Ainda me lembro. Creio que se chamavam “interurbanos” e ainda não havia nem alfas nem intercidades. Eram, mesmo assim, os que, mais confortavelmente e num tempo então razoável, me levavam de Santa Apolónia a Coimbra B e me traziam de regresso. Em 2ª classe, comboios de compartimentos para oito passageiros. Quando calhava ter junto de mim velhotes (o que eu, na altura, chamava de ‘velhotes’…), era a viagem toda a ouvir as suas histórias vida afora.
            Ocorreu-me essa imagem, no almoço doutro dia, quando, a meu lado, se sentou um veterano da guerra no Ultramar. Foi todo o tempo a história das emboscadas, das baixas, do helicóptero a voar baixo, das ostras que à socapa se iam saborear para descontrair da tensão…
            Precisam os velhos de desabafar, de contarem o que foram e fizeram.
            Devias escrever isso em livro de memórias, Eugénio! – perorei eu.
            Que não tinha paciência.
            Dizia-me aquela vizinha a rondar os 60 anos, quando lhe sugeri a frequência do Centro de Dia, onde até estavam várias das suas amigas:
            Eu?! Para ao pé daquelas velhas que só sabem falar de doenças?!... Deus me livre!
            Assim João Roque, nas suas já citadas Digressões Interiores (p. 95):
            «Tempos difíceis para envelhecer. Por tudo e por nada, os velhos perturbam-nos e incomodam-nos. Nos cafés ou nos bancos de jardim quando, sem mais aquela, se sentam à nossa beira, metem conversa e desatam a contar-nos a vida toda. Nos restaurantes quando sôfregos comem a sopa e deixam cair o guardanapo e o talher. Nos sanitários onde molham o chão e nós molhamos os sapatos. Nos serviços públicos e nos supermercados onde empatam as filas ou nos tiram a vez».
            Retratos, enfim, que nos fazem pensar e nos ajudam a chupar até ao tutano o osso de cada dia.

                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde) nº 656, 1-02-2015, p. 12.

 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Jogar à espada... é giro e não só!

            Influenciados, quiçá, pelos inúmeros filmes de capa e espada que nos era dado ver, «jogar à espada» foi sempre um dos nossos passatempos favoritos na infância. Qualquer pau servia às mil maravilhas ou uma simples cana e aí vai espadeirada da rija, com riscos enormes de nos aleijarmos a sério. Mas esgrima, senhores, é uma outra coisa e nunca suporíamos que aquelas espadeiradas que se viam nos filmes resultavam, afinal, de muito estudo e bem aturado treino durante horas e horas seguidas.
            Numa iniciativa da Federação Portuguesa de Esgrima, em colaboração com o Clube Duelo, realizaram-se no sábado, 14, no Pavilhão Desportivo de Murches, os torneios abertos em cadeira de rodas e para cegos, no âmbito do Encontro Internacional de Técnicos e Praticantes de Esgrima para cegos. Estiveram presentes atletas da Itália, da Suécia, da França e de Portugal. Ocorreu depois a 3ª etapa do circuito do Torneio Nacional de Juniores, com a presença de atletas pertencentes a diversas academias.

            Sobre os resultados obtidos, remete-se, naturalmente, para a página da Federação: www.fpe.pt/ . O que, de modo especial, importa aqui frisar é o eloquente significado da jornada: a esgrima revela-se como um desporto assaz completo e o facto de se haver conseguido adaptá-la de forma a poder ser praticada por atletas em cadeira de rodas e por cegos constitui valor acrescido e digno do maior valor. E foi essa a grande revelação que de novo tive, ao passar algum tempo, na tarde de sábado, num pavilhão onde, na verdade, ainda não tinha entrado e foi para mim boa surpresa. O que também vivamente me impressionou: o ambiente descontraído, a serena sequência dos combates nesta ou naquela das oito pistas, devidamente acompanhados por árbitros e treinadores; a tranquilidade responsável com que os atletas jovens faziam os seus exercícios de aquecimento…

A tranquilidade responsável dos exercícios de aquecimento…
            Não poderá olvidar-se que tudo isso se deve, por outro lado, à tenacidade enorme de Mestre Eugénio Roque, indefectível lutador pela divulgação e prática da modalidade, apostado igualmente a mostrar – por exemplo, nas aulas que dá na Escola Profissional de Teatro de Cascais – que ninguém pode ser actor sem estar bem por dentro dos movimentos que a esgrima exige, mesmo que não se trate propriamente do «jogar à espada» que nos deliciava na infância.
            Deliciaram-me agora esses largos momentos que tive oportunidade de viver no Pavilhão Desportivo de Murches. Cascais foi, mais uma vez, um palco excepcional e diferente.
 
                                                        José d’Encarnação
 
Publicado em Cyberjornal, 17-02-2015:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1279:jogar-a-espada-e-giro-e-nao-so&catid=26:modalidades&Itemid=29




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Contos com a guerra em fundo…

            A sessão foi numa livraria, sim, mas tínhamos ao lado a entrada para o forno e, defronte, a velhinha máquina de transformar o grão em farinha. Um ambiente, à primeira vista, estranho mas acolhedor, até porque se escrevera, há longos anos, na parede junto à boca do forno, «Nem só de pão vive o homem», primeira parte da frase de Mateus (4, 4), que assim se completa «mas de toda a palavra que sai da boca de Deus». Bem apropriada, pois, para a apresentação de um livro, donde saem palavras que são – também elas – um alimento para o espírito. Fizeram bem os responsáveis pela Livraria Alêtheia, ali no Rua do Século e no coração do Bairro Alto, em manter o envolvimento antigo, panificador, alimentar, a isolar-nos, aliás, do burburinho da cidade, para – como que em cerimonia de iniciação – nos embrenharmos noutros mundos…
Apresentação com moenda ´por detrás

            Foi na quinta-feira, 12, ao final da tarde. Ângelo Rodrigues deu as boas-vindas, em nome da livraria e da Sinapis Editores. Disse do privilégio de se saudar o aparecimento de mais um livro, com esta qualidade. A apresentação de Os Olhos do Jacaré, de Rogério Pires de Carvalho, esteve a cargo do Dr. José Manuel de Vasconcelos, que tem acompanhado o percurso do escritor e sobre ele disse quanto os seus contos, breves, reflectiam uma linguagem tersa, adequada, por onde amiúde perpassava – como não podia deixar de ser – o fantasma de uma guerra vivida…
            Encheram a salinha companheiros de armas do autor (boa parte deles vindos do Porto expressamente para estarem presentes), familiares (a filha, Sara, deslocou-se de Londres, numa surpresa, ela que recentemente ali defendera tese de doutoramento) e amigos. Mais de meia centena.
            Do conteúdo do livro se dirá depois da leitura feita. Uma leitura que urge, pela curiosidade que os oradores souberam despertar.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 13-02-2015:

Terra Fria Terra Quente – um romance de costumes

            Em nota que publiquei a 7 de Janeiro de 2014, referi-me a este livro Terra Fria Terra Quente, da autoria de Maria José Corrêa Pinto, que fora editado por Exoterra, em Novembro de 2013. Salientei, então, que ainda o não lera e que era minha intenção lê-lo. Ora o li – e dessa leitura aqui peço licença para exarar as minhas anotações.

Um romance de costumes
            O facto de apresentar bibliografia no final leva-nos a supor que não terá sido apenas uma experiência real e concreta – se é que a houve, o livro não o denuncia expressamente – que esteve no cerne da narrativa, mas também o estudo haurido em obras da especialidade. Não é, porém, uma obra histórica, obediente às regras de citação, por exemplo, que um texto com essas características postularia.
            Dois livros estão, porém, presentes do princípio ao fim, para identificarem os capítulos (só três vezes, decerto por lapso tipográfico, os capítulos não são individualizados): Os Lusíadas, de Camões, e Só, de António Nobre. De ambos se transcrevem passagens em sintonia com o tom geral que o capítulo vai ter. Capítulos curtos, que começam frequentemente com o nascer do dia ou uma referência de tipo climatérico.
            Ousaria classificar a narrativa não como um romance histórico mas como um romance de costumes, uma vez que trata da história de uma família da classe média flaviense em plena II Grande Guerra. É todo esse ambiente que ali é descrito, em pormenor: os costumes, os hábitos quotidianos (das famílias, dos pais, das crianças…), o viver social e económico, a tensão que paira mesmo numa cidade de província sob o espectro velado do salazarismo omnipresente, as dificuldades que o racionamento dos géneros alimentícios acarretavam…
            Há, de modo especial, o retrato urbano de Chaves nos anos 40, abundantemente ilustrado pela oportuna inclusão de postais ilustrados (editados pela célebre Tipografia e Papelaria Mesquita, de Chaves), com vistas dos aspectos mais significativos da cidade: as ruas do comércio, o Jardim Público, a ponte romana, as poldras, as igrejas, os largos…
Chaves - as termas na década de 40
            Há, porém, especificamente, o retrato social: histórias de adultérios e mulheres da vida, miséria, as brincadeiras dos miúdos (o romisco, o pucarinho, os verdelhos…), os ditos populares, as rezas, o leituário, as palavras típicas («zerbada», as «sebas»…). E a rádio e os jornais que vão pondo a população ao corrente não apenas da guerra que na Europa se desenrola nessa primeira metade dos anos 40, mas também das tentativas de sublevação e greves, a manifestarem o descontentamento do Povo para com a política salazarista, a secreta vigilância dos agentes da PIDE… Aparece um jornalista a hospedar-se na pensão que a mãe da protagonista tem, destinada, sobretudo, a albergar quem vem às termas; a ideia é fazer a reportagem das inundações que afectaram a cidade (e lá está um postal a mostrá-las); contudo, ao serão, não se inibe de dar conta, a meia voz, do que sabe acerca do que se passa por esse País além, o trabalho de sapa dos comunistas...

As tradições de cá e de lá
            O enredo começa com a ida para Moçambique, mais propriamente para Nacala, terra de Macuas, do marido de Leonor, Miguel Afonso, em busca de melhor vida; assim pagaria as dívidas e, se tudo corresse de feição, em breve a família estaria lá com ele.
            É, pois, nestes anos de separação que reside o cerne da narrativa, a possibilitar a descrição, tanto de um lado como do outro, do que eram as tradições locais. Se assistimos, em Chaves e arredores, à descrição de como se ensinavam, na escola, as primeiras letras, às superstições (o miúdo de três anos que não fala e se põe num saco para curar-se… p. 244), às tradições natalícias e aos cantares do Dia de Reis, aos festejos do Entrudo, a um «Cortejo de Oferendas», à matança do porco, à romaria de S. Caetano ou da Senhora do Amparo, às comemorações do São Martinho… também do lado do marido, nomeadamente através da correspondência, ficamos a saber como se fazia a iniciação dos rapazes, como eram as caçadas (p. 193-194), o casamento macua, o cerimonial que envolvia o nascimento de uma criança, a figura do missionário que evoca a história da região, os feitiços a que se lançava mão para se obter a misericórdia divina, e até saboreamos, aqui e além, o linguajar indígena (p. 264-267, por exemplo)…
            Aliás, se, como atrás se disse, os capítulos têm epígrafe poética a abri-los, explicita-se no índice (p. 6 e 7) o seu conteúdo, de forma que o livro, depois de ‘devorada’ a história, pode servir de documentário acerca dessas cerimónias tradicionais. De resto, aproveita-se, inclusive, o facto de um mocinho negro ter sido deportado para S. Tomé, por brincar com uma menina branca, para também se fazer da vida nessa ilha circunstanciada descrição.
            E se são anotados os problemas económicos da protagonista (também!) e os socioeconómicos (a frequente morte de crianças à nascença, nessa época, por via das gastroenterites, os parcos rendimentos de uma agricultura dependente das contingências climatéricas…), procura fazer-se igualmente uma análise psicológica: que pensa uma mulher com filhos nos braços para sustentar, quando o marido está longe mais de cinco anos, a viver num meio para ela totalmente desconhecido, sabendo como são os homens e as mulheres? E, claro, como é a matreirice da vizinhança, sempre pronta a agudizar suspeições…
            Não poderia a autora deixar de mostrar, aqui e além, a sua veia poética. Maria Leonor faz sonetos, que surgem de vez em quando nas suas cartas; a «odisseia do povo macua» (p. 281-284) tem forma de poema quase heróico.

Quatro dados a salientar
            Para além do mais, quatro dados gostaria de salientar, pela sua oportunidade como memória de uma época:
            Era caseiro o fabrico do pão (p. 242). Cada família fazia a sua fornada, ainda não havia padarias e foi, aliás, para trabalharem na panificação que muitos portugueses emigraram para a Venezuela e para o Brasil.
            O lugar de destaque que tinha, no Norte, a Praia da Granja, como pólo de atracção do veraneio (p. 240), ainda hoje bem patente nas casas típicas dessa época, em arte nova, a mostrar o requinte da burguesia que as procurava ou mandara construir.
            Hoje, que há cursos de Jornalismo e de Comunicação Social, pode ter-se a impressão de que sempre assim foi. Impõe-se, por consequência, como inteligente reflexão o facto de se dizer do atrás referido jornalista: «Ele tinha tido a sorte de fazer alguns estudos no liceu e, como escrevia bem, arranjara emprego num jornal. Conseguia fazer face à vida, mas trabalhava muito» (p. 172).
            A referência às botijas como forma de se aquecerem os pés na cama (p. 246). Foi costume que perdurou até bem dentro da década de 50: as botijas eram as garrafas de grés da genebra, bem cilíndricas e estreitas, que vedavam bem e se mantinham quentes durante muito tempo. A genebra era uma aguardente muito em voga, feita nos Países Baixos a partir da destilação do zimbro (daí, a designação zinebra, que deu ‘genebra’).
 
A dúvida
            No final, confesso, ficou-me a dúvida – mormente agora que estão a surgir narrativas do tempo colonial, de antes, de durante e do após-conflitos – se algumas das páginas não são descrições do que a autora viveu.
            Escreve-se numa das badanas que se abordam aqui «aspectos do Portugal salazarista (Metrópole – colónia) que muito a intrigaram e impressionaram». Há, contudo, na pág. 192, a seguinte frase: «Assim que os deixámos de ver [os búfalos], um grupo de elegantes e delicadas gazelas debruaram as margens do lago». A narração é sempre feita na terceira pessoa e, aqui, inopinadamente, surge a primeira pessoa do plural, como se a autora estivesse a copiar um relato e se houvesse distraído na transcrição
            Claro, eu poderia perguntar-lhe, inclusive se as fotos das capas correspondem à família de que se conta a história. Aparentemente, sim: na da capa, há o pai, a mãe, as três filhas e o filho, mais pequenino; na quarta capa, um homem (é o mesmo da capa) mostra uma cria de leopardo, qual troféu de caça. Uma verificação se impõe: o facto de ter assinado com o nome de solteira denuncia a vontade, como já assinalei, de um retorno à infância, cujas memórias aqui mui minuciosamente se deixam exaradas. Se são de familiares seus ou de pessoas muito próximas ou se tudo não passa de mera ficção – cada um que pense como lhe parecer melhor.
            Certo é que Terra Fria Terra Quente constitui, sem pretensões literárias nem de estilo (nota-se, aqui e além, alguma dificuldade no uso da pontuação), o retrato de uma geração. No final, embarcados no paquete Angola, que zarpa da doca de Alcântara, Maria Leonor e os filhos demandam Moçambique. Fica-se a saber dos seus primeiros tempos lá e da adaptação (difícil) que lhes foi exigida. Imaginamos o resto: o sacrifício, aliado ao espírito compreensivo de ambos para com a população indígena, terá valido a pena – numa felicidade, enfim, bem merecida.
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 13-02-2015:

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Há gente muito mal intencionada!

             Mal intencionada e sempre descontente, de mal com a vida! Que diabo! Criam rugas na testa, dão azo a úlceras no estômago, insistentes dores de cabeça (cefaleias ou hemicranias, em linguagem técnica, que, de vez em quando, também a gente tem de mostrar que sabe dessas doenças…).
            Pois é. Lutou o pessoal por causa do caríssimo remédio para a hepatite C; luta longa, quase diária, mas… guerra vencida! E logo vieram os tais senhores: «Que sim, foi bom, mas podia ter-se evitado uma morte!». É como aquele pai a quem o filho diz «Podes assinar-me o ponto de matemática?». O puto apanhou 92 % e o pai, com voz de ameaço: «Para a outra vez, quero 100%, ouviste?». E o puto, que estava todo contente, até fora o melhor da turma, olhou para o pai «isto não vale mesmo a pena, velhos não percebem nada!».
            Pois é. «Olha, Manel, tá um lindo dia de sol!». E o homem remoca: «Mas prá tarde já dá chuva!».
            «Sol na eira, chuva no nabal» – proclama o adágio que é isso que o povo quer!
            Já começou o derrube do esqueleto arquitectónico no largo da estação de Cascais. «Já não era sem tempo, livra! Esta gente anda toda a dormir na forma! Se já se viu! O tempo que aquilo demorou!». Não era de deitar foguetes e de aplaudir? Não: há é que pô-los debaixo da canga, porque nunca se sabe o que vai sair dali e, se os louvamos, enchem-se como os balões e não há quem os agarre…
            Muita gente até é capaz de ir à missa dominical. Distraidamente, quiçá, lá ouve o sacerdote rezar, logo no começo do cânone: «Na verdade, é verdadeiramente justo, necessário e salutar dar-Vos graças, em todo o lugar e sempre, Senhor!». Agradecer – o contrário de estar, de contínuo, pronto ao remoque. Agradecer num sorriso distende os músculos, até à tez acaba por fazer bem!...

Essa história dos transportes
            Tenho um dossiê de 36 páginas intitulado «A verdade sobre a dívida das Empresas Públicas de Transporte – Origem, responsabilidades e os interesses que a mesma serve». Explicita-se concretamente:
            «E assim, ao longo de anos, foram os Governos fazendo obras através das empresas públicas mas sem as pagar, obrigando as empresas a recorrer crescentemente ao financiamento necessário, não só para pagar o investimento como também para pagar os juros desses empréstimos».
            Tudo uma embrulhada, está bem de ver.
            E o cascalense pergunta, a propósito do edifício da super-esquadra da PSP, ali sobre o passeio da Av. Adelino Amaro da Costa: «Está a obra parada, porquê?». E o vizinho explica: «O empreiteiro faliu». «E porque é que foi implantada às avessas, o alto para a rua e o baixo para as traseiras?». «Porque ninguém disso se apercebeu a tempo!». «Desculpa?!». «Sim, ninguém se apercebeu! Só muito mais tarde!». «Estás a mangar comigo e eu a ver!». «Não estou. Ninguém viu ou, se viu, assobiou para o lado». «Nem o senhor Arquitecto Troufa Real?». «Nem o senhor arquitecto».
            Assim essa das empresas de transportes. Ninguém vê. Ou se alguém vê…

 Houve um acordo de Londres
            Maledicências está visto. Não há gente que veja com olhos piedosos!...
            Por exemplo, essa de terem ido descobrir que, a 27 de Fevereiro de 1953, se celebrou em Londres um acordo acerca da dívida alemã de 32 biliões de marcos. Perdoou-se-lhe 50% (entre os que lhe perdoaram contam-se – pasme-se! – a Espanha, a Grécia e a Irlanda) e o restante foi escalonado em 30 anos; contudo, só em Outubro de 1990, o governo alemão emitiu obrigações para pagar; e foi estipulado (pasme-se de novo!) que o pagamento anual não poderia exceder a capacidade da economia.
            Tá visto: só um jornalista mal-intencionado era capaz de ir desenterrar os termos deste acordo. E agora, que a Alemanha está a ser tão condescendente!...

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 79, 11-02-2015, p. 6.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Contadores de histórias...

            Lembro-me como se fosse hoje. A tarde estava serena, nem brisa corria. Ali, sentados na terra, com seus albornozes grosseiros, castanhos, pretos, escutavam o ancião. De pé, contava-lhes coisas de outrora: lendas, feitiços, lutas, conquistas… sei lá! Imagino contos das mil e uma noites. Solene, penetrando no céu bem azul, o minarete da Koutoubia lembrava, também ele, tempos idos… Marraquexe e os seus contadores de histórias, nesse longínquo 1967!…
Sentados em redor do contador de histórias, em Marraquexe (1967)
            E recordei-os logo, assim que dei comigo a ler a História de Portugal de Natael Rianço. Sim, porque é a história dele. Como ele a estudou, como lha ensinaram em tempos de heróis e de santos e do Poeta que canta, quando se não dizia que, afinal, santos e heróis e poetas também eram homens de carne e osso – como se não houvesse Povo, mulheres e homens e crianças numa labuta pelo pão de cada dia, como se tudo se passasse só nas cidades, no amarinhar por aquela muralha acima…
A capa de «A Minha
História de Portugal»
            Há mitos, porém, a que, hoje ou amanhã, temos de nos agarrar. Mesmo que saibamos que o são, que não podem aguentar muito peso. Mas são… raízes! Dizem-nos que, antes de nós, outros houve e, antes desses, outros ainda, numa sucessão de gentes que pisaram este solo, que lhe deram cor, que lhe rasgaram as entranhas num frutificar de gerações…
. . .
O Sol apareceu, enfim, nesse final de tarde inexplicavelmente suave e tépido. Muitos vultos negros se haviam espalhado por entre os mármores trabalhados das campas. Era um céu azul claro; as nuvens em farrapos aconchegavam-se no tom alaranjado dum sol-pôr que se adivinhava para breve. Bem suave era a brisa, mal se sentia, a querer aninhar-se nos densos, esguios e altos ciprestes. Um silêncio…
            Por sobre os mármores iam-se depositando as coroas, as palmas, os ramos, os «corações»… Feitas as preces rituais, o ataúde desceu, lento, à cova. Numa emoção grande, dificilmente contida. Cobriu-o uma colcha de flores, depois a terra-mãe; por cima, o enorme comoroiço de mais flores. O Sol vai pôr-se. Já tocou a sineta a lembrar-nos que temos de abalar. E a aragem tornou-se fria, agora.
Perfumem as flores o Poeta, o Homem, o Lutador – que esperou pelo primeiro dia do milénio para, enfim, ir repousar!
            Antes, porém, muito antes, pelos serões, quis ser contador de histórias, da nossa História. E aqui estão. Sem o saber, reatava uma tradição antiga, dos Mouros e das Mouras Encantadas e de gloriosos feitos de antanho. Junto à lareira, ele; os outros, em plena praça pública, despertando sonhos, deixando-os voar…

NOTA: Permita-se-me que assim partilhe o prefácio que fiz para a obra póstuma, em versos, A Minha História de Portugal, do alentejano Natael Rianço, falecido a 1 de Janeiro do ano 2000. Publicou-a a Associação Cultural de Cascais, com o apoio da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, em 2001 (ISBN: 972-9406-22-7). 

 

 


  

Romantismo ao cair da tarde…

            E deixamo-nos enlevar pelo mavioso som dos violinos. Vibramos com o timbre forte dos metais. Também os músicos não estão ali, totalmente embrenhados os vemos em soltarem os sons no momento certo. Encanta-nos o baloiçar da mão esquerda dos que apoiam o violoncelo ou o dos violinistas. E o maestro não descansa, também ele totalmente enfronhado na melodia que esvoaça, na serenidade imensa do auditório da Boa Nova…
            Excelente relaxar neste final de tarde, em que, fechados para o mundo exterior, acabamos por dali sair nas asas da imaginação que o concerto espicaça. E temos a sensação nítida de que todos os maviosos ecos da Natureza se congregaram ali, para nos deliciar e entreter… O maestro não descansa, os músicos não tiram o olhar da partitura, o senhor dos tímpanos aguarda tranquilamente a vez de sublinhar uma passagem mais forte… E o público deixa-se enlevar, numa catarse…
Nokolay Lolav apresenta o espectáculo
A assistência
Kim Yulla
            Foi assim. Ou melhor: foi muito mais do que isso o que se passou no final da tarde de domingo, 8 de Fevereiro, no auditório da Senhora da Boa Nova (Galiza, S. João do Estoril). A Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, dirigida, na circunstância, pelo croata Berislav Skenderovic, começou por interpretar a abertura do bailado «As Criaturas de Prometeu», de Beethoven. A coreana Kim Yulla foi solista, ao violoncelo (que virtuosismo, senhores!...), no concerto para violoncelo em lá menor (opus 129) de Robert Schumann. Depois do intervalo, mantivemo-nos no Romantismo Alemão (esse era o tema do concerto), com a conhecida «A Italiana», a belíssima sinfonia nº 4 em lá maior (op. 90), do génio hamburguês  Félix Mendelssohn, que apenas viveu – pasme-se! – 38 anos (1809-1847).
O maestro
            Constitui para Cascais e Oeiras um privilégio ímpar terem uma orquestra residente que amiúde nos pode brindar com espectáculos de tão elevada craveira. Não saberei dizer – porque não sou músico – se tocaram bem, se a interpretação foi excepcional, se o maestro é o máximo; mas gostei muito e vi que, durante o concerto, os músicos estavam satisfeitos e que o público, no final, os aplaudiu longamente e de pé.
            A Orquestra de Câmara de Cascais e de Oeiras foi criada no ano 2000, por iniciativa do maestro Nikolay Lalov (o seu enorme mentor, cujo entusiasmo nunca é de mais realçar), que, na circunstância, apresentou o maestro e o programa, e é apoiada pelos dois municípios e pelo Ministério da Cultura, estando hoje sob a tutela da Fundação D. Luís I. Realiza uma média de 120 espectáculos por ano.

Publicado em Cyberjornal, edição de 10-02-2015:

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A história de Aljubarrota cativou em Cascais

A réplica de um elmo em voga
ao tempo da batalha
e o livro «Aljubarrota Revisitada»
            João Gouveia Monteiro, professor de História na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, cativou a assistência que por completo encheu o espaço de eventos da FNAC, no CascaiSopping, na tarde de sábado, 7, ao falar, com enorme entusiasmo e muito saber, acerca da batalha de Aljubarrota. A conferência foi precedida pela projecção do documentário da ordem de vinte minutos, o primeiro que se mostrou ao visitante no Centro de Interpretação de Aljubarrota.

Um aspecto da assistência antes mesmo de a conferência se iniciar
            O professor, que acompanhou desde o seu mais recente início os trabalhos arqueológicos no campo de S. Jorge onde a batalha se travou e que se tem especializado em História Militar, explicou pormenorizadamente como é que a batalha se deu, a posição inicial e a segunda das tropas portuguesas, as causas do desaire castelhano, as estratégias do combate… Demorou-se na miúda descrição da táctica adoptada, que viria a permitir que poucos soldados portugueses, em comparação com o exército castelhano, mais dotado de homens, tivessem logrado rapidamente fazer bater o inimigo em retirada.
O professor troca impressões
com os responsáveis da loja da FNAC

            A batalha foi devidamente enquadrada no seu contexto nacional (a crise dinástica de 1383-1385) e no europeu (a Guerra dos Cem Anos) e houve oportunidade de resposta às questões postas pelo público que, deveras interessado, seguiu a explanação clara e bem fundamentada, sempre servida por uma linguagem acessível e cativante.
            Um dos aspectos interessantes terá sido, sem dúvida, a informação acerca do que os exames osteológicos, levados a efeito no Instituto de Antropologia de Coimbra pela antropóloga Eugénia Cunha, puderam documentar acerca da compleição e da  idade dos combatentes, das anomalias esqueléticas registadas, concluindo-se, por exemplo, que alguns deles já haviam sido feridos em combates anteriores, uma vez que as sequelas estavam cicatrizadas.
Instantâneo da intervenção
de João Gouveia Monteiro.

            Recorde-se que, em Julho de 2001, a Imprensa da Universidade de Coimbra editou a obra Aljubarrota Revisitada, cuja coordenação editorial coube a João Gouveia Monteiro, onde se dá conta das mais recentes descobertas feitas no campo.
            Comemoram-se este ano os 600 anos da tomada de Ceuta e o orador salientou que alguns dos combatentes de Aljubarrota não hesitaram em se alistar também nessa empresa.

Publicado em Cyberjornal, edição de 09-02-2015:

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Ai, os velhos!

            O facto de já o sermos ou de com eles convivermos no quotidiano não deixa ninguém indiferente. De modo especial, claro, os que para com os velhos têm obrigações, porque filhos, netos ou simples familiares.
            Não admira, pois, que escritores os escolham para protagonistas, As ânsias, as dificuldades, as manias, os hábitos enraizados, o viver em passados horizontes… Não é já o estafado tema do conflito geracional; é outro olhar, outra compreensão.
            No livro Cal, colectânea dos contos e outros escritos que foi publicando aqui e além, José Luís Peixoto embrenha-se nas vidas dos velhos perdidos numa aldeia alentejana – ele que nasceu em Galveias (Ponte de Sor) – e delas nos traça, em pinceladas negras de uma profunda tristeza, a enorme falta de horizontes, o recalcar de sentimentos, ódios ocultos… Angustiante!... A evasão do concreto, na senda de um realismo mágico, em que até os animais parece que falam, fuga mágica que, afinal, é capaz de não ser assim tão irreal como se suporia.
            João Lourenço Roque, por seu turno, nas saborosas crónicas publicadas mensalmente, de 2005 a 2010, no Reconquista de Castelo Branco, escritos que reuniu em Digressões Interiores (edição da Palimage, Coimbra, 2011, com patrocínio da Câmara Municipal de Castelo Branco e da Junta de Freguesia de Sarzedas), confessa-se aposentado regressado ao seu rincão natal, Calvos. Aí envelhece, bem consciente do que é envelhecer agora, ele que foi catedrático de História na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra:
            «Vive-se mais. Espanta-me, por isso, que, em vez de permanecermos jovens até mais tarde, nos tornemos, ou nos tornem, velhos cada vez mais cedo».
            Uma delícia, essas crónicas, envoltas em denso lirismo, de constante diálogo com a pessoa amada. Olhar atento sobre os costumes da sua aldeia, as tradições, o saber os nomes de todos os vizinhos (são tão poucos!...) e o que fazem e o que deixaram de fazer. Quotidiano sereno, embalado na saudade de um tempo que era tempo a saborear.
            Revive a aldeia nestas páginas. Imortalizam-se as gentes, os rituais religiosos, o ciclo anual. Vive-se, mas… «chegou-se ao ponto, arrepiante, de transformar escolas primárias em “capelas mortuárias”»!
            Os velhos, as velhas aldeias… Temos de olhar por eles e por elas!
 
Publicado em Renascimento (Mangualde) nº 655, 01-02-2015, p. 12.