domingo, 24 de novembro de 2024

Apanhar uma aberta!

             – Olha, apanhei uma aberta e escapei-me!
            Atentei no que acabara de dizer e pensei em dois aspectos do nosso quotidiano, para além da natural alegria de termos chuva num Algarve que dela tão precisado andava:
– Primeiro, no significado da palavra «olha», neste contexto, que não é propriamente o do verbo ‘olhar’, mas sim, neste caso, uma palavra-bordão, daquelas que usamos para iniciar uma conversa, sem terem um significado preciso, uma locução verbal, poderia chamar-se; noutras circunstâncias, porém, «olha» funciona como chamada de atenção: «Olha lá, não te molhes!».
– Depois, no significado da palavra «aberta», intervalo se imagina curto entre duas chuvadas; não se apanhou nada, concretamente, como quem apanha uma sova ou um graveto do chão, mas aproveitou-se.
Ambos os exemplos me levaram a duas outras reflexões: à necessidade de continuarmos a usar as nossas palavras lídimas, as que os nossos avós nos transmitiam e a ensiná-las às nossas crianças; e, por outro lado, a uma preocupação de irmos explicando essas palavras à comunidade estrangeira com que já diariamente convivemos.
Quantas das nossas crianças saberão hoje o que é uma morrinha, cacimbar, «agora, está sereno», chuva de molha-tolos? Se, nesse âmbito, quisermos ir mais longe, até poderemos falar do tempo de cacimbo em África; ou da «morriña» galega, aquela tristeza que, qual saudade, por nós perpassa quando sentimos a falta de alguém.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 336, 20-11-2024, p. 13.

O retiro

            Está a ouvir-se bastante esta palavra ‘retiro’.
            No tempo da minha formação, ‘retiro’ significava a semana em que um grupo de jovens, devidamente orientado, se retirava para um lugar isolado – amiúde, um convento ou mesmo uma ‘casa de retiros’ – para, em reflexão, pensar no seu modo de vida e na forma de o melhorar e mais confortavelmente corresponder ao que almejavam ser os objectivos das suas vidas.
            Ouvi-a, há dias, no programa do Herman: Cuca Roseta preparava-se para ir fazer um retiro na Índia. O Oriente, berço de religiões como o Budismo, o Bramanismo… parâmetros de vida em que se privilegia o autodomínio, o pensamento disciplinado a disciplinar os nossos gestos e emoções.
            O Prof. José Mattoso, após uma vida bem activa de historiador, antecedida, como foi, da reclusão monástica, retirou-se para uma aldeia perdida nos arredores de Mértola. Meu amigo e colega João Roque, aposentação chegada, regressou à terra natal, Calvos, bem no interior beirão, para viver o contacto diário com a Natureza e a agricultura – e desse gozo nos dá conta nas suas crónicas.

            Soube o imperador romano Augusto, no século I, rodear-se de poetas para lhe amenizarem as dores da governação. E lá esteve Ovídio, por exemplo, a cantar as delícias do campo, mezinha segura contra as irrequietas maleitas urbanas. No século IV, isso compreenderam melhor os cidadãos romanos e deram em refugiar-se nas suas casas de campo, as villae, bem adornadas de mosaicos com requintadas cenas da mitologia antiga para lhes dar recreação e redobrada atenção aos agrícolas lavores. Muito mais tarde, não foi ao seu retiro de Vila Viçosa que os conjurados de 1640 tiveram de ir buscar o Duque de Bragança, que aí procurava pôr em prática o que D. Francisco Rodrigues Lobo preconizara no seu livro A Corte na Aldeia, publicado em 1619?
E não estão agora de moda, nas televisões, os programas a mostrar famílias que decidiram aproveitar os campos de seus antepassados e aí cultivarem, aperfeiçoando procedimentos ancestrais, não apenas o que era habitual mas também produtos inovadores? E não se mostram imagens serenas desse novo viver, em que não falta uma carícia aos animais que, serenamente, ali com os humanos agora convivem? E há um lento passeio de burro ou a caminhada logo pela manhã ou quase ao sol-pôr a ganhar forças ou a sorver, a longos haustos, a pureza de um ar despoluído…

                                                    José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 871, 15-11-2024, p. 10.

sábado, 19 de outubro de 2024

Os nomes das ruas

             Não, longe de mim a ideia de substituir-me a António Cabral, que, mui religiosamente, mantém a sua oportuna rubrica «Olhar a toponímia» no nosso Notícias de S. Brás. Oportuna, porque ajuda a criar comunidade, na medida em que, recordando os nomes das ruas e das terras, as pessoas sentem tudo muito mais próximo, muito mais nosso.
            Permita-se-me, porém, que, como historiador da cultura, realce a importância que a cronologia detém neste âmbito; ou seja, a resposta à pergunta:  por que razão a esta rua foi dado esse nome?
Repare-se, a título de exemplo, no caso citado pelo nosso prezado António Cabral na edição de Setembro: Maria Bárbara Louro morreu em 1929; o seu nome foi dado à rua em 12-01-2016, quase 100 anos depois! Porquê? Que é o que diz a ata nº 1/2016, da reunião camarária em que tal decisão se tomou? Só tantos anos passados se lembram da senhora, porquê?

            Veja-se o exemplo desta rua de Beja, que a figura mostra.
Século XIX adiante, ainda não havia placas nos arruamentos, era a Rua dos Mercadores. Ali se faziam os negócios, ali se ajuntavam os burgueses. Mais tarde, os mercadores perderam o seu ar de ambulantes e estabeleceram-se; vai daí, o povo deu em chamar-lhe a Rua das Lojas. Vieram depois as danças e contradanças da I República, hoje está no poder um partido, amanhã está outro, e a população acaba, em determinado momento, por depositar em Afonso Costa as suas sempre adiadas esperanças. Vitoriaram a sua subida ao poder e nada melhor do que afixar o seu nome na artéria mais frequentada da cidade, que se tornou, por isso, a Rua Dr. Afonso Costa. E não se esqueceu o seu título académico, como garantia de validade!
Está a tornar-se comum esta mui louvável atitude de dar conta dos nomes antigos. A praça principal de Coruche tem, na sua placa toponímica, um bonito azulejo: Praça da Liberdade / antiga / Praça 5 de Outubro / e / Praça do Comércio. Em três penadas, mui incisivo registo da história local: o ponto de encontro dos homens de negócios do século XIX saudou a implantação da República e proclamou a Liberdade que 25 de Abril lhe concedeu!

                                                           José d’Encarnação 

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 335, 20-10-2024, p. 13.

Desculpas

            Passado o tempo estival em que, quer chova quer vente quer haja um calor de rachar, ainda nos habituámos (nós e as instituições) a, no possível ripanço de férias, deitar contas à vida e fazer projetos. Multiplicam-se, por isso, em Setembro e em Outubro, as iniciativas, nesta vontade em que todos andamos de fazer, fazer, fazer, antes que seja tarde, antes que o terramoto surja ou aquela desvairada bomba catapultada por desvairada gente a todos nos leve desta para melhor.
            Por conseguinte, queiramos ou não, temos de pegar na agenda, dado que ainda não é tempo de nos fecharmos no casulo ou numa qualquer arca encoirada. Vamos deixar isso para daqui a muitos anos (esperança vã, mas também se diz que a esperança não pode sequer fenecer). E, avaliadas as propostas, aceitar-se-ão umas em detrimento doutras.
            Quando as descartadas até são de alguma monta, há que descobrir uma desculpa, que é, como a palavra indica, uma forma de dizermos quanto estamos penalizados, quanta culpa sentimos, por não podermos aceder ao convite.
            Engendra-se, por vezes, o que se chama uma desculpa ‘esfarrapada’, porque, amigo, aqui para nós, quando não nos apetece mesmo sair de casa e ir à exposição ou à apresentação do livro ou àquela inauguração, porque lá iríamos encontrar fulano ou fulana e já chega o que aguentámos no passado… se não nos apetece, qualquer desculpa serve, mesmo a mais mirabolante. Aliás, amiúde o que ora acontece é que não se apresenta desculpa nenhuma e, depois, quando nos perguntam «Ai houve? Não recebi comunicação! Sabes, hoje a Internet funciona cada vez pior, anda tudo sobrecarregado, ele há bué de mensagens que se perdem!»…
            Andas numa fona a – finalmente! – arrumar os livros. Decidiste agora que essa é  tarefa inadiável e que não pode parar. A amiga do peito vai apresentar um livro; seria uma ocasião de a reveres e, até, de espaireceres um pouco dessa árdua tarefa dos livros. Preferes não ir. Mais tarde arrependes-te, porque perdeste uma oportunidade e os livros ainda continuam por arrumar, porque, a dado momento, deparaste com um de que já te não lembravas e paraste a reler…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 870, 15-10-2024, p. 10.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

50 000 EUROS! – e o povo aplaude!

    
        Claro, não é o Povo. É aquele grupo mais ou menos fiel de pessoas que – porventura a troco de umas moedas – se disponibiliza a estar ali, nos dias aprazados para a gravação, disponível para bater palmas por tudo e por nada, porque há o mestre-sala a comandar, agora é palmas, agora é palmas. Mormente palmas, muitas, para os trocadilhos que o apresentador faz sempre questão de, solenemente, com toda a pompa e circunstância, dizer, a propósito ou a despropósito da profissão do concorrente, «aí vai mais uma forma de eu introduzir a…» presença da voz off! Há quem não resista a perguntar onde é que ela está, a Patrícia Figueiredo, e o certo é que é omnipresente! Vasco Palmeirim faz, nessa altura, um cagaçal tão grande e atropela tanto as palavras que, amiúde, nem se consegue perceber bem o trocadilho!
            Mas não é do espalhafato do Vasco que ora importa falar. Ele é assim, foi a imagem de marca que criou, de baixa estatura (como está sempre a dizer), sem barba e sem carta de condução. Um fenómeno! Usado também para o taskmaster e, agora, para o floor. Não, também esses são fenómenos, porque mostram como a televisão portuguesa dobra a cerviz perante a estrangeirada e os senhores que mandam se vêem obrigados a usar não nomes portugueses para os programas mas nomes vindos da estranja, que os criadores deles não abdicam para ganharem o que lhes é devido. Não vamos, porém, por aí, pelo menosprezo oficial da riqueza imensa do vocabulário português, mas pelos dividendos, o que se paga, o que custa aos cofres do Estado, (ou seja, diz-se, a cada um de nós).
            Os 50 000 euros de cada sessão? É disso que o senhor está a falar? Os 50 000 euros do prémio máximo cujo anúncio em cada programa é bem sonoramente aplaudido, como, aliás, o está agora a ser esse tal de floor, que é um chão dividido em parcelas miudinhas com vontade de serem maiores, a lembrar as muradas que protegem as videiras na ilha do Pico? Não. Esses 50 000 euros saem só quando el-rei faz anos e o algoritmo está seguramente bem adestrado para dificultar a subida a esse cume!
            O que mais admira – e disso ora se quer falar – é o à-vontade, a desfaçatez, a descontração como somos presenteados dia sim dia não, quando não em dias seguidos, com sessões (50 000 euros!...) que já passaram e que, na ausência de qualquer indicação do género dum ainda que envergonhado REPETIÇÃO, pretendem dar a entender ao espectador que, mais uma vez, a RTP 1 põe a hipótese de alguém vir a ganhar um prémio chorudo. Sim, é mais uma vez não porque se trate de nova sessão, mas porque é, como sói dizer.se, «mais do mesmo!», essa sessão já foi! E a gente até maldosamente pergunta: «Será que ele puseram isto agora de novo, para o desgraçado que ganhou, há uns meses, 3000 euros ainda os não recebeu e, assim, vendo a sessão de novo, se lhe vai reavivar a esperança de os vir a receber um dia? Ou será, ao invés, com um bem generoso propósito pedagógico de mostrar a supina ignorância do concorrente que desconhece o nome do rei que está a cavalo no Terreiro do Paço e de incitar, por isso, o espectador a estudar mais sobre o seu País?
Compreende-se que a RTP não nade em abastança financeira. Mascarar desta forma a indigência não parece, porém, de bom tom e boa educação, quando se trata de um serviço público que deve pugnar pela Verdade (sim, Verdade com letra maiúscula!). Haja tento.
Não sei se nas redes sociais e na Comunicação Social o tema já terá sido verberado, Porventura foi e eu, nesse caso, meto a viola no saco, deserto, todavia, por saber se já houve essa ‘observação’ e, sobretudo, se os responsáveis pela RTP deram alguma resposta para não lhe ligarem nenhuma.
Fico à espera. Sentado, claro! Porque eu próprio já falei nisso à senhora Provedora e ela, coitada, decerto encaminhou a conversa para as instâncias superiores e… tudo ficou na mesma. O caso ocorreu quando o joker já passara a ter como prémio máximo 50 000 euros e apareceu  no alinhamento, alegremente, um da série anterior de prémio menor. E lá fomos cantando e rindo!...

                                                           José d’Encarnação


Publicado em Duas Linhas, 2 de Outubro, 2024: https://duaslinhas.pt/2024/10/50-000-euros-e-o-povo-aplaude/

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Participar

            Curioso ter este termo duas concepções distintas: dar parte e fazer parte.
            De «dar parte», por seu turno, outras duas há também: a que se encontra na expressão ‘dar parte de fraco’ e estoutra bem patente em «eu vou dar parte à Guarda». No fundo, porém, ambas se resumem em ‘comunicar’, ‘dizer’.
            Fazer parte, por seu turno, já não é uma atitude isolada, implica ligação: faz-se parte duma decisão, faz-se parte duma colectividade, duma família. Uma ideia que existe também no verbo ‘participar’, quando se fala em «participar numa festa», «participar num concurso».
            Habitualmente, os autarcas – qualquer que seja o seu quadrante político, cronológico ou local – incitam o Povo a participar. Ou melhor, até proclamam ‘eu gostava muito que o Povo participasse mais’; no fundo, todavia, é raro depois agilizarem essa participação, por exemplo, mediante intervenções na assembleia municipal ou mesmo na própria sessão camarária, mediante a adopção de algumas naturalmente necessárias formalidades.
            Grande inovação foi o recurso ao Orçamento Participativo, a  tentativa de incluir no orçamento algo em que a população tivesse particular empenho. Começou uma Câmara, já é capaz de não se saber qual, e o costume alastrou. A participação é pelo telefone, geralmente, nem sempre grátis. Nos concursos da televisão, a gente já sabe como é, até nem o IVA tiram, os gulosos! Aquilo deve ser uma máquina de fazer dinheiro. Será que alguma vez se saberá pera onde é que esse dinheiro vai?
Pois no Orçamento Participativo, tal como nos concursos televisivos, o poder económico dos eventuais participantes é que conta. Tens muito dinheiro disponível e queres que fulano ou que determinado assunto vá prá frente? Paga!
Lembram-se (foi voz corrente na altura) que determinado autarca, para que a festa tradicional da sua terra ganhasse um prémio de entre as mais célebres, não hesitou em lançar mão do erário público, sob pretexto de que se tratava de investimento. Mesmo assim não ganhou.
Precisávamos nós de um mecenas de mãos rotas para que, em ocasião de concursos, a Festa das Tochas Floridas ganhasse maior repercussão. Entretanto, sempre que pudermos, não hesitemos em participar, estar presentes! Quem não aparece esquece, já se sabe.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 334, 20-09-2024, p. 13.

 


A tertúlia dos anciãos


    
        Pelos vistos, há, em todas as terras, onde ainda nos é dado conviver, um lugar onde, a partir do meio da tarde, os anciãos se reúnem após a sesta. Todas as conversas se admitem.
            No lugar da Abóboda, sito no interior do concelho de Cascais, há – ou houve – o BPM, designação brejeira para caracterizar os seus frequentadores habituais: o Banco dos P. Murchas. Em Palmela, em vez de um, se bem compreendi, há dois: um é o da vara cível, outro da criminal, em jeito de Tribunal da Má Língua.
            Por essas tagarelices ao entardecer transcorrem saudades, vituperam-se ou louvam-se governantes, comenta-se a zaragata ou a festa, é-se capaz de um amável piropo («devia ser proibido ter uns olhos tam bonitos, menina!»), decretam-se novos regulamentos e atira-se amiúde o Governo pràs urtigas, por não saber ouvir a voz do Povo e lá dizia a Madalena no “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett, «Voz do Povo voz de Deus, minha senhora mãe!».
            Acho que os autarcas deviam ir, de vez em quando, até esses bancos, desde que não lhes adregasse ou tivessem outra pachorra e convidarem esses anciãos a irem tomar um copo lá nos Paços do Concelho para uma tertúlia – o que até nem seria má ideia, não!
            Consciencializei, há uns tempos, que a palavra «tertúlia» terá derivado das conversas que o filósofo cartaginês Tertuliano (que viveu entre os finais do séc. II da nossa era e os primórdios do III) organizava com a sua gente. Sabe-se que o costume se revitalizou com os cafés em França, nos prenúncios da Revolução no século XVIII e que, em Portugal, pelo Chiado, dada a abundância de cafés, pululavam as tertúlias em que se envolveram os nomes conhecidos da Cultura lisboeta do século XX.
            Além desses bancos ao ar livre, de má-língua, cada terra tem – e não pode perder! – a tradição do encontro num dos estabelecimentos locais: o Majestic no Porto, o Santa Cruz em Coimbra, o Aliança em Faro, o Ervilha em S. Brás de Alportel, o Café Calcinha em Loulé, o Armazém do Caffè em Viseu, o Café Melro em Mangualde… Houve em Cascais, pelos anos 60 e 70, o Brisa, o Boca do Inferno, também a esplanada do Baía… Outros se precisam de criar. Lugares emblemáticos, que jamais se deviam perder, porque aí se fomenta comunidade, nascem ideias e todos nos sentimos mais solidários!                                
 
                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 869, 15 de Setembro de 2024, p. 10.

sábado, 31 de agosto de 2024

O correio

           
             «– Será do seu António, será – respondeu o insensível funcionário. – O que lhe posso dizer é que traz obreia preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquelas sinistras palavras.»
Muitos se lembrarão desta passagem d’A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis. Uma das cenas mais bem descritas, mais emotivas e mais reais duma aldeia em que a comunicação com os entes queridos era por carta, muito de longe em longe. Carta que, para obter resposta, necessitava da ajuda do menino ou da menina que lograra estudar até à 4ª classe e sabia já os trâmites «Meu saudoso Jorge, estimo que estas regras te vão encontrar com saúde; nós por cá bem felizmente».
Ainda mexe também com muitos de nós o «Postal dos Correios», de Rui Veloso, música singela mas tocante dos Rio Grande: «Querida mãe, querido pai, então que tal? Nós andamos do jeito que Deus quer». Neste caso, não a emigração para o Brasil ou para Franças e Araganças do tempo de Júlio Dinis, no século XIX, mas a vinda da província para a cidade a partir de meados do século XX. Para já se não falar dos aerogramas da guerra colonial, entre 1964 e 1974…
Agora, o telemóvel, a videochamada galgam fronteiras, matam saudades, num abrir e fechar de olhos. De vez em quando, porém, os que já levamos algumas décadas de vida
– somos capazes de ficar sensibilizados, ao ver, em Londres, os marcos de correio como eram os da nossa meninice;
– somos capazes de, ao ter de escrever correcto e bem visível o código postal, nos lembrarmos que, na década de 50, bastava pôr o nome e «Lugar de Birre – Cascais» e o carteiro conhecia todos os moradores do lugar e sabia bem onde entregar, mesmo que fosse na taberna, que o destinatário vinha buscar;
– somos capazes de compreender quanto era doloroso para o Domingos Barradas, de 7 aninhos, para ganhar uns tostanitos com que ajudava a sopita, palmilhar, descalço, todos os dias da semana, os 7 quilómetros entre a Vendinha e Montoito, carregado com os sacos do correio (como era bom ter boleia da carroça que adregasse passar!...);
– somos capazes de recordar que, na Linha do Sul, se podia tomar, à noite, o comboio-correio, do Barreiro a Vila Real de Santo António, com mais demorada paragem na Funcheira, estação ainda hoje lembrada (mas, infelizmente, só lembrada!) como «ponto de junção das linhas oriundas de Setúbal, do Algarve, e do eixo Évora-Beja».

                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 868, 15 de Agosto de 2024, p. 10.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

A esteira

            Foi uma das primeiras sensações estranhas que, como epigrafista, tive, quando, em Outubro de 1989, desembarquei, pela primeira vez, no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro: as bagagens iam ser-me entregues numa… esteira!
Pasmei; mas o pasmo depressa deu lugar à admiração, ao verificar, nos dias seguintes dessa estada, que muitas outras palavras ‘clássicas’, do nosso quotidiano falar d’outrora, o brasileiro mantivera. A mais conhecida será, porventura, para os que lidamos com a temática histórica, o tombo. É certo: mantemos a Torre do Tombo; mas, no Brasil, não se fala «classificar um prédio» e sim «tombar»!
E dei comigo a pensar nesta palavra, que – usual no Algarve, porque nos habituámos às esteiras e aos capachos de empreita – em linguagem citadina logo vai para a desgraça: «Coitados, nem cama têm, dormem numa esteira!». E essa, porventura, nem esteira é, mas ‘tapete’, que é, aliás, o vocábulo usado oficialmente nos nossos aeroportos.
Fui ver (já é mania!...) donde é que vinha a palavra. E não é que vem do latim ‘storia’? Exacto: com o mesmo som, praticamente, de «historia»!
E isso me fez lembrar uma outra sensação, essa (curiosamente!) em Maio de 1968, ao ver, junto à Koutoubia, em Marraquexe, um ancião, sentado de pernas cruzadas numa esteira, rodeado de ouvintes: era um contador de histórias! Situação que nos leva de imediato a pensar no «tapete mágico» – e não na esteira… – das histórias das Mil e Uma Noites.
Esteira seria, de facto, pouco prática para voar e mesmo também o é para nós se, nas calmosas tarde do Verão algarvio, nelas nos queremos esticar: há que pôr uma mantinha por cima!

E, para os figos, a esteira é outra, não de palma, mas de cana; e, aí, sempre ganha asas, como o tapete mágico, demanda terras orientais e exige que a ponham, mais os seus figuinhos ao sol, em lugar solene, com nome a condizer com a sua elevada categoria artesanal: o almanxar! Ora toma! Assim, quando a brandura começar a ‘cair’ (e agora já não é precisa, pois os figos estão é a secar!), lá virá, sorrateira, a dona da casa e mui cuidadosamente tudo enrolará e guarda. Amanhã, outro dia será!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 333, 20-08-2024, p. 13.

 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Gorpelha

            Sempre me encantou a gorpelha.
Desde pequeno.
O jeito de se fazer em palma aquele sacão enorme que se punha sobre a albarda do animal – o burro, a mula… – assim a modos dos alforges.
Só que os alforges tinham um ar mais feminino, feitos (parecia-me) de retalhos coloridos, e serviam para lá pôr, dum lado e doutro da albarda, coisas delicadas, que a senhora comprara na feira. E sobre os alforges por serem de pano, podia a senhora sentar-se de lado, sem problemas de segurança.
A gorpelha, não. Ainda que obra de mãos femininas, claro, era objecto para ser manuseado por mãos calejadas. Lá se transportavam as alfarrobas. Menos as amêndoas que sempre me lembro de as ver em sacas, que amêndoa exige mais delicadeza de trato. Alfarroba, não. Tem casca rugosa, é comprida e ajeita-se bem na gorpelha. Também o feno. Acho que me lembro de se pôr feno na gorpelha. Feno e folharasca para a cama das bestas.
Grande invenção a gorpelha!

            E, portanto, além de ter pedido ao Emanuel Sancho que, da sua preciosa colecção, me cedesse uma foto ilustrativa (aí vai!), fui investigar a origem do nome.
Dir-me-ão logo que é golpelha que se escreve e não gorpelha. Esclarecerei que há as duas formas. Golpelha é mais difícil de pronunciar, até porque duas sílabas seguidas com l (gol e pelh) a gente gosta logo de fazer a dissimilação e mete o r. Acrescentar-se-á que, do ponto de vista etimológico, da origem da palavra, gorpelha (com r) é que está correcto, porque deriva da palavra latina «corbicula», que se encontra registada na obra do agrónomo latino Paládio (livro 3, 10.6), com o significado – imagine-se! – de «cesto pequeno». De pequeno passou a grande no Algarve (as manigâncias que a língua traz!...); e o «b» passou a «p», que é mais fácil de pronunciar.
            Anote-se: a, por vezes, indicada, origem da palavra a partir do latim «vulpicula», ‘raposa pequena’, não pode ser senão… anedota! Quanto a ser de esparto, não nego que possa ser; eu sempre a vi de empreita. Quanto a servir para transporte de fruta, amigos, vocês acham?

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 332, 20-07-2024, p. 13.

 Post-scriptum: a fotografia gentilmente enviada por Vítor Barros:



quinta-feira, 18 de julho de 2024

Vadiar

            Confessava, há dias, a um amigo a minha enorme costela de preguiçoso: procuro sempre escolher os caminhos mais fáceis, dou vazão quase imediata aos assuntos simples… «Este já está! Vamos a outro!». A pessoa fica aliviada e pode preguiçar um pouco antes de se meter noutro embaraço.
            Desse amigo recebi, em resposta, uma frase lapidar:
«A preguiça é um direito para quem trabalha!».
            E mais preguiçoso fiquei.
            Porventura, mais consciente de que muita razão tinham os Romanos, quando procuravam conciliar o ‘otium’ com o ‘negotium’, um o contrário do outro, para contrabalançar.
            Por isso me alegrei esta semana, ao receber carta de uma colega brasileira: aposentada há já algum tempo, está agora com um dos filhos a descobrir, finalmente, a terra italiana donde seus antepassados fugiram para o Brasil, por ocasião da II Grande Guerra. E recebi uma outra, de um casal amigo, francês, aposentados desde há pouco: andam a descobrir o Peru!
            Por isso, há tempos, pus a cabeça entre as mãos, ao saber, de dois outros grandes amigos meus, ele e ela. Ela, então, muito da minha amizade, cúmplices de muitas andanças. Outro dia, num jantar, explicou-me ele porque se haviam divorciado, embora continue a gostar dela. É que vivia para o seu trabalho: ela, docente, não tinha tempo para ele.
– Vamos dar um passeio?
– Desculpa, não tenho tempo, tenho um monte de testes para ver.
Era sábado, hipoteticamente dia de pausa…
Conclusão: vadiar é preciso!
          O tempo atmosférico não está, de facto, agora para vadiagens ao ar livre, porque tanto há calorzinho agora, como, daqui a pouco, surge, de repente, no horizonte, uma nuvem bem cinzenta e dá em despejar-nos o cântaro em cima! O segredo está no aproveitar: há uma nesga de sol? Vamos dar já um giro! Se houver horários a cumprir, paciência! Vamos aproveitar quando os não haja, porque, é verdade, vadiar é mesmo preciso!

                                               José d’Encarnação

            Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 867, 15-07-2024, p. 10.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Renascimento

             Já são mais de 300 as crónicas que este jornal me albergou e ainda não me interrogara sobre qual o motivo porque lhe terão dado esse nome. Constará das crónicas; estará, eventualmente, explicado no editorial do 1º número. Prefiro, todavia, atribuir-lhe eu uma razão, passível – ou não – de acertar no prognóstico.
            Explico-me.
            Nas pausas da escrita, deambulo pelo jardim e admiro o evoluir das plantas e, sobretudo, das flores: ontem, era botão, hoje desabrochou; ontem, ostentava as pétalas ao vento num chamariz de insectos para os estames gulosos, hoje está com vontade de me dizer que o seu ciclo vistoso por ora acabou. Mal a luminosidade dá em diminuir há pétalas que se recolhem, como pestanas a proteger a visão, há folhinhas que se encostam umas às outras, num acoitar protector…
Cycas revoluta
          
            Muito me apraz saudar, pelos finais de Maio, a cycas revoluta, nome científico de uma palmeirinha anã, de jeito pré-histórico, qual bonsai. O nome comum é sagu-de-jardim. Do tronco lhe saem compridas folhas, alargando-se em pavoneante copa. E por esses finais de Maio, chama-me: é que o meio do tronco se prepara para eclodir e, mui suavemente, em movimento lentíssimo e imperceptível, as folhinhas muito chegadas unas às outras, protegidas por um manto de penugem (dir-se-ia), vão crescendo e desprendendo-se. Fotógrafos especialistas da vegetação decerto já puseram uma câmara ao pé para, no decorrer dos dias, a objectiva ir disparando e proporcionando, assim, a visão acabada do que é, a meu ver, uma verdadeira maravilha. Semanas após semanas, até o verde viçoso se espreguiçar em leque.

            Daí me surgiu a palavra. «Renascimento», para título de jornal regional, é auspício e é programa de luta:
– auspício, por cada número veicular notícia de iniciativas inovadoras, vontade de renovação dinâmica;
– programa de luta, porque há que espicaçar os menos audazes, sugerir outros caminhos, apontar metas, sacudir da modorra em que amiúde há a tentação de se ficar.
A carruagem está em andamento? Deixemo-la ir, que a inércia se encarregará do empurrão. Não é verdade: o movimento da inércia não é, como poderia pensar-se, mais veloz à medida que se aproxima do fim: vai adormecendo, adormecendo. E esse adormir já não interessa a ninguém.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 866, Junho de 2024, p. 10.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Alfarroba

Que poderá incluir-se numa crónica a que se dê o título de Alfarroba?
Sei que o nome já foi adoptado para designação de estabelecimentos comerciais. Acerca da genuína e antiga utilização do fruto para alimentação dos animais domésticos – o porco, o burro, a mula, o cavalo… – nada poderá acrescentar-se, a não ser garantir que isso foi outrora e, nos nossos dias, à alfarroba se reservam outras especialidades mais gostosas e de maior rendimento, que as bestas se alimentam agora com rações artificiais, genericamente alteradas. Estamos conversados.
            Consegui que, num dos recantos ajardinados do meu bairro suburbano, se preservasse a alfarrobeira que por lá espontaneamente crescera, ao pé duns carrascos. Também no Casal Saloio de Outeiro de Polima, o Centro de Interpretação do Espaço Rural de Cascais, se implantou no pátio interior uma oliveira e uma alfarrobeira, árvores simbólicas, na intenção de lembrar que, nessa região saloia, muito sangue algarvio ainda corre. A do Casal não vi bem como é; a do meu bairro é brava, não dá alfarroba de jeito, não floresce como deve ser para atrair abelha.
            O que, de facto, mais me encanta na alfarrobeira é precisamente esse cheirinho acre, bem activo, das suas flores e as abelhas a não resistiram ao convite dos suculentos estames. A do meu bairro não tem.
            Comi alfarrobas em criança, quase por brincadeira (confesso). Um sabor áspero, farinhento… Dispomos agora de licor de alfarroba, de biscoitos de alfarroba, de creme de alfarroba, tabletes... E pugnamos para que a ladroagem se não atreva a varejar árvores alheias…
            Diligenciei, com êxito, para que a palavra ‘folharasca’ entrasse no Dicionário Digital das Língua Portuguesa em permanente actualização pela Academia das Ciências de Lisboa. Foi acolhido, como regionalismo algarvio, no sentido de «conjunto das folhas secas da alfarrobeira caídas». Aí se justifica a inserção com a seguinte passagem d’O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge: «Macário caiu de joelhos às abas de uma alfarrobeira submersa em folharasca» (1995, p. 195).
            Rezam os outros dicionários que – como se suspeitava – a palavra vem do árabe: al-carroba, alkharrub. Por isso não estranhamos em ver escrito num rótulo CAROB – qual tentação mediterrânica! E que tentação, senhores!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 331, 20-06-2024, p. 13.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

O hífen e o travessão


            Contestei, em Agosto de 2012, a correcção que me fora feita num texto: haviam posto um hífen onde eu queria um travessão. Foi-me respondido que a revista, por ser editada por um organismo oficial, tinha de seguir as regras da NP 405-1 de 1994. Como perguntei junto de quem eu poderia protestar contra uma dessas regras que está errada, foi-me dito que «o protesto deverá ser enviado para o editor da norma, o Instituto Português de Qualidade, ou para a Biblioteca Nacional de Portugal». Da BNP não obtive resposta.

Não é fácil a escolha entre hífen e travessão e, por isso, nem sempre o algoritmo dos processadores de texto acerta. O normal é pôr hífen e tem de ser o escrevente a alterar quando há erro.
Na gramática, vêm explicados os casos em que o hífen se usa: por exemplo, «para indicar, no fim de linha, a divisão da sílaba», «para ligar os pronomes enclíticos às formas verbais» (lavo-me). Geralmente não se registam anomalias nesse uso por ser vulgar, o algoritmo foi bem programado; anote-se, todavia, que o novo acordo ortográfico suprimiu o seu uso «para ligar a preposição de às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver»: escreve-se agora hei de, hás de, há de, hão de.
O travessão, por seu turno, «serve não só para chamar a atenção para a palavra ou palavras que se seguem, mas ainda para, nos diálogos, indicar a mudança de interlocutor. Pode substituir o parêntesis.
E é aqui que amiúde se erra. Ora veja-se a frase: «O António – que é um excelente rapaz – telefonou-me». Neste caso, amiúde, o algoritmo não fecha o inciso com travessão mas com hífen e é preciso o autor estar bem atento para não deixar passar o lapso.
Uma regra simples pode ser esta:
– O hífen está sempre ligado à palavra, não se deixa espaço: ‘telefonou-me’;
– O travessão, ao invés, nos textos em português (em castelhano, é diferente), deve ter sempre espaço antes e depois.
Verifiquem-se dois aspectos, no que se acaba de ler: como se tratava de uma enumeração, usou-se no início o travessão; contudo, o algoritmo não mudou automaticamente do hífen para o travessão; tive de ir, no teclado, aos símbolos ou accionar ctrl + hífen para lograr pôr travessão.
Como dá muito ‘trabalho’ (!), o mais corrente é… que não se ligue importância a isso – e Deus seja louvado!

                                                                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento, de Mangualde, edição nº 865, 15-05-2024, p. 10.

 

 

Irás vencerás não morrerás

             A frase escolhida para título desta crónica tem uma história – real ou inventada – sobejamente conhecida.

           Atribuída a oráculo proferido pela pitonisa de Delfos, em resposta à consulta de um soldado (segundo uma versão) ou dos conselheiros de Alexandre-o-Grande (segundo outra), é amiúde citada para demonstrar o valor da vírgula.

           De facto, sem vírgulas a frase tem dois sentidos opostos, dependendo do sítio onde a vírgula se puser:
1)      Irás vencerás não, morrerás
2)      Irás vencerás, não morrerás
Dir-se-á que tudo isso é tão comezinho que não justifica nova crónica.
           Quiçá justifique, se atentarmos no desleixo generalizado que se verifica quanto ao uso da vírgula. Mesmo pessoas altamente instruídas caem, por exemplo, no erro de separar o sujeito do predicado por meio duma vírgula e não sabem quando é que depois do pronome relativo se deve – ou não – pôr vírgula.

           Por isso, merece pensar-se no uso da pontuação.

           Há regras. Importa aplicá-las na linguagem escrita, que se quer escorreita.

           Lembro-me que alguém desabafou: «Que chatice! Ele está sempre a pôr vírgulas!». Outro confidenciou-me: «Isso nos poemas a pontuação atrapalha tudo!». E um terceiro perguntava-me: «Leste o ‘Memorial do Convento’?».

           Respondo:
Aceito que o poeta não queira usar pontuação, como o pintor pode não dar título a um quadro. Ambos preferem dar liberdade: cada qual entenda como quiser. Acham que essa liberdade enriquece a obra. Aceito.

Uma coisa é, todavia, a linguagem escrita dum texto científico, normal, outra a linguagem literária. De facto, tanto Saramago como Lídia Jorge usam a pontuação para se aproximarem da linguagem oral. Nos seus livros, o ponto equivale a uma pausa na fala, mesmo que seja a meio da frase.

Em suma, não basta ter aprendido a escrever. Expressar-se por escrito exige prática, atenção e, sem dúvida, algum esforço. Não admira, por isso, que se esteja a recorrer cada vez mais aos emojis, que é como quem diz: «Interpreta à tua vontade! Mando-te um grande coração vermelho; interpreta ‘gosto’, ‘amo-te!’, ‘adoro-te!’, ‘gosto de ti!’ – como quiseres. Confesso, no entanto, que por palavras fica tudo muito mais explícito. E eu sempre prefiro um «adoro-te!» a um mero «gosto de ti!». O coração vermelho, ao ter tudo, acaba por nada ter. Fica-se na dúvida. E é chato!

 

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 330, 20-05-2024, p. 13.