terça-feira, 29 de outubro de 2013

Na prateleira 11

Um cinzento dia-a-dia
            – Ah! António, então, tudo bem?
            – Cá estamos!
            As frases feitas, a resignação perante um dia-a-dia cinzento? A vida como um carrego a suportar.
            Confirmei-o com o resto da conversa: mortes, desgraças, «apareceram-lhe bolhas por todo o corpo»…

Governar é muito difícil
            Um antigo governante me dizia que «política é uma arte nobre». Também me parece que sim. E bem difícil deve ser. Eu vejo por aquele caso do senhor que tem cães e os deixa defecar na placa relvada em frente de uma creche e de uma venda de comida. Já lhe disseram vezes sem conta que há saquinhos no poste ao lado e que esses saquinhos são para apanhar os dejectos dos canitos. O senhor não percebe. Portanto, se uma recomendação tão simples e tão evidente não se acata, como poderemos pensar nas mais complexas? Difícil de governar é o povo!...

Nenhum  empregado
Aida admirou-se:
– Como é? Vocês aqui têm tão poucos empregados? Precisamos de esperar que um esteja livre para nos atender? No Brasil, fazemos questão em o cliente ser atendido na hora; por isso, multiplicamos os empregados até ao limite do necessário.
Lembrei-me desta frase da Aida quando, num destes domingos, percorri toda uma pequena superfície comercial à procura de um empregado que me orientasse os passos em direcção a um artigo que não encontrava. Não havia nenhum. E foi um outro que até nem era do sector que se disponibilizou para me ajudar.
Com esta ‘pancada’ de diminuir o pessoal a qualquer custo, há extremos que estão a atingir-se e a afugentar clientela, que não se compadece com escusados tempo s de espera. A manutenção do IVA a 23%, por exemplo, está a contribuir eficazmente para que se corte nos empregados de mesa. E custa bastante ter de esperar num restaurante para ser atendido. Pensa-se duas vezes se não é melhor ir almoçar a casa.
            Quem está muito alto – já lá dizia alguém – não consegue ouvir a voz da Razão.

O táxi na Clínica
            Foi criado um lugar de táxi junto à Clínica CUF Cascais. Aplaude-se a iniciativa e, agora, há que motivar os taxistas a estacionarem por lá. A Pampilheira era dos poucos bairros suburbanos da vila de Cascais que não tinha praça de táxis.

Ainda as eleições em Cascais
            106 988 eleitores – e eram 172 537 os inscritos! – não compareceram ao acto eleitoral. Dos 65 549 que participaram, 5 951 votaram em branco ou anularam o boletim de voto. Bastaram os votos de cerca de 2,7% dos eleitores para eleger um vereador!...
            Gosto de dar uma olhadela ao que se passa com a mesa 28, uma das que integra os eleitores mais antigos da vila de Cascais, teoricamente os mais ligados ao seu passado e ao seu futuro, porque foi aqui que nasceram (na sua maioria) e por aqui se têm mantido; em teoria, portanto, aqueles que mais sentem a vila como sua. Os resultados foram, a meu ver, sintomáticos e dignos de uma reflexão.
            Assim, no que se refere à Câmara Municipal, estavam inscritos nessa mesa 1170 eleitores; votaram 452, ou seja, 38,6%; a abstenção foi, portanto, de 61,4%. E votaram em branco 2,9%, isto é, 13 eleitores, tendo anulado o voto 4,4% (20 eleitores).
            Nessa mesa, cingindo-me apenas à votação para a Câmara, a coligação VivaCascais obteve 53,54%, ou seja, se as minhas contas não falham, 240 eleitores (dos 1170 que estavam inscritos). O 2º lugar pertenceu ao PS, com 21,7% (98 votos); a CDU foi a 3ª força política votada (8,2%): 37 votos; e o Movimento SerCascais obteve 6,4% (29 votos).

Dois recortes
            No dia 9, na antena da Rádio Renascença, o padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade:
            «Neste momento, o sustentáculo de muitas famílias são os seus idosos, que, com as suas parcas reformas ou pensões de sobrevivência, estão a pagar os estudos dos netos, a suportar os custos dos filhos que estão desempregados».
            Nesse mesmo dia 9, José Pacheco Pereira afirmou, no ‘Jornal das 9’ da SIC Notícias, que «a grande dificuldade é que os nossos governantes, quando falam português – o que nem sempre acontece –, não se explicam, não se querem explicar e querem enganar».

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 19, 23-10-2013, p. 6.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Duas exposições e uma peça, em Cascais!

             Primeira nota, muito positiva: a exposição de Maria Keil nos baixos do Palácio Cidadela, em Cascais, numa parceria do Museu da Presidência da República com a Câmara Municipal. Estará patente apenas até domingo, 27, e será uma pena que alguém que esteja verdadeiramente interessado em Arte a não vá ver.
            O espaço foi muito bem preparado para receber, num tom intimista (diríamos!) este inolvidável conjunto de trabalhos de toda uma vida dedicada à Arte, nos seus mais variados temas e suportes. Sim, os azulejos, sem dúvida! Aqueles a que, sem querer, nos roçamos em estações do metro de Lisboa e nem sequer suspeitamos de que são de uma grande Artista, algarvia de Silves, que o ano passado nos deixou, quando estava prestes a completar 98 anos! Mas os seus trabalhos de ilustração de obras, mormente para crianças… de encantar! E as tapeçarias?
            Exímia no desenho, acutilante na crítica quando tinha de o ser (que a pintura é uma arma também!...), plena de uma serenidade que encanta! Passaríamos ali umas horas!...
            Chama-se de propósito… a obra artística de Maria Keil. E a razão do título resulta – como ali se explica – da oportuna apropriação de uma expressão utilizada pela artista, por ocasião do seu 80.º aniversário: “Faço 80 anos, sim e é de propósito” – embora, antes, tenha dito que… não era de propósito!... E, na verdade, essa frase pode consubstanciar todo o seu percurso de vida e toda uma forma de encarar a existência, em trabalho incessante e profícuo até que… as mãos deixaram de lhe obedecer! A tela final é, por isso, deveras sugestiva: «Tenho trabalhado pouco, não é? Peço desculpa… não soube fazer mais».
            Acrescenta-se na apresentação:
            «A ironia subjacente em grande parte dos seus trabalhos, a desconstrução, a diversidade de abordagens e de suportes e a fuga a categorizações espelham bem a personalidade de Maria Keil e a reivindicação da sua liberdade criativa».
            Horário: de quarta a sexta-feira, das 14 às 20 h.; sábado e domingo, das 11 às 20.

O teatro e os teatros
            No Mirita Casimiro, expõe Fernanda Carvalho, até ao próximo dia 3, «Percursos Teatrais», série de fotografias, a preto e branco, que têm por tema o teatro. Não o teatro-espectáculo mas teatros-edifícios, mormente o seu interior. O teatro de Évora (é capaz de não se saber que Évora tem teatro antigo…), o de Milão, alguns de Lisboa…
            Um olhar quase indiscreto, a realçar ângulos inesperados, de luz invulgar. Deixam-nos pensativos: tudo isto está por detrás de um espectáculo teatral! Por aqui se agarram mãos, na prossecução de um objectivo: para que o espectáculo resulte e a mensagem passe!
            Escreve o encenador José Peixoto, no catálogo:
            «Ignoramos até que o Teatro vive não só na cena mas em todo o espaço teatral que determina a leitura e a recepção do espectáculo».
            E é esse «olhar sensível e revelador da beleza dos teatros» que Fernanda Carvalho pretende – e consegue! – mostrar. E não ficamos indiferentes.

O Tempo e a Ira, de John Osborne
            E, no teatro municipal de Cascais, como se anunciou, «o texto mais controverso do séc. XX inglês»: O Tempo e a Ira, de John Osborne (1929-1994), com André Nunes, Dalila Carmo, Joana Seixas e Renato Godinho.
            Acrescenta-se que a peça «transformou o teatro no país de Shakespeare e não deixa ninguém indiferente». Isso não deixa, porque, no final, acabamos por verificar que, de uma forma ou doutra, ali estamos retratados nalgum dos momentos da nossa vida.
            Uma chatice as tardes de domingo sem programa definido e uma tábua de engomar sempre ali à espera e até nos assusta pensar que há toda uma catrefada de roupa para passar. Vai e vem o ferro («movimentos minimais repetitivos, tão modernos de tão vazios e desconcertantes», anota Martim Pedroso); respira ofegante; uma peça e outra. E… já acabaste de ler o jornal? Estes jornais que dizem todos a mesma coisa. Inferno de vida. O horizonte parece que acaba ali, num torvelinho de ideias desencontradas, de traumas, de... Há o amor que já se tornou monotonia; há a criança gerada, não partilhada e, por isso, ocultada e… abortada. Há o amor-ódio, violência que se amansa.
            Os actores olham-nos nos olhos, amiúde. Querem fazer-nos participantes do que sentem, do que pensam. Sim, porque eles pensam – o que já não é nada comum nos nossos dias! E importava que fosse, neste tempo que sub-repticiamente se nos vai escoando por entre os dedos, em cima de bem arreliante tábua de engomar. Consciencialização é, sem dúvida, a palavra de ordem!
            Todos os actores servem às mil maravilhas esta versão de Renato Godinho (de certo modo, o protagonista, Guido, magnífica criação sua), um dos ‘filhos’ do Teatro Experimental de Cascais. Dalila Carmo (Helena), que nos habituámos a ver nas telenovelas e foi galardoada, este ano de 2013, com o Globo de Ouro de Melhor Actriz, entra de permeio, a baralhar todo o esquema convencional e dá a bofetada (real e simbólica) num ramerrão fastidioso. Joana Seixas (a doce Alice) impõe-se-nos na cena final, olhos fitos nos espectadores, de negro vestida, sentindo cair sobre ela vitupérios a juntar aos horrores por que passou, imóvel, densa, escultura!... André Nunes solta-se, por exemplo, naquela excelente negaça-espectáculo de cantor que, se calhar, um dia até gostávamos de ter sido, para saborear um palco menos frio que este, condimentado apenas a sucessivas xícaras de chá…
            Foi Martim Pedroso que encenou. E é dele o texto principal do singelo programa. Aí escreve, a dado passo, a propósito das atitudes de Guido: refugia-se o protagonista «na culpabilização de tudo e de todos e nem mesmo ele consegue lavar a sua alma a não ser quando recua ao tempo das fábulas com ursos e esquilos».
            Brincar aos ursos e aos esquilos, encher de fantasia o nosso quotidiano será, porventura, uma forma de ultrapassarmos a dureza esquelética e disforme de uma realidade feia, sem graça nenhuma, porque despojada da imaginação e do sonho!
            A peça vai estar em cena no Mirita Casimiro até 3 de Novembro, de 5ª a sábado às 21h30 e domingo às 17h!
            A não perder!

Publicado em Cyberjornal, 20-10-2013:

 Nota: As fotos de 'O Tempo e a Ira' são de Ana Lopes Gomes. Reproduzimo-las com a devida vénia. 

domingo, 20 de outubro de 2013

Museu do Trajo, um museu especial

            Por iniciativa da Associação Portuguesa de Museologia (ali representada pelo seu vice-presidente, Dr. Pedro Inácio), com a colaboração da Direcção Regional de Cultura do Algarve e da Câmara Municipal de Loulé, realizou-se, a 23 de Setembro, no castelo de Loulé, uma mesa-redonda subordinada ao tema «Que gestão para os museus actuais?»
            Intervieram a Dra. Dália Paulo, Directora Regional de Cultura do Algarve, que salientou a importância cultural que a rede museológica algarvia estava a ter; a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Faro, Alexandra Gonçalves, que equacionou o binómio turismo e museus; José Gameiro, Director do Museu de Portimão, que se referiu às iniciativas ali desenvolvidas; Emanuel Sancho, responsável pelo Museu do Trajo de S. Brás de Alportel; e eu próprio, que tive ensejo de chamar a atenção para dois aspectos que reputo relevantes numa gestão museológica: a investigação (a postular o estabelecimento de parcerias, nomeadamente no que às exposições e eventuais publicações diz respeito) e a comunicação (não basta fazer é preciso divulgar o que se faz).
            Não constituirá, porém, vaidade salientar o bom acolhimento que teve o relato que Emanuel Sancho fez – e eu corroborei – do modo de funcionamento do nosso museu, dependente como está apenas da Santa Casa da Misericórdia e dispõe, por conseguinte, de muito maior liberdade de acção. Liberdade que tem sido bem aproveitada para envolver a população, quer os nativos (veja-se a maravilha que é o Pólo de Alportel!) quer os estrangeiros, que escolhem amiúde o museu (até porque boa parte deles se filiou no Grupo de Amigos) para as suas iniciativas culturais da mais variada índole.
            Um museu, na verdade, com características singulares – que aposta, acima de tudo, em estar ao serviço da população e, dessa sorte, eficazmente contribuir para oportuno cimentar de uma identidade que muito se preza!

Publicado em Noticias de S. Braz, nº 203, 20-10-2013, p. 21.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Faleceu Luiz de Barros

              Faleceu hoje, 16 de Outubro, Luiz Domingos Gonçalves de Barros.
                A notícia já era esperada, uma vez que o Luiz se encontrava bastante debilitado pela doença que o acometera. Na última representação do Grupo Cénico da Associação Humanitária dos Bombeiros de Cascais já não pôde estar presente e foi-lhe tributada no início a calorosa ovação que se dedica aos Artistas e aos Amigos.
            Era um dos grandes dinamizadores do Grupo Cénico, onde muito se apreciava a sua função de compère, que desempenhava com grande brio, entusiasmo e saber, adaptando-se facilmente a todos os ‘papéis’ e resolvendo, na hora, qualquer inesperada contingência.
            Antigo aluno salesiano (fui seu colega na Escola Salesiana do Estoril), sabia manter o espírito jovial que bebera na Escola e tinha grande preocupação em preservar e divulgar as verdadeiras tradições cascalenses, interessando-se vivamente pela história local. Muitas vezes conversámos sobre isso e muitas vezes disso os quadros do Grupo Cénico se fizeram eco.
            Que descanse em paz e que o seu exemplo frutifique, pois sei que a sua memória perdurará indelével em quantos tiveram a dita de com ele conviver.

            Publicado em Cyberjornal, edição de 16-10-2013: http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=18967&Itemid=30

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Devorar e… digerir!

            Todos estamos de acordo: na recente campanha eleitoral, as cúpulas dos partidos esqueceram, mais uma vez, o País real. O ‘tempo de antena’ que nos noticiários lhes era concedido aproveitaram-no para dizer o que, garantidamente (!), fariam se fossem governo ou, sendo da esfera do governo, porque é que estavam a actuar assim e não doutra forma.
            Oportunidade perdida!
            Saudades? Sim, não o nego. Tenho saudades dos candidatos que conheciam os assuntos, os estudavam e que se sabiam rodear exclusivamente dos interesses locais.        O meu amigo António lembrou-se, antes da campanha, que seria de interesse ir visitar aquele lar da sua freguesia, para se inteirar da situação e saber o que, se eleito, poderia fazer para a melhorar. A directora advertiu-o, porém:
            – Vossemecê pode vir, mas sozinho ou com dois ou três dos seus colaboradores mais directos. É que, sabe, na outra campanha, um dos candidatos entrou por aqui adentro com bandeiras, camisolas, panfletos… algazarra! E os meus velhos muito aflitos: se era uma revolução, se tinham vindo ocupar o lar, o que era aquilo? Portanto, pode vir, mas não para fazer propaganda, que estes senhores que estão aqui tomara terem capacidade para comer, para se deitarem e tomar a medicação
            António compreendeu. E pasmou quando eu lhe contei que, de facto, um outro candidato decidira visitar um centro de acolhimento de indigentes portadores de doenças mentais das mais variadas e graves etiologias e se fizera acompanhar de todo o séquito propagandístico… Ele era carros, camisolas, bandeiras, bonés… «Dê-me uma camisola!», bradava o maluquinho, «Dê-me uma bandeira!», rogava outro… E o pessoal olhava-se entre si: «Esta gente não percebe mesmo nada disto! Coitados!».
O chefe daquele partido ia às terras, sim; mas sabia de antemão com quem deveria falar, quais os problemas fundamentais que afectavam a população e quais as medidas concretas que se deveriam adoptar. A inteligência ao serviço da política. Não telecomandada por quem da vida não tem experiência e se baseia apenas nos manuais que sôfrega e mui rapidamente procurou devorar.
Exacto: eu escrevi «devorar» – porque «digerir» é uma função bem diferente!

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 625, 15-10-2013, p. 12.

Olha, este está goro!

            Pusera-se em água (é o estratagema!) e o ovo, em vez de se manter no fundo, viera ao de cima, sinal de que não estava em condições de ser consumido: estava «goro»!
            Dei comigo a dizer a frase e senti-me rural; ou seja, há ‘séculos’ que não a ouvia e isso me fez voltar ao tempo em que meus pais tinham capoeira e eu ia todos os dias espreitar a cesta, ‘a ver se havia ovo’; e, por outro lado, lembrou-me a deliciosa cena de sentir os pintainhos a começarem a piar ainda dentro da casca, a tentarem parti-la com o frágil biquinho, a mãe galinha a ajudar e nós próprios, com muito jeitinho, a facilitar-lhes a vinda a este mundo.
            E atentei no «goro». É adjectivo derivado de «gorar», falhar; mas o mais curioso é que não há meio de se descobrir donde é que a palavra veio! Uns dizem que o verbo gorare terá existido no latim da Península Ibérica, formado a partir de um radical celta «gor», com significado de ‘quente’; outros apontam, dubitativamente, um étimo grego: ourios, que tem, por sinal, sentido exactamente contrário: «favorável»; outros, ainda, filiam-no no adjectivo latino orbus, que quer dizer «privado dos pais» ou… dos filhos!
            Pela minha parte, inclino-me mais para essa questão da temperatura, não só porque o «gorar-se» está muito relacionado com variações térmicas, mas também porque, na realidade, essa aproximação com uma etimologia indo-europeia não é desprovida de solidez. Assim, a propósito da divindade ‘termal’ Bormanicus, escreveu Juan José Moralejo que a palavra galega e portuguesa goro (em castellano, ‘huero’) documenta bem a existência, nas línguas românicas, de um substrato céltico, a partir de *ghwor- > *gwor- (estranhas formas de tentar grafar sons bem antigos, digo eu!...).

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 177, Outubro de 2013, p. 10.

 

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Fortes da orla marítima cascalense – Espaços com vida!

            Guarda a orla marítima cascalense um conjunto de fortalezas que remontam ao tempo das Guerras da Restauração. Na verdade, tendo sido por Cascais que o inimigo invadira Portugal em 1580, importou desde logo, após 1640, reforçar por completo essa defesa, que outra não era que a defesa do estuário do Tejo e, consequentemente, a da capital.
Tiveram guarnição a maior parte desses fortes e baluartes precisamente até às Guerras Peninsulares, pois não poderemos esquecer que Junot se aquartelou em Cascais e nessa vila terá assinado, em 1807, a chamada Convenção de Sintra, após a 1ª invasão.
            Depois, pouco a pouco, deixaram essas fortificações de ter sentido do ponto de vista da estratégia militar; aparecerão outros conceitos de artilharia antiaérea e de costa e, por isso, usos diferentes se deram a esses imóveis e boa parte passou, mercê da assinatura de protocolos, para a responsabilidade municipal. Um vai ser Centro de Interpretação da Natureza e Centro para a Juventude; outro transformou-se em estalagem; um outro em hotel da ‘cadeia’ «Relais et Chateaux»; há um laboratório marítimo para pesquisas no plâncton; noutro funciona a Capitania do Porto; temos dois museus, uma futura casa de chá, uma colónia de férias…
            Enfim, toda uma panóplia de soluções, desde as faldas da Serra de Sintra até Carcavelos.
            Detenhamo-nos apenas sobre uma, decerto a menos conhecida da população: o Forte de Nª  Sr.ª da Guia, também conhecido como «Baluarte da Lajem do Ramil», por se situar perto da laje, por onde, a 30 de Julho de 1580, as tropas do Duque de Alba desembarcaram e iniciaram a tomada do nosso País. Um dos fortes da série construída logo após a revolução do 1º de Dezembro de 1640, no intuito de defender a capital de possíveis novas arremetidas, agora das tropas de Filipe IV: começou a ser edificado a 20 de Junho de 1642.
            Aí funciona o que primeiro se chamou o Laboratório Marítimo do Museu Bocage, da Faculdade de Ciências de Lisboa. É, desde o ano lectivo de 1974-1975, uma importante «unidade de investigação e ensino vocacionada para as ciências e tecnologias do mar» e, simultaneamente, desde Julho de 1998, uma unidade do Instituto do Mar (IMAR), instituição privada sem fins lucrativos. As disciplinas aí estudadas prendem-se com a Biologia Marinha, a Oceanografia Biológica, a Ictiologia, os Sistemas Estuarinos… E os temas das seis linhas de investigação ora em curso no Laboratório são os seguintes:
1)      Ecologia costeira, biodiversidade e mudanças climáticas globais;
2)      Ordenamento litoral, detecção remota e Sistema de Informação Geográfica;
3)      Variabilidade do recrutamento de pequenos peixes pelágicos;
4)      Ecologia das fontes hidrotermais (domínio profundo marinho);
5)      Ecologia de ecossistemas costeiros tropicais;
6)      Aquacultura (manipulação de reprodutores e qualidade de ovos e de larvas).
            Cá está, por conseguinte, um dos usos a que se prestou uma fortaleza da orla marítima cascalense, a mostrar bem como, afinal, estes importantes vestígios do passado, perdida a oportunidade da função para que foram levantados, podem continuar a ser – e são-no! – espaços com vida!
 
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 17, 09-10-2013, p. 13.

Na prateleira - 10

Os prémios
            Fiquei banzado! Eu que estava tão contente, que a minha terra estava a ganhar prémios em cima de prémios, «a mais isto», «a mais aquilo»… e vem-me aquele senhor garantir a pés juntos: «Hoje temos prémios para tudo! Banalizou-se!». Caiu-se-me a auto-estima, qual castelo de cartas!...
            E, no Dia Mundial de Turismo, no colóquio intitulado «O Turismo e a Crise: como dar a volta à crise e ter sucesso», o mui digno gestor hoteleiro do Grupo Pestana, Dr. Mário Candeias, explicou tintim por tintim o que queria dizer.
            Nesse dia 27, na verdade, haviam-se anunciado já mais umas tantas vitórias obtidas, nomeadamente no sector turístico. E Mário Candeias trouxe estatísticas, fez comparações e demonstrou que… nem tudo o que luz é oiro!
            Já tínhamos um pouco essa impressão; mas assim, com dados concretos, números reais… ficamos mais conscientes do que é uma boa máquina publicitária!

Igreja de Santo António em livro
            De acordo com a «Agenda do executivo» veiculada pela Divisão de Marca e Comunicação municipal, a 23 de Setembro, realizou-se, no dia seguinte, às 19 horas, no auditório da Casa das Histórias Paula Rego «o lançamento do livro “A Igreja de Stº António do Estoril, sua História, seu Património” pelo presidente da Câmara, Carlos Carreiras».
            Recorde-se que a Fundação Cascais editara, em Outubro de 1999, o livro, de João Aníbal Henriques, O Estoril e a Paróquia de Santo António – Notas para a Sua História. E se, então, António de Sousa Lara escrevera, na ‘Apresentação’, «Aparece, finalmente publicada, uma monografia do Estoril», podemos, agora afirmar que a reconhecida estância balnear tem sido alvo de mais atenção, de então para cá: Margarida Magalhães Ramalho viu publicada, em 2010, a sua obra Estoril, a vanguarda do Turismo (edição de By the Book): e João Miguel Henriques daria à estampa, por iniciativa da Câmara, a sua dissertação de doutoramento Da Riviera Portuguesa à Costa do Sol: fundação, desenvolvimento e afirmação de uma estância turística (Cascais, 1850-1930) (Edições Colibri, 2011).
            E se o livro A Escola Salesiana do Estoril, de Teresa Mascarenhas e Ana Macedo e Sousa (2003), já abordara, necessariamente, um pouco da história da igreja, pois que ela pertencia ao conventinho franciscano de Santo António onde os Salesianos se instalaram, certo é que, do ponto de vista específico da história religiosa, ainda havia lacunas que este novo volume – a que ainda não tive acesso – veio certamente preencher.

Estudos sobre Cascais
            Foram recentemente disponibilizados na Internet dois estudos que realizámos sobre temas da história cascalense: um trata do aproveitamento já feito e previsto dos fortes da orla marítima; o outro constitui o estudo mais completo sobre o período da Idade do Ferro na villa romana de Freiria, ou seja, o que se descobriu acerca da população que ali viveu antes de os Romanos chegarem.
            Aqui vão as referências:
            – CARDOSO (Guilherme) e ENCARNAÇÃO (José d’), «O povoamento pré-romano de Freiria – Cascais», Cira Arqueologia Online [Câmara Municipal de Vila Franca de Xira], n.º 2, Setembro de 2013, p. 133-180: http://hdl.handle.net/10316/24204
            – ENCARNAÇÃO (José d’), «Arquitectura militar – espaços com vida! O exemplo dos fortes da orla marítima cascalense», revista CEAMA (Centro de Estudos de Arquitectura Militar de Almeida), 1, 2008, p. 75-81 (versão inglesa nas p. 82-85): http://hdl.handle.net/10316/24359

Eleições
            Houve eleições autárquicas em Cascais. 62,01 % dos eleitores não votaram. Quase 6000 votaram em branco ou anularam o voto.


Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 17, 09-10-2013, p. 6.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Museu do Brinquedo em risco de encerrar?

           Todos os candidatos à Câmara Municipal de Sintra (à excepção de um) passaram pelo Museu do Brinquedo e foram unânimes em considerar que seria crime de lesa cultura não obstar ao seu encerramento. Aguarda-se, pois, que o Presidente eleito, grande apreciador e defensor do Museu, venha a apresentar uma estratégia para a sua sobrevivência.
Estamos, na verdade, perante um valioso património, de igualmente valioso interesse cultural, pois que o Museu tem sido considerado, pela imprensa nacional e estrangeira, como um dos melhores museus do brinquedo existentes. A previsão ‘governamental’ é a de que, a partir de 1 de Janeiro de 2014, a instituição deixe de receber apoio da autarquia, que tem sido de 5000 euros mensais, e, por outro lado, a instituição deverá passar a ser a arrendatária do edifício onde está instalada. Recorde-se que se trata do antigo quartel dos bombeiros, o qual, mediante concurso público de arquitectura, foi adaptado para acolher a colecção de brinquedos, obra que teve custos avultados, visto que houve necessidade de se proceder a completa reconstrução do interior.
A sua ocupação foi cedida à Fundação Arbués Moreira, com a condição de manter o Museu aberto, algumas entradas gratuitas para a Câmara e outras pequenas contrapartidas. Tudo foi cumprido, apesar das naturais dificuldades. O Museu fez exposições itinerantes no país e no estrangeiro, exposições temporárias na sede, empréstimo de peças; desenvolveu o serviço educativo de forma a garantir uma melhor e maior oferta cultural; participou em encontros internacionais de Museus do Brinquedo, onde foi uma referência; apoiou trabalhos de estudantes de vários graus do ensino, entre outros.
            Estamos, pois, na expectativa. Não valerá a pena lançar de imediato uma petição pública de apoio, porque se está convicto de que, enfim, tudo se resolverá pelo melhor. Há, porém, que estar alerta, para entrar em acção logo que seja preciso terçar armas por um projecto que a todos nos honra!
                   
Publicado em Cyberjornal, edição de 9-10-2013:

 

Reviver os anos 50

            A leitura de Histórias a Amarelo e Preto (Humor à moda de Soure), de Jorge Varanda, edição de By the Book (Lisboa, 2010), com o apoio da Câmara Municipal de Soure, sugeriram-me duas ou três reflexões de índole histórico-cultural.
            Na verdade, sob pretexto de contar histórias em que o humor desempenha primordial papel, Jorge Varanda acaba por evocar toda uma vivência dos anos 50 do século passado, que não é apenas a de Soure, mas, em muitos aspectos, a de todo um País, como, aliás, o próprio autor não hesita em consagrar. E esse é um aspecto deveras interessante, pois que existe sempre, por parte dos historiadores, algum pejo em fazerem história de tempos ainda recentes. Não é que Jorge Varanda tenha manifestado intenção de ser historiador, apenas um «contador de histórias»; certo é, porém, que essas histórias retratam uma sociedade, um modo de viver, um ambiente físico, edificado, geográfico, que, hoje, sem esse testemunho passado a escrito, acabaria por correr sério risco de se perder.
            Os jogos das crianças desse tempo em Soure eram os das crianças de Portugal. A evolução dos meios de transporte foi essa em toda a parte: «tracção animal, bicicleta, motorizada e automóvel»; «também meu pai seguiu essa lógica evolutiva: da bicicleta passou ao Cucciolo, do Cucciolo a uma Sachs e desta a um automóvel Fiat» (p. 57). Todos jogámos com bola de trapos («uma meia desirmanada, enchida com trapos ou uma quantidade apropriada de papel de jornal amassado e tornado consistente à custa de cordel de muitas voltas» – p. 112) ou «com a bexiga do animal [o porco] no cimentado da eira» (p. 80); alguns de nós comemos cobra por enguia ou lampreia e tivemos ânsias quando nos disseram da maldade (p. 118); todos falámos das «janelas tipo fenêtre» (p. 105) e chamámos à GNR «Grande Ninhada de Ratos» (p. 113); toda a gente nascia em casa, com a ajuda de uma ‘curiosa’ que já fizera os partos das mulheres da aldeia (p. 80-81); rimo-nos dos erros do pessoal dos registos que prantavam às crianças nomes estranhos, porque não percebiam a pronúncia; ser gordo era, por toda a parte, «uma raridade» (p. 110); as orelhas de burro e as palmatoadas constituíam os expedientes mais usados para castigar menino traquina ou preguiçoso; as botijas eram aquelas garrafas de grés acastanhado, do anis da Holanda (p. 93); as tabernas (p. 123), por toda a parte, os locais privilegiados de convívio (e hoje, felizmente, estão a ser recuperadas); todos seríamos capazes de, por desconhecermos como funcionava a luz eléctrica, pegar da naifa e cortar o cordão, arriscando-nos a apanhar um choque (p. 21); nos bailes, «damas ao bufete» (p. 100) era certeiro estratagema pelo País de norte a sul…
            Diríamos que estamos perante autênticos quadros de revista, prontos a ser encenados no teatro local ou em centro de convívio da chamada «terceira idade». De facto, este é livro que estará a fazer, não tenho dúvidas, as delícias dos que andam agora na casa dos 60 anos, até porque o autor sabiamente enquadra cada narrativa com um breve e assaz oportuno excurso histórico.
            Bem fez, pois, o município local em dar o seu apoio a esta publicação. Aliás, frisa-o bem a senhora vereadora, Ana Maria Treno, na abertura: «a magia das histórias que ouvimos na nossa infância», «com pessoas e acções vivenciadas em Soure». Outros municípios e freguesias estão, felizmente, a enveredar pelo mesmo caminho, cientes de que essas memórias – património imaterial! – contribuem eficazmente para cimentar comunidade e enraizar a população.

Publicado em Cyberjornal, edição de 9-10-2013:

terça-feira, 8 de outubro de 2013

«O Segredo Perdido», de Júlia Nery

            Graças à sua amizade, tenho acompanhado Júlia Nery desde que decidiu – e bem – partilhar a sua vida entre a docência e a escrita, em Cascais. Recordo o seu Pouca Terra… Poucá Terra… (1984); regozijo-me por ter conseguido que fosse Claire Cayron (a tradutora de Miguel Torga) a traduzir para francês o seu O Cônsul (1993). E ainda está fresco o Da Índia com Amor (2012) e já no horizonte mui louvavelmente se perfila o enigmático Prior do Crato, num incitamento ao estudo da História Pátria de que ora tanto se anda arredado entre nós.
            O Segredo Perdido, título que vem antecedido (ou seguido) de «Lisboa, Terramoto de 1755», foi editado pela Bertrand em Janeiro de 2005 (ISBN: 972-25-1392-3), na altura em que se comemoravam os 250 anos do cataclismo. Perdoar-se-me-á por só agora a ele me referir; contudo, mesmo com atraso, acho que será de interesse reflectirmos um pouco sobre o conteúdo desse romance histórico e o que de novo ele veio trazer-nos.
            Trata-se, no fundo, da história de um cofre, que andou de mão em mão desde o torvelinho do terramoto até cair, no dealbar do século XX, em usurária tenda de antiquário, onde uma jornalista (a autora) o descobre quase um século depois e verifica que, afinal, ele continha, escondidos, uma série de manuscritos, que lhe acirraram a curiosidade e a levaram a evocar as gentes que lhe estiveram ligadas:
            «Quando comecei a escrever, propunha-me seguir o percurso do cofre, entrando com ele pelas vidas e as épocas dos seus possuidores, assim como pelas “condicionantes” das suas vendas» (p. 183).
            No cofre se encontrava, pois, o segredo: as cartas. Não é este um romance histórico? E… História constrói-se com documentos! Eles aí estavam – a garantir a autenticidade de todo o enredo, alicerçado também, naturalmente, nas narrativas da época.
            Há, de permeio, uma ligação, querida à autora, aos judeus que, na acolhedora Lisboa da II Grande Guerra, por aqui passaram e jogaram no Casino do Estoril, em demanda do além-Atlântico: a venda do cofre ajudou a ressarcir dívidas de jogo e permitiu o pagamento da viagem, em Abril de 1942. E a jornalista tem os problemas destes primórdios do século XXI: depressões, altos e baixos… Entrelaçado com o drama de Beatriz, há, pois, o seu, atormentada como está pelo cancro da hipófise e pela separação de Walter.
            Júlia Nery, com base nas descrições da época, no que se sabe do eco enorme que o terramoto de Lisboa teve por esse mundo fora e, naturalmente, nas visões dos cataclismos de agora, traça um quadro realista do que foi o terramoto, os mortos, os sobreviventes, não fugindo também àquele realismo mágico (ai, aquela égua!...), de que, afinal, queiramos ou não, acabam por ser entretecidos os nossos dias, com tantos pormenores que nos escapam e que representam, sem disso amiúde nos apercebermos, essas ‘chamadas’ do Além… E serão os sobreviventes que prosseguirão na história.
            Descreve-se a reconstrução, as medidas tomadas; os violentos sermões do Padre Malagrida e, inclusive, ao pormenor, a sua morte a mando severo da Inquisição; o quotidiano das famílias nobres, seus negócios claros e obscuros, os amores furtivos: «Nocturnas escapadelas com destino certo a alcova de dona casada com marido protector ou ausente» (p. 57). Quem diria que o ódio dos Távoras ou aos Távoras andara envolto em reais enredos de saias!..

A sedução do convento
            Há muito que a vida conventual, o que lá enigmaticamente se passava ou passaria excita a imaginação alheia. Um olhar – também aqui, porque uma das personagens vai para freira e, naturalmente, contra a sua vontade… – que não será, porventura, estereotipado, ainda que se realce ser a vida em clausura resultante de malogrados amores, e sejam encarados os votos (de pobreza, castidade e obediência) numa óptica de imposições contra natura. Aliás, quiçá nesse horizonte – sempre aliciante porque, repito, estranho ao olhar comum – se encontrem ecos doutras leituras e será, decerto, óbvia a imediata evocação de Soror Mariana de Alcoforado e suas cartas de amor.
            É o delicioso fascínio exercido por aquela sempre demasiado pequena janela gradeada, elo subtil e único entre os dois mundos, o de fora e o de dentro, envoltos ambos – por um lado e por outro – em denso manto de intrigante mistério…
            Na p. 212 se desvenda o segredo: no convento, Beatriz recebe o cofre das mãos da madre e declara, na última carta:
            «Agora me pesam a revolta, a desobediência. Choro, pela saudade daquela Maria Antónia que eu era mas não me deixaram ser. […] Algumas páginas do meu diário e as nossas cartas guardará este cofre como única memória que de mim fica no mundo».
            Leitura acabada e recapitulação feita sobre a viagem pelo tempo empreendida: o drama de um amor impossível; o cofre de misterioso recheio que perpassa pelos séculos, de mão em mão…
            Plebeus, nobres e freiras… suas vidas, emoções, tormentas e favores desfilam, pois, por estas mais de 200 páginas, entrecruzando-se com a «Lisboa formosa» de 2000 a 2003.
            De capítulos curtos, não é leitura fácil de seguir, caso se não opte por ler tudo de carreirinha e assim se fixarem melhor os nomes e os relacionamentos das personagens envolvidas. Veja-se o índice: as 13 folhas do cofre mais as cartas de Beatriz e de Guilherme emolduram o capítulo fundamental «As vidas». E a narradora acaba por intrometer-se aqui e ali, não vá o leitor esquecer-se que é ela quem o guia por estas veredas da História, ela que também tem a sua história, tão dramática porventura como a das suas personagens: não constitui terramoto o mundo em que estamos obrigados a viver?
            «Passaram mais de dois anos desde o dia em que descobri o secreto do cofre e desdobrei na primeira folha de papel almaço, escrita a trinta violeta esmaecida, a história de Beatriz» (Janeiro do ano 2002, p. 210).

Frases que há a reter
            Sublinhei passagens a reter, dado que Júlia Nery, autora, tem no sangue a sua matriz de docente de Língua Portuguesa e, como tal, além de burilar a escrita, usa-a como veículo de reflexões outras, de mensagens que, em seu entender, devem obrigar o leitor a parar, quer para se extasiar com a beleza quer para voltar atrás e melhor observar, com olhar crítico, o mundo que o rodeia. Frases lapidares algumas, anotações singelas outras – mas sempre aureoladas de perspicácia a realçar:
            «Toma lugar na fila e encosta-se aos pensamentos que vieram a brincar na sua sombra» (p. 37).
            «São aqueles que mais sofrem quem menos odeia e melhor sabe perdoar» (/p. 41).
            «A gratidão dá frutos tão gostosos quanto o ódio destila mortíferos venenos» (p. 56).
            «A merda dos grandes às vezes é bom adubo na vida dos pequenos» (p. 57).
            «O conselho da moda: ter uma cómica por luxo, possuir uma dama por gosto, namorar uma freira por moda, casar com uma prima por amor» (p. 59).
            «Vida de pobre anda pelo mundo de jumento, sempre empaca no caminho, demorando ou não tendo tempo de chegar onde deseja. Não queiras tu, mulher, tocar o burro para a frente, pedindo-lhe pressas de corcel» (p. 62).
            «Seria pouco a pouco guardado num canto das suas afectividades, como se faz a um santinho de papel para marcar o salmo escolhido no missal» (p. 114).
            «Lisboa depressa odeia os que muito aclama» (p. 121).
            «É sempre contra vontade que mulher se despe de seus cabelos» (p. 143).
            «O homem engendrou angústias escusadas quando começou a dividir o tempo aos bocadinhos» (p. 167).
            «Tanto mais lenta é a mó moendo quanto seja fraco o vento e seco o rio que lhe dá força» (p. 210).
            «Aprendi que o grande sentido da vida é vivê-la» (p. 222).
            «[…] o êxtase do pôr do Sol, visão da morte para o renascimento, quando esta estrela se faz traço de união entre a terra e o mar» (p. 227).
            «Quero saborear a cidade prenhe de gente, a dádiva de harmonias deste tocador de ocarina encostado à austeridade granítica do prédio da esquina» (p. 228).
            «Espreito nas ruas estreitas do Bairro Alto intimidades a balouçar nas cordas da roupa» (p. 229).
            E por este Segredo Perdido também nós espreitámos intimidades!

Publicado em Cyberjornal, 08-10-2013:

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Carmen Dolores «No Palco da Memória»

            Tive ocasião de escrever acerca de Retrato Inacabado (Lisboa, 1984), o livro anterior de Carmen Dolores:
            «São páginas vibrantes de humanidade, a actriz a falar alto consigo própria, não em lamechice saudosa, mas num discorrer suave em que a cronologia não conta, as ideias prendem-se umas às outras, as recordações brotam» (Jornal da Costa do Sol, 25-04-1985, p. 19).
            Esta característica, de prosa escorreita, despretensiosa e singela pode igualmente apontar-se neste segundo livro: No Palco da Memória (Sextante Editora, Lisboa, Fevereiro de 2013, ISBN: 978-989-676-163-9).
            Trata-se, como o próprio título indica, de livro de memórias, bem ilustrado com mui adequadas e sugestivas fotografias; sem datas; sem gralhas. Dedicado ao marido («Ao Victor, companheiro exemplar, que não sei como mereci»), consagra-se como o resultado daquele impulso inevitável, no Outono da vida, que assalta quem muito viveu e sente a obrigação de partilhar a experiência longamente adquirida: C. Dolores nasceu a 22 de Abril de 1924, estreou-se na rádio aos 14 anos e decidiu terminar a sua carreira no teatro em 2005!
            Há, pois, no livro a arrumação do passado na 1ª pessoa: o que fiz, como fiz, o que senti, o que aprendi, o que ficou. Disso versam os capítulos «De mim», «Encontros e desencontros», «Da observação», «Da imaginação», «Da profissão», com especial realce para este último, onde Carmen Dolores se… confessa!
            Uma confissão a ser meditada, ainda que a autora se interrogue a dado passo: «Não estarei a repetir-me demasiado? Não serão banalidades o que acabo de escrever?» (p. 151). E explique: «Mas nada do que escrevo pretende ser didáctico ou pretensioso. São considerações minhas, baseadas em momentos vividos, contadas com sinceridade e escritas ao correr da pena» (p. 165).
            Depoimento importante, porém, para melhor se compreender não apenas a grande actriz mas tudo o que a envolveu ao longo dos muitos anos da sua actividade. Uma lição, de resto, para todos, nomeadamente os que almejam seguir a via artística como profissão e missão; e o repositório histórico do Teatro no decorrer do século XX que daqui se desprende revela-se bem oportuno, elucidativo e útil.
            Carmen Dolores observa argutamente a realidade. Deixa cair, aqui e além, como quem não quer a coisa, um apontamento sintomático, como, por exemplo, quando refere quem vai à inauguração de exposições: «Outros, que passavam para comer umas coisas, que àquela hora já apeteciam, fazendo dispensar a refeição da noite» (p. 44-45). Alude aos «beijinhos distraídos das mulheres apressadas» (p. 75); e ao «jornalista entrevistador, quando na televisão arma malcriadamente em juiz do político entrevistado, ali à sua mercê» (p. 91). Explica que, «no fundo, as pessoas vão ao teatro para se verem retratadas, para se encontrarem consigo mesmas, para aprenderem a conhecer-se melhor e a melhor entenderem os outros» (p. 99). Argumenta que «o actor tem de saber ouvir o público no seu silêncio» (p. 104); que estamos «nuns tempos em que já ninguém escuta ninguém» (p. 150). E recomenda que, «quando comentamos as atitudes dos outros, não esqueçamos nunca o espelho que nos reflecte a nós mesmos» (p. 150). E frisa, mais do que uma vez, o poder do louvor, a magia contagiante dos aplausos! Por vezes, até parece que se distrai e entra em diálogo com as pessoas de quem está a falar: «Nunca falámos nisso, nem ninguém o soube, mas eu jamais o esqueci, Ribeirinho!» (p. 48).
            Solta-se-lhe, de vez em quando, no seio dessa acutilante observação das gentes, a vontade de esmiuçar melhor o que vê. Assim, a magnífica e comovente história da mulher que sai da prisão (p. 70-73), um conto, diria eu, de antologia, que termina assim: «Atravessou o mundo sem conhecimento de ninguém, como se tivesse vindo do além e tivesse de novo partido, a caminho desse além…» (p. 73). Uma história pungente que, sem dúvida, amiúde se há-de repetir, sem que ninguém disso se aperceba! E morreu o Sr. Pires, porteiro do prédio; Carmen passou pela igreja de Fátima: «Àquela hora era ele o único morto e eu a única pessoa viva» (p. 51).

A sabedoria que a experiência dita
            E se em «Encontros e desencontros» temos desfile de personalidades com quem Carmen Dolores se cruzou e sobre quem, sem rebuço, dá a sua opinião, é em «De mim», «Da observação» e «Da imaginação» que mais sentimos o pulsar humano dessa experiência vivida. E daí será difícil não coligir algumas frases, para meditação maior, frases que no livro também eu sublinhei, como era hábito da artista: «Esta minha mania de sublinhar os períodos que me dizem mais!» (p. 40).
            «Não deixem o sonho fugir. Tranquem todas as portas» (p. 57).
            «Hoje já não há meninas à janela. Hoje, as meninas ou estão a comunicar com desconhecidos, através da Internet, em jogos, por vezes, perigosos de sedução ou a dançar freneticamente na night ensurdecedora» (p. 57-58).
            «Não parecia ter nome a filha da Senhora Duquesa. Talvez na intimidade… teria intimidade? […] E a Rosa, que é pobre, mas todos no bairro sabem que se chama Rosa, virá, feliz, corada, dar a mão à mãe, que também todos sabem ser Maria da Silva, costureira de alfaiate» (p. 68).
            «Em resumo: o Teatro deveria ser uma disciplina obrigatória, até como complemento da língua portuguesa» (p. 98).
            A última parte do livro constitui um registo: as personagens que interpretou (p. 119-170); o relacionamento com o cinema, a televisão, a rádio, «os admiradores e a Casa do Artista» (p. 171-198); «O que disseram de mim», colectânea de recortes (p. 199-243), de que destaca alguns depoimentos especiais (p. 245-254). Termina com uma pequena biografia.
            Se o primeiro livro foi Retrato Inacabado, este pode, na verdade, ser tido na conta de um complemento, a dar mais umas pinceladas de esboço no que foi (e ainda é!) uma vida rica, com muito para ensinar. E este No Palco da Memória (bonito o título, deveras!) compendia bastos ensinamentos!

Publicado em Cyberjornal, 07-10-2013:

domingo, 6 de outubro de 2013

Salesianos de Manique – 60 anos!

            Num ambiente muito familiar, decorreu, no passado sábado, 28, a comemoração dos 60 anos da ‘chegada’ dos Salesianos a Manique.
            O que é, hoje, no concelho de Cascais, uma escola de referência, dotada das mais modernas instalações, que servem não apenas os seus estudantes mas também à comunidade, foi, nos primeiros tempos, a escola de formação dos que desejavam seguir a vida monástica nas fileiras da Congregação Salesiana: o Instituto Missionário Salesiano.
            Aí funcionaram, sensivelmente até 1980, o Noviciado, o ano de reflexão antes de se proferirem os votos religiosos que constituíam a entrada oficial na Congregação; a Filosofia, cinco anos de estudo quer dos programas do Curso Liceal de então quer de programas específicos de aprendizagem do pensamento filosófico, nomeadamente católico. Houve, também, a princípio, a Teologia, último período, de quatro anos, antes da ordenação sacerdotal; mas depressa se pensou que tanto a Universidade Católica como outros centros de ensino salesiano espalhados pela Europa poderiam ser mais eficazes nesse complementar da formação, passando, pois, a casa de Manique a ser residência para esses estudantes salesianos até 1996. Hoje, na parte do edifício que era do Noviciado, funciona também uma residência, mas que acolhe os salesianos idosos, já retirados da actividade.
            No momento em que começaram a escassear as vocações, nomeadamente a partir da década de 70 do século passado, os Salesianos compreenderam que se tornava necessário – na sequência da abertura à comunidade, através do chamado «oratório» dominical – optar por seguir o que sempre fora a vocação salesiana: levar por diante o projecto de fazer ali uma escola, fiéis, portanto, à intenção da benfeitora, Dona Maria Carolina de Sousa Lara, que, um dia (e isso foi recordado nas cerimónias de sábado), em 1952, bateu à porta do gabinete do Padre Bartolomeu Valentini, então director da Escola do Estoril, e – transcrevo o testemunho do sacerdote – «me convidou a ir dar um passeio: meti-me no seu carro e ela trouxe-me a Manique, que eu nem sabia onde era. Mostrou-me uma quinta enorme, fantástica, muito bem organizada, com uma vacaria, poços e um pomar: ‘Isto agora é tudo seu, faça o que quiser! Se quiser vender esta noite, pode vender!’».
            Ali funcionou, pois, entre 1970 e 1980 um posto de telescola; e, depois de 1980, o ensino directo: escola básica, primeiro, e pouco depois secundária também.
            No sábado, houve cerimónia evocativa no moderno auditório junto às piscinas, com a presença de uma centena de amigos, antigos alunos, alunos, docentes e colaboradores (aos mais diversos níveis). O salesiano D. Joaquim Mendes, que chegou a ser director da Escola e ora exerce a missão de bispo auxiliar de Lisboa, historiou, a traços largos, a vida da instituição. O provincial, Padre Artur Pereira, congratulou-se com a actividade de excelência aqui desenvolvida e, a terminar, o Director, Padre David Bernardo, agradeceu as presenças e salientou como o trabalho feito resultava do esforço conjunto de toda uma vasta e dedicada equipa.
            Seguiu-se a Eucaristia, celebrada por D. Joaquim Mendes e concelebrada por mais de duma dezena de sacerdotes salesianos (alguns dos quais vindos de outras casas da Congregação). O almoço coroou, depois, em convívio, uma comemoração sentida.

Publicado em Cyberjornal, 04-10-2013:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=18914&Itemid=67
Transcrito no Boletim Salesiano nº 541 (Novembro/Dezembro 2013), p. 24-25.