quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O Peter Pan somos nós?

            – Sabes alguma coisa do Aristides? – perguntei a um colega, porque há muito que não tinha notícias dele.
            – Sei. Está na cama!
            – Doente, não?
            – Não. Eu disse «está na cama», não disse «está de cama»!
            – Como assim?
            – Declara que já fez muito na vida e não está para se ralar mais; por isso, não sai da cama!
            Pasmei. E, agora, lembrei-me do diálogo (ambos esses meus companheiros de trabalho já partiram, um a seguir ao outro), quando me deliciei com a encenação que Carlos Avilez fez – na versão de Miguel Graça – da obra do dramaturgo escocês Sir James Mathew Barrie (1860-1937), Peter Pan (1904). O meu colega desistira de se aborrecer com as preocupações do dia-a-dia; Peter Pan não queria crescer, achava que ser criança era o melhor do mundo.
            Muitos de nós conhecemos – ainda que vagamente, porventura – a história deste menino a quem Wendy procurava espicaçar para ser alguém e sair do universo dos sonhos na sua Ilha da Fantasia, povoada por sereias, peles-vermelhas, piratas (ai, o feroz capitão Gancho!...), fadas, aves encantadas… E perguntamo-nos:
            – Serei Wendy ou prefiro ser Peter Pan?
            Ou, como escreve Miguel Graça:
            «E nós, como não alcançamos uma coisa nem outra, porque não conseguimos alcançar nem uma nem outra coisa, somos ao mesmo tempo Peter e ao mesmo tempo Wendy, a querer viver fechados e separados do mundo, e a querer integrar-nos e a fazer parte de qualquer coisa, sempre à procura da Terra-do-Nunca».
            Uma e outra coisa: «recusar a viver a vida normal» e querer «apenas a normalidade da vida normal».
            O livro de Barrie começa assim:
            «Todas as crianças crescem, excepto uma. Depressa se apercebem de que vão crescer, e a maneira como Wendy soube foi esta.
            Certo dia, quando tinha dois anos, estava a brincar num jardim e, arrancando uma flor, correu a levá-la à mãe. Devia estar encantadora, pois a mãe levou a mão ao coração e exclamou:
            – Oh! Porque não hás-de ficar assim para sempre!?
            Foi tudo o que se passou entre elas; mas, a partir daí, Wendy soube que teria de crescer. As crianças sabem-no sempre, a partir dos dois anos. Dois é o começo do fim».
            Personagens que povoaram a nossa infância e juventude, se acaso tivemos a sorte de alguém delas nos falarem. Será, contudo, difícil que, alguma vez, não tenhamos encontrado por aí o terrível Capitão Gancho (o gancho que era a sua mão direita decepada); ou não tivéssemos imaginado a Fada Sininho a nosso lado, qual voz da consciência, a chamar-nos à realidade. E o crocodilo.
            É, pois, nesse mundo que se desenvolve a peça, para maiores de 6 anos, que o Teatro Experimental de Cascais estreou no passado dia 13 e que vai estar em cena até véspera de Natal, de sexta a domingo, com sessões às 16 horas de sábado e às 11 e às 16 de domingo, para dar azo a que os mais jovens possam ir.
            E é de não perder esse espectáculo em que os actores – em excelente (como sempre!) cenografia e figurinos de Fernando Alvarez (inolvidável a ‘reprodução’ das ilustrações de Paula Rego!...), mui adequada coreografia de movimento (Mónica Alves) e coreografia de luta do mestre de esgrima Eugénio Roque – se divertem e nos fazem divertir.
            Dir-se-ia espectáculo sem pretensões. Sê-lo-á. Mas – importa frisá-lo! – quem disse aí que fazer algo simples não implica enorme sabedoria de longa experiência acumulada?!...
            Mais uma vez, gente nova contracena com os actores ‘residentes’ do Teatro Experimental de Cascais (Teresa Côrte-Real e Luiz Rizo, por exemplo) e com o veterano e sempre jovem Ruy de Carvalho na figura, em cena, do narrador.
            Achava Peter Pan que as mães só serviam para contar histórias. Quiçá imaginemos também que Carlos Avilez e a sua equipa estão ali para contar histórias e nada mais. Sim, é verdade. Estão ali. E contam-nos histórias que nos ajudam a compreender melhor a realidade, sem que tenhamos um Peter Pan que nos ensine a voar. Eles é que nos dão esse ensinamento. Para que melhor compreendamos as vicissitudes do nosso quotidiano e saibamos evitar o crocodilo e o temível capitão Gancho. Oh! se ensinam!
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 213, 29-11-2017, p. 6.
O capitão Gancho

Dificuldades?

Eles divertem-se...

Peles-vermelhas...

Ruy de Carvalho, o narrador

Voar!

Teresa Côrte-Real
As fotos foram, com a devida vénia, retiradas da página do T. E. C. no facebook.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

As recordações do menino de escola

            «Dos 6 aos 10 anos passei diariamente pela capelinha / oratório de Nossa Senhora no Arco do Repouso. Só aos 75 anos venho a aprender alguma coisa sobre esse local tão entranhado em recordações de menino de escola» – não hesitou em escrever o louletano Joaquim Romero Magalhães, professor catedrático de Coimbra, actual director dos Anais do Município de Faro, na apresentação do volume deste ano.
            E esse caso deu-lhe ensejo para salientar o papel que uma revista cultural municipal, como os Anais, pode desempenhar:
            «Contribuir para essas necessárias descobertas e redescobertas do nosso meio, do nosso património e do respeito que essa convergência nos deve merecer».
            Essa preocupação a têm tido, entre nós, os são-brasenses que, sobre idênticas temáticas, escrevem no nosso jornal. Recordações de infância que entretecem o património imaterial são-brasense; artigos em que se destilam e narram factos e efemérides que, doutra sorte, correriam sério risco de cair nas catacumbas do olvido… Aliás, o próprios responsáveis pela agenda cultural São Brás Acontece não hesitam em aí dar conta, ainda que em pinceladas breves, de uma tradição, de um mester, de uma personalidade.
            Assim, linha a linha, página a página, se constrói comunidade, na partilha de um passado comum.
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 252, 20-11-2017, p. 13.

sábado, 18 de novembro de 2017

Crianças em Portugal - A luz e as sombras

            O tema «crianças» é, mui provavelmente, um dos que mais obriga a ter em conta a componente geográfica, inclusive num espaço bem delimitado como o território português: o contexto urbano e o contexto rural.
            Por outro lado, os novos paradigmas socioeconómicos e culturais da década de 60, a nível europeu, que, entre nós, os ideais de Revolução do 25 de Abril prontamente aceitaram, alteraram substancialmente a vida familiar, como célula (queiramos ou não) da sociedade.
            Assim, pouco a pouco se desmoronou a família alargada, saudável convívio de gerações, que mutuamente se influenciavam, mormente na transmissão de saberes – de avós a filhos e netos. As novas exigências económicas (leia-se: o desmesurado aumento do consumismo) e o exercício simultâneo de uma profissão fora de casa tanto dos pais como de avós (homens e mulheres) determinaram que a Escola passasse a ser o espaço primordial da aprendizagem da vida em sociedade. A omnipresença da televisão – quer com programação infantil específica quer porque os programas de maior interesse para os adultos passam à hora das refeições – provocou drástica diminuição do diálogo intergeracional. Recordo que, um dia, meu filho Pedro, já adulto, me disse que o que mais recordava como enternecedor da sua meninice eram os momentos em que eu lhe pegava ao colo. Compreendi o alcance da observação, até porque esse é também o mimo preferido dos gatos e – caso curioso! – os pais facilmente cedem o colo ao seu gatinho de estimação, mesmo enquanto vêem as novidades no smartphone, e nem sequer se apercebem de que também ao filhote pequeno agradaria esse aconchego…
            Nos ambientes rurais, em que o espírito de comunidade e de vizinhança se mantém, ainda as crianças vêm para a rua brincar (jogar à bola, às escondidas, à apanhada…), o que constitui boa aprendizagem de convivência. Nos ambientes urbanos – em que mais se faz sentir também a «ditadura» da propaganda consumista (o menino calça ténis de marca, usa mochila com os heróis da banda desenhada do momento…) e maior é a insegurança – até os programas televisivos infantis estão a ser substituídos pelas infinitas possibilidades que o tablet oferece e os próprios pais passam mais tempo nas redes sociais do que a preocupar-se com a vida real, a das pessoas que estão a seu lado. Têm corrido mundo imagens de amigos e famílias inteiras que, estando juntos, não olham sequer uns para os outros, tão embrenhados estão na veloz sucessão de notícias ao alcance do simples deslizar de um dedo…
            Rapidamente, as crianças aprendem a mexer nos aparelhos, com uma facilidade que deixa os adultos estupefactos e, amiúde, preocupados também (as crianças passam de um programa para outro, normalmente protagonizados por violentos super-heróis, dotados de super-poderes, onde matar o inimigo é o objectivo principal…), ainda que, mesmo a nível escolar, o computador e o tablet estejam a ser opção educativa de vulto.
            Contra o inegável perigo do exacerbado individualismo e da progressiva perda de identidade cultural – de que todos estamos, de facto, a tomar clara consciência – as entidades públicas locais não hesitam em criar parques infantis, em proporcionar espaços verdes para a prática desportiva de novos e de menos novos, em preparar estruturas apetecíveis para que as famílias ou grupos de amigos aí possam piquenicar e relaxar.
            De consequências nada saudáveis do ponto de vista psicológico é a atrás referida perda de identidade. Ou seja, importa que a criança volte a sentir-se membro de uma comunidade, cujas raízes deve conhecer. Não há necessidade, obviamente, de explicitar noções de ‘património’, ‘beni culturali’, ‘heritage’… Tal consciencialização está bem patente em iniciativas ( de escolas ou de bibliotecas, por exemplo) como a «hora do conto», a ida de avós às turmas para narrarem as suas experiências e histórias, o regresso à prática dos jogos tradicionais...
            Outras das preocupações a que, felizmente, se está a dar muita atenção é a saúde. Aumentou substancialmente a natalidade. Diminuiu drasticamente o número de mortes prematuras e mesmo de nados mortos: amiúde se noticiam verdadeiros «milagres» de sobrevivência pós-parto em condições assaz difíceis. E estão a diagnosticar-se mais precocemente doenças que, até há pouco, só em idade adulta se revelavam: anomalias auditivas ou visuais, síndrome de asperger e todo o cortejo de deficiências psíquicas que implicam tratamento específico e para as quais se estão a concretizar acções com êxito em contexto escolar, inclusive em estabelecimentos especializados como as CERCI – Cooperativas de Educação e Reabilitação de Cidadãos com Incapacidades, largamente acarinhadas pela população em geral.
            Um panorama risonho, este? Perfumada rosa isenta de espinhos?
            Não. Um quadro tem necessariamente luz e sombras e estas acabam por realçar aquela. E, neste âmbito, há, de facto, sombras que me preocupam:
a)      a facilidade com que, por motivos fúteis, se contraem e se desfazem matrimónios, não se acautelando devidamente o equilíbrio psíquico dos filhos;
b)      a impossibilidade prática – por razões de segurança – de as crianças irem e virem sozinhas da Escola, a pé ou mesmo utilizando transportes públicos;
c)      as notícias, que já são mais frequentes, de maus tratos e mesmo de cruéis assassinatos em ambiente familiar ou do bullying em ambiente escolar;
d)     as enormes peias burocráticas que envolvem os processos de adopção, a que (suspeita-se) não serão alheios, em alguns casos, esquemas de corrupção;
e)      a pressa com que usam os tablets, em rápido movimento digital, pressa que fomenta a distracção, o passar pelas «coisas» sem as ver, a falta de reflexão, pressa de que os próprios adultos dão exemplo (veja-se nos transportes públicos…).
 
            Portugal não será, nestes aspectos, diferente dos demais países europeus. Parar de vez em quando, para vermos melhor as nossas crianças constitui, por isso, mui salutar exercício. E esse, agora, tivemos oportunidade de fazer.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Portugal-Post (Correio luso-hanseático) [Hamburgo], nº 62, Novembro de 2017, p. 28-31
A brincar à roda

A jogar à bola

A jogar ao pião


A brincar na praia
        Fotografias dos azulejos que ornamentam a zona que dá para o jardim do «Casal de Monserrate» (primitiva casa do engenheiro Álvaro de Sousa), onde hoje funciona o Centro de Dia Engº Álvaro de Sousa. Agradeço à sua directora, a Dra. Graça Fernandes, a possibilidade de os reproduzir.

Os 30 anos da AMI

            Raro será quem não conheça a Fundação Assistência Médica Internacional, que o Prof. Doutor Fernando Nobre mui auspiciosamente fundou há 30 anos, sempre apoiado pela esposa, Luísa Nemésio, e demais família. No passado sábado, dia 11, houve jantar comemorativo na emblemática Casa Seixas, em Cascais, concelho onde a AMI tem, na Torre, o Centro Porta Amiga, e onde passará a ter, daqui a algum tempo, a sua sede.
            Reuniu o jantar pouco mais de uma centena de pessoas, entre convidados e voluntários, e foi pretexto não apenas para confraternização entre todos mas também para Fernando Nobre evocar, em linhas gerais, o que foram esses 30 anos de serviço em prol dos mais desfavorecidos, nomeadamente em ocasiões de catástrofes, em 82 países dos vários continentes, sobretudo de África e da Ásia.
            Passaram já pela AMI cerca de 800 voluntários, de 30 nacionalidades, e foi precisamente a excelência do trabalho voluntário que mais encómios mereceu no decorrer do jantar.
            Entre os convidados, o Dr. Fernando Nogueira, que, enquanto ministro, dispensou à AMI a maior dedicação; e altas patentes dos três ramos das Forças Armadas, alguns dos quais Fernando Nobre teve ensejo de obsequiar com a medalha da AMI, enquanto salientava o empenho manifestado por cada um nesta nobre causa humanitária.
            Para além do emblema da AMI, os convidados foram obsequiados com um saco em que se encontravam:
            ‒ O folheto ‘AMI aventura solidária’, com o convite «faça uma viagem diferente nas suas próximas férias»: uma ida a Milagres, no Ceará brasileiro, ou à ilha de Bolama, na Guiné, ou, ainda, a Réfane, no Senegal («o país dos embondeiros»); uma forma de «contribuir para um diálogo singular entre diferentes culturas e a aproximação entre populações».
            ‒ O opúsculo «A missão continua», que dá conta, em mui breves linhas, da actuação da AMI, referindo-se que, «consciente da realidade vivida em Portugal, a AMI alargou a sua área de actuação, visando minimizar os efeitos dos fenómenos da pobreza e da exclusão social em território nacional», de que são prova os 9 Centros Porta Amiga, os 2 Abrigos Nocturnos, as 2 Equipas de Rua, o Serviço de Apoio Domiciliário (em Lisboa) e 2 pólos de recepção de alimentos (em Lisboa e Porto).
            ‒ O nº 68 (2º trimestre de 2017) de «AMI notícias», em que merecem destaque a dinamização que a AMI empreendeu no Bairro das Olaias, em Lisboa; os 24 anos de presença no Brasil; uma sentida nota de reportagem sobre o que foi 1 a 19ª edição do Prémio AMI que visa galardoar os trabalhos de jornalismo em que o motivo seja ‘lutar contra a indiferença’.
            ‒ Finalmente, o magnífico livro, 2º volume de «Histórias para não Adormecer», de 170 páginas, brilhantemente ilustrado por Gisela Miravent Tavares – «sensíveis, maravilhosas, ajustadas e numerosas», assim, no prefácio, classifica Fernando Nobre essas ilustrações –, livro que contém 56 histórias verídicas contadas na 1ª pessoa pelos seus protagonistas, voluntários da AMI. Histórias passadas em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Honduras, Índia, Irão, Iraque, Líbano, Moçambique, Papua, Portugal, Republica Democrática do Congo, Ruanda, São Tomé e Príncipe e Timor. Relatos a merecer a maior atenção, porque se prendem com a face obscura de uma Humanidade que, em demasiados locais, se mostra de uma desumana e inconcebível crueldade atroz, a que vem contrapor-se a abnegação de muitos, em tarefa ingente e dolorosa. Transcrevo apenas o início do depoimento de Jorge Andrade, «Os cantoneiros da fome»:
            «Quando vivi o momento que relato, tinha já fixado algumas das imagens que caracterizam a miséria do povo angolano: a pobreza extrema dos deslocados de guerra, a tristeza do olhar das crianças subnutridas, a desesperança dos estropiados pelas minas, a fome dos meninos de rua de Luanda. Não vou esquecê-las nunca» (p. 26).

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 211, 15-11-2017, p. 6. A foto é uma gentileza da direcção do jornal, que agradeço.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Aquele estranho encantamento…

            Na Faculdade de Letras de Lisboa, falava D. Fernando de Almeida, com imensa ternura, do que era, nesse já longínquo ano lectivo de 1965-1966, a sua actividade em Idanha-a-Velha. Sabia que era capaz de se meter no carro sempre que de lá chegava notícia de achado fora do comum. A mim encantavam-me tantas inscrições e, de modo especial, uma, a dedicada a Igaedus, divindade protectora do que, em tempo dos Romanos, fora a civitas Igaeditanorum.
            Encontrara-se a inscrição não muito longe da capela – de grande devoção das gentes raianas – em honra da Senhora da Almortão. Exacto, essa a que a gente canta ao som ímpar do adufe. Teria vindo a Senhora substituir o pré-romano Igaedus, cujo culto também os Romanos fizeram questão de respeitar? Ainda tenho cópia do trabalho prático que fiz, em Maio de 1969, juntamente com Joaquina Salgueiro da Silva, para a cadeira de História da Cultura Portuguesa, regida pelo incomparável Vitorino Nemésio, a que demos o título de «Continuidade cultural e romarias (A Senhora do Almortão)».
            Encanta-me Idanha-a-Velha, assim aninhada a lavar-se no Ponsul, sob a vigilância, mais além, do Monsanto altaneiro. E por entre imaginado chocalhar de rebanhos, o adufe. Adufe que é também – e excelentemente – o nome que o Município de Idanha-a-Nova quis dar à sua revista cultural anual. Acabo de ser obsequiado com o nº 25, de 2017 (e tenho a colecção completa!). Em versão bilingue (Português e Inglês), são 144 páginas que também elas me encantam, pelo saber nelas derramado acerca das gentes e das paisagens de Idanha. Ao som do adufe se concretizou a presença portuguesa na Feira de Natal de Estrasburgo, pelas mãos de Fernanda Gabriel, natural de Monsanto e correspondente da RTP naquela cidade. E acredito que também será com esse ritmo por fundo que Stephan Doeblin trata das sementes vivas no Ladoeiro, que Luís Paixão Martins rege o Clube de Tiro de Monfortinho, Licínia Gaspar, de pá de forno em riste, leveda e coze tradicionalmente o pão em Penha Garcia e Henrique Raposo trata dos cogumelos, a que, aliás, mais umas páginas desta vez são dedicadas, para que se saibam distinguir e bem apreciar. Desenham-se os piu pius (que importa conhecer e proteger). Fotografam-se as velhas portas, prenhes de segredos e tradição. Desenham-se também as paisagens rurais «fora dos caminhos». E o riso deliciado de Maria Nascimento faz-nos crescer água na boca com os seus incomparáveis petiscos beirões.
            Ai, o som do adufe! Ai, a melodia que se desprende das páginas desta revista singular!...

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 719, 11 de Novembro de 2017, p. 11.
 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

«A Avó Ceirinha», do Dr. Alberto Correia

             Foi recentemente aberta ao público, na Casa da Paz, pertencente à Paróquia de Santa Cruz de Beselga (Penedono), a exposição Memorial da Devoção Ceireira, onde, para além da evocação de uma actividade que corria (ou corre) o risco de desaparecer – a arte de fazer ceiras de junça – se apresenta, na verdade, um pequeno, mas bem significativo, museu de arte sacra, cuja visita vivamente se recomenda.
            Tem a exposição primoroso Roteiro; mas o Dr Alberto Correia, um dos dinamizadores da iniciativa, não se ficou por aqui e para, de certo modo, acompanhar a exposição escreveu uma linda história, «A Avó Ceirinha».
            Um livro de capa rija e letras gordas, para que as crianças e os menos jovens o possam ler sem dificuldade. Dedicado à sua avó Beatriz, «”ceireira” de nação», tem, na página da esquerda, ilustrações muito bonitas de artefactos feitos neste tipo de material, a junça. Uma verdadeira maravilha de gosto!
            A narração é feita por uma avó à sua netinha; mas ousaria afirmar que há outras linhas que não a da história propriamente dita sobre que importa reflectir, pelo que representam de uma realidade a não olvidar. Assim, na pág. 11:
            «Mas quando a Virgínia nasceu já não se usavam as ceiras do azeite. E os ceireiros mal conseguiam vender as ceirinhas, os tapetes e os ceirões porque as pessoas passaram a usar outras matérias nas suas casas.
            Muitos homens foram então trabalhar para França. Uns na agricultura, outros nas obras da cidade. Alguns já tinham ido uns anos antes e ajudaram os mais novos a arranjar trabalho».
            O drama – assim mui singelamente retratado.
            As histórias atropelam-se umas nas outras (a da mulher «que matou um grande lagarto com os novelos de linho que levava»…), e, no final, Gininha, a neta, não se conteve:
            – Gostava de tanto de ter ido com o avô vender ceirinhas!...
            E «a avó pousou na cestinha o novelo de lã. Gininha não viu as duas lágrimas que se soltaram dos olhos da avó.
            Estava quase a pôr-se o sol. E entraram ambas em casa, de mãos dadas, a avó e a netinha».
            Um encanto, este livrinho, para os jovens e para os menos jovens. Mais uma vez, a prosa límpida e serena de Alberto Correia, com fotografia de José Alfredo, design (magnífico!) de Sónia Ferreira. Edição da Paróquia de Santa Cruz, Beselga, Penedono. Apoio do Município de Penedono.
            Fala-se muito de diálogo intergeracional, da necessidade de os avós terem tempo para os netos. Ou melhor, de os netos terem tempo para ouvir os avós! Este «A Avó Ceirinha» constitui mui excelente pretexto para esse diálogo se concretizar.
            Estão, obviamente, de parabéns e quantos tiveram a coragem de lhe prestar atenção!

                                                           José d’Encarnação
 
            Publicado em Voz de Lamego 17-10-2017, p. 13.

domingo, 5 de novembro de 2017

«Sob a pele», de Filomena Barata

            Lê-se num ápice. Não apenas por ter 56 páginas em formato de livro de bolso, mas porque nos enleia de tal modo que, sem nos apercebermos, acompanhamos a Autora nas suas deambulações por terras de Portugal, por terras de além (ai essa Antuérpia que fundas cicatrizes lhe deixou!) e, sobretudo, pela Angola que a viu nascer, há precisamente 60 anos.
            60 anos que sentiram, ainda que em meio urbano e de classe média, os ecos da guerra que na sua Angola então se fazia «no mato». Ecos vivos, recordações bem presentes, porque plasmadas na infância e na juventude e facilmente, por isso, se evocam hoje os cheiros, os sons, os silêncios. 60 anos em que Portugal sofreu as transformações mais radicais e que na alma das gentes fundamente se repercutiram e, aos 60 anos, disso tomamos consciência plena, na certeza de que essas foram as marcas que nos moldaram lá e cá.
            Um solilóquio autobiográfico, sem dúvida, salpicado aqui e além daquele lirismo de que a história de Pedro e Inês sempre é capaz de ser matriz. Um solilóquio que, inesperadamente, se solta em diálogo:
            «Majestosas como as que tu e eu já vimos, junto ao Sumbe, e ainda bem maiores. […] Por vezes lá longe já, em águas mais tranquilas, passeavam-se hipopótamos com ar de quem nos queria cumprimentar» (p. 41).
            «Já semeei tantas noites de ti, ementando-te. Embaciando os vidros com a boca encostada à janela fria: crio-te e apago-te como o faço a mim própria. Para depois tudo recomeçar. Ficou-me a folha em branco, o papel e as noites sem fim. Não, já não as cubro inteiras com o teu cheiro que tanto quis reter. E, contudo, precisava de umas mãos que me afagassem o rosto agora» (p. 43-44).
            Lirismo contido, que – num relance – acaba por despontar, em desabafo:
            «Quem sabe o silêncio de uma lagoa onde se esconde uma vida inteira?» (p. 42).
            Prenhes de significado as descrições do quotidiano vivido em Malange na década de 60; pinceladas certas, as que retratam um Alentejo para onde Filomena Barata cedo foi batalhar:
            «[…] Esse espaço era tão, tão grande que nele havia também lugares cheios de esteva, infestando hectares e hectares, e outros, onde o montado teima em sobreviver, abrigando as “zorras” quando anoitece, e onde escavam tocas os coelhos bravios, sobrevoados pelas sobranceiras águias ao alvorecer» (p. 33).
            Louve-se o facto de serem raras as gralhas – os frades cistercienses rezam as Laudes e não as laudas, as benzeduras desfazem o quebranto… Mui eloquente o design gráfico, bem patente na capa, em cuja 1ª badana se semearam as fotos de um passado saudoso, onde não falta a avioneta que aprendeu a pilotar…, e onde se retrata a pele sob a qual, no livro, se espraiaram emoções, experiências fecundas («Resistir, continuar é o sítio de quem não quer parar» - p. 32).
            A apresentação foi no dia 26 de Outubro, no Museu Nacional de Arqueologia. O prefácio é de Luísa Amaral, em jeito de carta à Autora. Glória de Sousa, do Perfil Criativo (a editora), explica, na contracapa, que estamos perante uma «arqueologia do sentir», não apenas (digo eu) por Filomena Barata ser arqueóloga mas também – e sobretudo – porque de ‘sentires’ está bem impregnado o testemunho, meticulosamente escavado no mais profundo do ser.

            Cascais, 5 de Novembro de 2017

                                                           José d’Encarnação

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Eu não queria escrever esta crónica

            Não queria.
            Há dois minutos que não andamos. Uma jovem bonita faz sinal ao motorista:
            ‒ Foi você que me levou ao Largo Camões? ‒ perguntou com sotaque brasileiro.
            ‒ Eu não.
            ‒ É que eu deixei o telemóvel no carro!
            ‒ Um telemóvel?!... Esqueça!
            Continuamos a passo de caracol. Toca o telemóvel do motorista. Oiço frases entrecortadas:
            ‒ E agora?... Não deixes alguém ocupar a tua cabeça sem pagar!... Vamos olhar em frente!... E como é que foi isso?... Força, rapaz!
            Voltou-se para mim, telefonema terminado, e explicou:
            ‒ Este moço foi estudar para o estrangeiro e veio com ideias novas. Criou um galinheiro com máquinas sofisticadas. O negócio estava próspero. Esta noite, roubaram-lhe 40 galinhas e uma das máquinas sofisticadas. Eu gosto dele, é dinâmico, empreendedor!
            Estava um caracol ao nosso lado e quase nos ultrapassava. Disse o motorista:
            ‒ Eu herdei um terreno do meu avô. Plantei-o de árvores. Tinham pegado há pouco tempo e roubaram-mas. Não desisti e voltei a plantar. Agora, ardeu tudo e, no dia seguinte, já não tinha sequer os troncos queimados. Vieram roubar-mos!... Isto está tudo a saque!
            O carro não avançava. O motorista voltou-se para mim:
            ‒ Vê como está o trânsito. Continuamos ou fugimos?
            ‒ Sim, fugimos! ‒ respondi prontamente.
            Tomámos um percurso alternativo e depressa cheguei ao destino.
            No silêncio do comboio cheio, a pergunta «fugimos?» martelava-me na cabeça. É que um quarto da minha família, da geração a seguir à minha (filhos, sobrinhos, netos…) também ela já fugiu. Vive no estrangeiro.
            É por isso que eu não queria escrever esta crónica!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 718, 1 de Novembro de 2017, p. 11.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O poder das palavras

José d’Encarnação 

(José d'Encarnação foi professor na Universidade de Coimbra e é um dos leitores mais assíduos e críticos do P&V. São razões de sobra para o reconhecermos como um colaborador e publicarmos os textos que vai escrevendo sobre ele.)

Folheei o P&V de Outubro, que vai mantendo, porém, textos mais antigos das habituais secções. Para que não se olvidem. Para exemplo e estímulo.

A professora Alice Marques e os professores José Nobre e Carlos Carvalho continuam ao leme, diversificando os rumos, aliciando mais marinheiros para a sua barca, que vai serenamente singrando, a transportar sabedoria. Não uma sabedoria qualquer, mas uma sabedoria de vida.

Claro que apoio de coração os cursos profissionais. «Parentes pobres»? – Não! Outra forma de encarar a aprendizagem, na área em que o estudante se sente mais à vontade, apelando para a sua experiência quotidiana.

Your words have power. Use them wisely
Permita-se-me, no entanto, que destaque a eloquência da imagem do menino que chora, impotente, a mão cheia de palavras encavalitadas umas nas outras, atropelando-se, e ele impotente e ela a sufocá-lo numa ameaça de morte. E a frase: «Your words have power. Use them wisely» – «As tuas palavras têm poder. Usa-as com inteligência». É o texto «Século XXI», de Marina Lopes, criado em 2-5-2017, pleno de oportunidade, porque – ao falar de Bullying – é preciso agarrar o touro pelos cornos. E não pode haver paninhos quentes. «Brincadeiras de crianças»? Sim, também eu reinei aos cowboys e matava os índios e nem percebia bem o que estava a fazer, porque ninguém me explicava donde estava o Bem ou o Mal. Gary Cooper era o meu herói – e pronto! O reino da fantasia, da brincadeira real. Agora, não! Não é brincadeira nenhuma!

«Quando a desgraça acontece», escreve Marina Lopes, «todos falam sobre o assunto, todos dizem o quão repugnante é, todos ficam do lado das vítimas e contra os agressores. São todos parte do acontecimento. Mas a verdade é que o Bullying nunca é levado a sério. Nas escolas, quando o “inesperado” acontece, todos dizem que já sabiam disto e daquilo; no entanto, o director e professores falam em “brincadeiras” de crianças e que “não sabiam que a situação era tão grave”.»

Não queremos «chorar a morte de alguém muito querido». Queremos é que se encare o problema de frente. Com toda a coragem!

Também para estes alertas é imprescindível «serviço público» o papel que P&V, denodada e exemplarmente, desempenha na Calazans Duarte. E que nunca lhe doam as mãos!

Cascais, 8-10-2017


Publicado em Ponto & Virgula (Boletim noticioso da Escola Calazans Duarte, Marinha Grande), a 1-11-2017



Gosto de ter dúvidas!

            Se calhar, ter dúvidas é assim a modos de uma outra forma de dizer aquela célebre frase de Descartes: «Penso, logo existo!». E é bom chegar aos 72 anos e ser assaltado diariamente por dúvidas, por questões que, até aí, me não havia posto. Agradeço, aliás, a Deus e à Senhora Auxiliadora ter prontamente aceitado a missão de ser tutor de bairro, o que me obrigou a olhar com mais atenção para a realidade envolvente.
            E, quando a dúvida me assalta, procuro resolvê-la. Nem sempre, no entanto, tenho sorte, porque a minha inteligência não consegue captar outras inteligências dotadas de um saber técnico que eu não possuo.
            Para que esta conversa não se fique assim no ar, pelas abstracções e considerações filosóficas, dou quatro exemplos bem concretos.

1 – Uma placa para o hospital
            Apercebi-me, ao subir a 3ª circular, que poderia haver engano para quem se dirigisse ao hospital e tomasse, sem querer, a auto-estrada. De facto, para quem entra na circular vindo de sul e não no cruzamento de Birre, não encontra nenhuma placa com essa informação.
            Perguntei aos serviços se lhes não parecia oportuno acrescentar essa informação na placa que já lá está a seguir aos semáforos.
            Resposta: não, não era oportuno nem lhes parecia de interesse, porque já havia sinalização anterior e era regra não repetir sinalizações no mesmo trajecto. Retorqui exemplificando que tal regra não era cumprida em vários sítios e que, decerto, mais umas letrinhas na placa não dariam assim tanto trabalho e fariam jeito. Não me replicaram. Azar meu!

2 – Sistema de rega
            Informei que estava danificado o sistema de rega automática na ‘margem’ norte da Avenida Raul Solnado, pois ali fora plantada relva (eu vi!) e havia tubos de borracha espalhados pela área, tubos do género que eu tenho visto por toda a parte e que para isso servem.
            Resposta: «O espaço ajardinado do lado norte não possui sistema de rega automático. É um prado de sequeiro e fica amarelo no Verão, mas no Outono/Inverno rejuvenesce. Os arbustos são resistentes e vão resistir».
            Azar o meu: afinal, os tubos são apenas para decoração e a relva é… «um prado de sequeiro». Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?

Desengane-se, leitor: esses tubos não são de rega e o que está
a ver não é relva seca, é um prado de sequeiro!
3 – Reservado a moradores
            Solicitei que se encarasse a hipótese de determinada praceta, ultimamente ‘inundada’ por viaturas estranhas, pudesse vir a ser reservada a residentes.
            Foram-me apresentadas todas as condições exigidas para que houvesse essa reserva. Nenhuma delas, a meu ver, se aplicava à reserva em vigor para toda a zona da Bela Vista, na vila, onde só podem entrar os residentes e, se estacionas, mesmo por pouquíssimo tempo, no Largo Óscar Monteiro Torres, certo e sabido que te aparece o reboque num abrir e fechar de olhos!... Pretendi esclarecimento. Azar o meu: não tive!

4 – STOP no chão
            Tentei explicar a seguinte situação: quem desce a Rua do Cobre tem uma placa STOP, a fim de dar prioridade aos veículos que se apresentem para entrar ou sair da Rua Júlio Dinis, da Pampilheira. Sucede, porém, que, como se trata de uma descida, há quem acelere e nem sequer se aperceba da placa, o que – só por grande sorte – não tem provocado acidentes, travagens bruscas sim... A minha proposta: que se pinte no chão – como noutros sítios acontece – a palavra STOP. Assim haverá, de certeza, maior viabilidade e maior possibilidade de respeito.
            Azar o meu: até agora, não obtive qualquer resposta.

            Conclusão: as minhas dúvidas aumentaram: vale a pena ser cidadão empenhado?
 
                                                     José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 209, 01-11-2017, p. 6.