quarta-feira, 21 de agosto de 2024

A esteira

            Foi uma das primeiras sensações estranhas que, como epigrafista, tive, quando, em Outubro de 1989, desembarquei, pela primeira vez, no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro: as bagagens iam ser-me entregues numa… esteira!
Pasmei; mas o pasmo depressa deu lugar à admiração, ao verificar, nos dias seguintes dessa estada, que muitas outras palavras ‘clássicas’, do nosso quotidiano falar d’outrora, o brasileiro mantivera. A mais conhecida será, porventura, para os que lidamos com a temática histórica, o tombo. É certo: mantemos a Torre do Tombo; mas, no Brasil, não se fala «classificar um prédio» e sim «tombar»!
E dei comigo a pensar nesta palavra, que – usual no Algarve, porque nos habituámos às esteiras e aos capachos de empreita – em linguagem citadina logo vai para a desgraça: «Coitados, nem cama têm, dormem numa esteira!». E essa, porventura, nem esteira é, mas ‘tapete’, que é, aliás, o vocábulo usado oficialmente nos nossos aeroportos.
Fui ver (já é mania!...) donde é que vinha a palavra. E não é que vem do latim ‘storia’? Exacto: com o mesmo som, praticamente, de «historia»!
E isso me fez lembrar uma outra sensação, essa (curiosamente!) em Maio de 1968, ao ver, junto à Koutoubia, em Marraquexe, um ancião, sentado de pernas cruzadas numa esteira, rodeado de ouvintes: era um contador de histórias! Situação que nos leva de imediato a pensar no «tapete mágico» – e não na esteira… – das histórias das Mil e Uma Noites.
Esteira seria, de facto, pouco prática para voar e mesmo também o é para nós se, nas calmosas tarde do Verão algarvio, nelas nos queremos esticar: há que pôr uma mantinha por cima!

E, para os figos, a esteira é outra, não de palma, mas de cana; e, aí, sempre ganha asas, como o tapete mágico, demanda terras orientais e exige que a ponham, mais os seus figuinhos ao sol, em lugar solene, com nome a condizer com a sua elevada categoria artesanal: o almanxar! Ora toma! Assim, quando a brandura começar a ‘cair’ (e agora já não é precisa, pois os figos estão é a secar!), lá virá, sorrateira, a dona da casa e mui cuidadosamente tudo enrolará e guarda. Amanhã, outro dia será!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 333, 20-08-2024, p. 13.

 

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